Mudança de planos - Parte 1/2
Já faz algumas boas horas desde que essa chuva começou, e ainda assim, ela parece bem longe de terminar.
No escuro da recepção, observo a tempestade desabar sobre Urbiserra. Lufadas de vento empurram a água para todas as direções, transformando a cidade em um borrão indistinguível.
Faz horas também desde que Sarah e seu grupo foram embora, mas a dor na minha perna me lembra delas a cada poucos minutos.
Só que, para ser sincera, não é só a perna que me incomoda.
A sujeira já está começando a virar um problema.
Com tudo que aconteceu, suei demais. Minha pele está grudentinha, e essas roupas úmidas só pioram a sensação. Tá me dando nos nervos.
Se me lembro bem, na avenida tem uma loja de roupas a poucos metros da escola.
Será que vale a pena sair correndo nessa chuva? Quer dizer... correndo não dá. Mas, ao menos, me arriscar e tentar chegar lá enquanto ainda está de noite?
Para ser sincera, até hoje não consegui descobrir qual período do dia é mais perigoso.
Me apego no fato de que à noite é mais difícil enxergar, pelo menos para nós humanos.
Já para os Ocultos... bem, conto mais com a sorte do que qualquer outra coisa.
Quer saber? Dane-se. Seja o que De...
MEU DEUS, QUE ÁGUA GELADA! PUTA MERDA!
Tá difícil até respirar.
O trajeto é curto, mas ainda assim, penoso.
Ao menos as árvores espalhadas pela calçada ajudam um pouco a proteger do impacto direto da torrente.
Agora, em segurança sob a marquise do estabelecimento, tiro a lanterna debaixo do moletom e ajusto seu brilho. Nada muito chamativo, apenas o suficiente para me guiar no meio dessa bagunça de prateleiras, cabides e roupas. Assim que atravesso a porta de entrada e o feixe da lanterna ilumina o interior da loja, percebo o verdadeiro estado do lugar. Apesar de visivelmente revirado, ainda parece que posso aproveitar algo.
Deixo meus olhos percorrerem o espaço, acompanhando o fluxo da lanterna. Não costumo carregar muitas roupas comigo — lojas como essa são fáceis de encontrar quando preciso de vestimenta. Ainda assim, encontrar algo minimamente decente às vezes é um desafio, com tantos tecidos velhos e gastos espalhados.
"Olha só...", murmuro ao me deparar com um pequeno varal de exposição cheio de calças guardadas em plásticos.
Pego algumas e as aproximo do quadril, medindo com os olhos qual pode servir. Calças geralmente são o maior desafio por causa do meu tamanho. Ser pequena demais não ajuda muito nesse tipo de coisa; a maioria das peças fica enorme em mim. Mas essa aqui...
É um jeans com a barra um pouco mais larga, mas a cintura é estreita. Parece perfeito. Se ficar grande embaixo, nada que uns ajustes não resolvam. Sei que talvez eu devesse optar por roupas masculinas, práticas e úteis, com mais bolsos ou proteção, mas... não estou pronta para abrir mão completamente da aparência. Prefiro acreditar que dá pra equilibrar conforto, estilo e funcionalidade.
O moletom e a blusa já tinham me chamado a atenção assim que entrei na loja, então só falta uma bota.
Gosto de coturnos ou qualquer sapato mais resistente, algo que suporte chuva e lama. Não dá para lidar com pés molhados por muito tempo.
"Esse deve servir", murmuro, segurando um par de coturnos marrons. Não é exatamente o meu número, mas prefiro sapatos um pouco maiores; o conforto compensa.
Com as roupas escolhidas, vou em direção ao provador. Mas, antes que chegue lá, um estouro me faz largar tudo no chão. Quase deixo a lanterna cair ao me virar bruscamente para o som, com o coração disparado.
É uma porta no canto da loja, escancarada pela força do vento. Ela bateu com força, e o impacto produziu o barulho ensurdecedor. Engulo seco, fecho os olhos por um momento e respiro fundo, tentando me acalmar.
A porta agora abre e fecha devagar, com um rangido baixo que ecoa pelo lugar. Dou alguns passos cautelosos em direção a ela e, ao apontar a lanterna, vejo o que parece um pequeno oásis. As quatro paredes ao redor filtram a maior parte da chuva, enquanto algumas telhas quebradas no teto criam uma cascata de água que cai diretamente em um ponto do chão, como um convite.
Exatamente o que eu preciso agora.
A água provavelmente está gelada. Preferia um banho quente? Claro. Mas isso é melhor do que nada.
Sem pensar muito, tiro as roupas encharcadas e, reunindo toda a coragem que consigo, me coloco sob a cascata. Assim que a água fria atinge minha cabeça, minha respiração falha.
"Coragem, Amanda, coragem", murmuro para mim mesma, tremendo dos pés à cabeça.
No começo, é quase uma tortura. O vento gélido contra minha pele só piora a sensação, e os arrepios me fazem querer desistir. Mas, como se o universo ouvisse minhas preces, a tempestade dá uma trégua. O céu escuro começa a se abrir, e a luz da lua tingida de vermelho pelas nuvens carregadas, ilumina timidamente o local.
Aos poucos, o calor do meu corpo se ajusta à temperatura da água. O que antes era tortura agora se torna a sensação mais prazerosa do mundo. Deixo que a água leve toda a sujeira e preocupação. Por um momento, esqueço até da ferida na minha perna. O curativo, agora encharcado, vai se desprendendo da pele.
Satisfeita com o banho, me apresso para dentro da loja novamente. Pego a primeira blusa decente que vejo e a uso para me enxugar. Já aproveito também para fazer um breve curativo com o pequeno kit de primeiros socorros que trouxe comigo, guardado em uma pequena mochila que encontrei na escola.
Agora, preciso me vestir.
Com as roupas e a lanterna em mãos, me apresso novamente em direção ao que parece ser o vestuário masculino e me enfio em uma das cabines.
É estranho pensar em como o tempo e as circunstâncias podem nos mudar. Mais estranho ainda é enxergar essas mudanças refletidas no espelho.
Não que não tenha sobrado nada da Amanda de antigamente. Muito pelo contrário. A pessoa que vejo no reflexo parece uma versão melhor de mim mesma.
Minha pele ganhou uma corzinha, graças às caminhadas no sol usando só sutiã. No início, era estranho. Parecia errado me expor tanto, mesmo que não houvesse ninguém em um raio de quilômetros de mim. Mas, como eu disse, não vou abrir mão da aparência. Pegar cor só nos braços definitivamente não está nos meus planos.
Meu corpo continua o mesmo: pequeno, com curvas modestas, mas ainda assim, acentuadas. Sinceramente? Eu sou a última pessoa que alguém poderia imaginar sobrevivendo a tudo que eu sobrevivi.
Minha tatuagem ainda está radiante, feita poucas semanas antes do mundo mudar. O preto vibrante do desenho realça na minha pele. É uma lua crescente, que começa pouco abaixo do meu bíceps e se estende até o pulso através de símbolos feitos à mão pelo tatuador, ramificando-se em suaves traços ao longo do braço.
Ela é linda. O orgulho que sinto por ela ainda é o mesmo de quando a fiz.
Satisfeita com o que vejo no espelho, começo a me vestir. Começo pelas peças íntimas pretas, que abraçam minhas curvas perfeitamente.
A calça, como imaginei, ficou um pouco grande na barra, mas ao colocá-la dentro da bota, o visual ficou perfeito. A camisa é um pouco larga, mas achei ótima. O moletom protege bem contra o vento gelado que sopra da entrada e pelas janelas espalhadas pela loja.
Penteio os fios rebeldes com os dedos e dou uma última olhada no espelho antes de seguir meu caminho.
Nada mal. Nada mal mesmo.
oo
As poucas nuvens no céu parecem formar um carnaval particular, com cores vibrantes se mesclando ao azul bebê. Não sei se essa mudança de planos repentina foi uma boa ideia, mas algo me diz que tentar sobreviver em Urbiserra seria ainda mais difícil do que imaginei. Talvez, se eu conseguir achar uma região mais isolada da cidade – quem sabe um bairro afastado ou algo assim – eu possa me estabelecer com mais tranquilidade, indo buscar recursos no centro apenas quando necessário.
Claro, o risco de me perder no caminho é enorme. Mesmo já tendo visitado vários pontos da cidade antigamente, Urbiserra hoje pode muito bem ser um mar de ladrões, sobreviventes assassinos e, claro, os Ocultos. Eles com certeza ainda estão por aqui, como aquele que me deu as boas-vindas assim que cheguei.
E quem sabe eu não encontre Sarah e Ana... Admito que boa parte de mim quer vingança o mais rápido possível. Mas sejamos francos: quem sou eu na fila do pão? Eu nunca lutei corpo a corpo com ninguém na minha vida. Que chance eu teria contra Sarah num mano a mano?
Por isso preciso de um plano. Primeiro, preciso me armar. Depois, entender como funciona a cidade agora. E, o mais importante, achar um lugar que eu possa chamar de meu e que seja seguro. De preferência, um lugar que eu consiga defender sozinha, pelo menos até, quem sabe, encontrar mais pessoas em quem eu possa confiar.
Continuo seguindo pela avenida. Algumas placas atrás indicaram que há um bairro chamado Solidariedade nessa direção. Eu me lembro vagamente desse nome, mas sei que fica bem afastado do centro. Isso já é um bom começo.
O mais engraçado – ou talvez o mais trágico – é que viver assim parece coisa de série pós-apocalíptica. Nunca imaginei, nem nos meus piores pesadelos, que estaria andando sozinha entre carros abandonados, tentando sobreviver. Vagando como uma nômade. Caçando ou encontrando minha própria comida.
Durante o trajeto, cruzo com vários mamíferos. Eles passam por mim como se a natureza quisesse me mostrar o império particular que reconstruiu na nossa ausência. Desde que eu não cruze com um réptil ou felino grande, ela pode se exibir o quanto quiser.
"Sério isso? Você vai ficar me seguindo até quando, garota?" Falo em alto e bom som pra que a pessoa escute.
Nada. Silêncio.
Giro nos calcanhares e encaro a caminhonete a alguns metros de mim.
"Se você quer fazer algo, essa é sua chance. Eu ainda estou com meu arco nos ombros."
Finalmente, a garota aparece, e meus olhos se voltam para o metal reluzente em sua mão trêmula, deixando claro que ela provavelmente não sabia nem manusear sua arma.
"Como... como você sabia que eu estava te seguindo?" A jovem pergunta, confusa.
"Você realmente não estranhou eu não ter olhado para trás nenhuma vez durante o caminho?" Ela me encara, desconcertada. "A gente tá cercada de carros, e a grande maioria tem retrovisores."
Seu rosto se ilumina, como se notasse somente agora o seu deslize.
"Se você sabia que eu estava te seguindo, por que não tentou fazer nada? Eu poderia ser perigosa..."
"Verdade, você poderia mesmo. Mas acho que não me deixaria chegar até aqui caso quisesse me fazer algum mal, estou certa?"
"Talvez..."
"Qual o seu nome?"
"Por que eu falaria o meu primeiro?"
"E faz diferença? Arrgh, ok, meu nome é Amanda."
"Hm..." A garota guarda a arma, parecendo envergonhada. "Giovana."
"Por que você tá me seguindo?" Pergunto de braços cruzados. Inofensiva ou não, ela me seguiu.
"Eu... eu vi você saindo de uma escola mais cedo, e decidi ver pra onde você iria..." Ela parece bem envergonhada em dizer isso em voz alta.
"Sério? Desde aquela hora você tá me seguindo?" Ergo as sobrancelhas, impressionada.
"Sim, olha, será que dá pra você parar de me lembrar disso?" Seus olhos parecem estudar cada pedrinha no asfalto, criando todo um catálogo mental para não ter que me encarar. "Você é daqui?"
"Se por 'ser daqui' você quer dizer viver na cidade, não. Eu estou só de passagem, indo pro sul pra pegar a rodovia que leva à próxima cidade." Minto descaradamente, mesmo que a parte sobre ir pro sul da cidade seja verdade.
"Hm." Ela dá de ombros, como se quisesse me dizer algo, mas não soubesse como. "Se você quiser, eu posso traçar um caminho mais seguro pra você... tem um mapa aí?"
"E o que tem de errado com esse caminho que eu estou indo?"
"Nada, só não é o mais... seguro."
"Mas é o mais rápido, não é?"
"Sim, é. Mas uns 4 quilômetros à frente tem uma área onde costuma haver saqueadores. A gente sempre toma outra rota quando vamos pro sul da cidade."
"Espera aí, 'a gente'? Você vive com mais pessoas?" pergunto, ao mesmo tempo que sinto um leve salto no peito.
Giovana, que tinha aberto a boca para começar a falar, fecha imediatamente, provavelmente sentindo o mesmo tremor que eu senti.
Mais uma vez.
É como se um gigante estivesse andando bem devagar.
Mais uma vez.
"Vem, corre!" Sem aviso, a garota segura minha mão e me puxa para si, e quando me dou conta, já estamos correndo em direção a alguns prédios do outro lado da pista.
O tremor continua, agora mais distante, mas ainda presente, em intervalos maiores. Quando chegamos próximas de uma oficina, Giovana se agacha perto de um trator, me obrigando basicamente a ficar ao seu lado enquanto o tremor vai embora.
"Por que... corremos? O que... foi aquilo...?" pergunto esbaforida. A corrida, mesmo curta, foi intensa.
"Eu também... não... não sei ao certo." A garota luta para conseguir formar uma frase, parecendo tão cansada quanto eu. "Desde que vim para cá, sempre... me aconselharam a correr quando sentisse o chão tremer. Eu apenas corro, não sei de quem ou de quê exatamente."
Ela me encara. Eu não tinha notado que seus olhos são da mesma cor que os meus.
"Você ainda quer seguir por aquele caminho?"
"Eu acho que ainda vale a pena tentar." Apoio minhas costas no pneu e a olho de volta, sem conseguir evitar o sorriso pela situação absurda. A garota corresponde e imita meu gesto, sentando-se ao meu lado.
"Olha... Você realmente não parece ser uma pessoa ruim. Sim, eu poderia ser uma assassina louca psicopata te seguindo, que poderia ter te matado, mas... parando pra pensar, você também sabia onde eu estava o caminho todo. Se quisesse, poderia ter me emboscado." Ela inclina a cabeça em minha direção, alguns fios caindo em seu rosto por conta da leve brisa. "Você tá sozinha há muito tempo?"
De imediato, pensei em mentir, mas Giovana é aquele tipo de pessoa capaz de derrubar qualquer escudo com seu jeito. Mas antes, eu preciso confirmar algo...
"Eu me encontrei com duas pessoas recentemente... Qual era o nome delas mesmo? Ana e... Sarah! São um casal. Você as conhece?"
Claro que eu me lembrava do nome das duas nitidamente, principalmente o de Sarah, que ainda latejava em minha perna.
"Não. Quer dizer... Temos uma Ana no nosso grupo, mas ela é uma senhora. Não acho que esteja saindo por aí escondida para namorar." Ela sorri, e a sinceridade parece pintar cada traço do rosto da garota, que, aliás, tenho que admitir ser muito bonita.
"Nunca se sabe." Provoco, e nós duas caímos na risada. "E sim, tô sozinha há alguns meses já."
"Hm..." Nossos olhares se cruzam novamente, e antes mesmo dela me dizer, já sei qual rumo isso vai tomar.
"Então... aquele mapa que perguntei agora há pouco, tem ele aí?"
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