Capítulo 2: Só não me machuque - Parte 1/2
A luz fraca do amanhecer começa a surgir timidamente no horizonte, colocando alguma cor no breu da casa. Traço um pontilhado nas finas linhas do mapa apoiado na mesa de centro da sala, tentando construir um caminho mental que faça sentido na minha cabeça.
"Ai...", sussurro, manhosa, passando uma das mãos atrás do pescoço e movendo-o em círculos para amenizar um pouco da dor. A cama realmente estava uma delícia, e mais limpa do que eu esperava, mas a parede em que cochilei antes parece que acabou comigo...
"Tá, se eu estou lendo isso certo, dá para chegar em Urbiserra sem usar a rodovia", concluo, satisfeita com o resultado dos meus rabiscos.
Dois anos atrás, quando comecei a aprender a usar outras formas além do GPS para me orientar, eu chorava com frequência, desesperada por não saber por onde estava indo, ou se os lugares que ia encontrar eram os certos. Hoje me sinto mais segura quanto a isso. Meu senso de direção melhorou bastante, me deixando um pouco menos dependente de sorte ou da minha intuição.
Dou um longo gole na minha garrafa d'água antes de guardá-la novamente na mochila junto com o mapa, sentindo-me pronta para ir. "Olha... quem quer que tenha vivido aqui, muito obrigado pela noite, e... acho que pela refeição também", me despeço, baixinho, na esperança de que me ouçam de onde quer que estejam.
Ajeito a mochila nas costas e o arco atravessado no ombro enquanto dobro a primeira esquina à direita, em direção a Urbiserra. O caminho se estende no que parece uma rua sem fim. Os únicos sons que me acompanham são o suave farfalhar das folhas molhadas sob meus pés e o ruído da vegetação rasteira que rompeu o concreto e agora abraça a cidade como um tapete felpudo.
Acho um pouco engraçado como estruturas humanas só têm graça quando estão funcionando. Vale Verde era nitidamente uma cidade projetada para o turismo antigamente. Vários parques e quadras circundam boa parte dos quarteirões por onde passo, provavelmente dando um toque muito charmoso em tempos fartos, quando as pessoas aproveitavam seus dias de folga ou os finais de tarde para passear com seus filhos, ou talvez até fazer piqueniques românticos.
Mas, sem manutenção, tudo é como um cemitério. Vez ou outra, quando me deixo levar pela imaginação, até consigo avistar alguns vultos entre uma moita ou outra, como se fossem crianças curiosas espiando um adulto fazendo algo super interessante.
Mesmo que quase imperceptível, meus olhos captam vislumbres de movimento no céu distante. Curiosa, foco um pouco mais o olhar e percebo uma série de silhuetas aladas pairando contra o fundo azul marinho do horizonte.
Pássaros. Suas asas cortam os céus, descrevendo círculos graciosos na penumbra com suas formas elegantes.
"Vocês têm sorte...", brinco enquanto vejo-os desaparecerem entre as nuvens. Sem que eu perceba, uma nova melodia se junta aos sons do vento e da vegetação ao meu redor, escapando diretamente dos meus lábios.
Então, as palavras — aceitando o convite da canção — embarcam na minha voz, rouca e hesitante pelo pouco uso tão cedo na manhã, e ecoam pela paisagem ao meu redor.
"A Horse with No Name," do grupo America.
Aos poucos, permito-me perder-me na música, deixando minha voz me transportar para longe, mesmo que por um breve momento. A recompensa vem quase de imediato, trazendo-me um impulso de energia e leveza.
Com um sorriso tímido nos lábios, começo a ensaiar uma dancinha discreta enquanto continuo a caminhar. Meus passos se tornam mais leves e cadenciados, juntamente com meus movimentos, que seguem o ritmo da melodia, criando uma coreografia improvisada que se desenrola sob o crepúsculo da madrugada.
E assim, abrindo mão do mapa mental e usurpando a canção como minha trilha e a dança como minha expressão, sigo adiante, deixando que a alegria e a esperança me guiem pelo caminho à frente.
(...)
"Sai, xô!" Faço um movimento com a mão, tentando chispar o macaco que se aproximou, sorrateiro, de olho na minha mochila.
"Sai daqui, cara, como você é chato!"
Ele não para! O bicho simplesmente resolveu pegar eu para cristo, balançando o galho da árvore e criando uma chuva artificial bem na minha cabeça. Ele até que é engraçadinho. Seu pelo me lembra café com leite, e o seu topete escuro dá a ele um ar pomposo e travesso.
"Você deve estar comendo bem melhor que eu, não é?" questiono. E, mesmo que de alguma forma ele pudesse responder, não poderia contestar. De fato, para um macaco desse tamanho, ele é muito pançudo.
De repente, sinto meu corpo entrar em estado máximo de alerta. Assustada, tropeço sozinha e perco o equilíbrio quando escuto uma movimentação na vegetação próxima. Não vai dar tempo de pegar meu arco no ombro e armar uma flecha, mas saco minha faca do coldre na coxa.
Sinto a empunhadura familiar do objeto se encaixar nos meus dedos, trazendo um certo conforto, mesmo que o que esteja escondido no mato possa me matar com mais facilidade do que eu gostaria.
Os barulhos se aproximam perigosamente rápidos e, antes que eu consiga sequer forçar algum movimento com os braços, mais quatro macacos pulam na árvore à minha frente.
"Filhos da..." começo, mas paro no mesmo instante. "Meu Deus..." sussurro, soltando o ar com força, como se tirasse o peso de um trem de carga das minhas costas. Consigo sentir meus olhos quase saltando das órbitas, e minha boca seca em um espaço de tempo que eu nem sabia ser possível enquanto tento, desesperadamente, parar de tremer.
Os pequenos primatas se divertem, abrindo a boca em um largo sorriso e batendo palmas com suas mãozinhas em formato de conchas, produzindo um som abafado.
"Muito engraçado mesmo, hahahaha," reclamo enquanto faço um certo esforço para levantar, batendo as mãos na calça para tirar a sujeira. O susto foi tão grande que minhas pernas estão até meio moles, então permaneço parada alguns instantes, me recuperando.
O primeiro macaco me encara, curioso. Seus olhos passeiam pelo meu rosto antes de, por algum motivo, descer da árvore e começar a se aproximar de mim, receoso, equilibrando-se perfeitamente nas duas pernas, como um ser humano.
Resolvo retribuir o gesto e dou dois pequenos passos em sua direção, cuidadosa para não assustá-lo. Eu nunca havia chegado tão perto de um macaco assim na minha vida. Quer dizer, já fui algumas vezes no bosque e tudo mais, quando morava no interior com minha família, mas assim, tão próximo? Está sendo minha primeira vez.
E, ao que parece, é a primeira vez do amiguinho também, pois, a cada pequeno avanço, ele estica sua palma para mim, como se estivesse me dizendo que não quer briga. Aceito o gesto e, como forma de retribuir, me agacho, esperando que ele venha até mim no ritmo dele.
Seus dedinhos cutucam meu joelho uma, duas vezes, e sinto a leve pressão por cima do meu jeans. É quase impossível segurar o sorriso a partir desse momento. Confiante, o macaco então passa o braço ao redor da minha perna e, em um gesto completamente inusitado, a abraça rapidamente, antes de retornar correndo para os amigos e sumir pelo mesmo caminho que vieram, se infurnando no meio do mato.
O motivo dele ter feito isso? Não sei, mas minha pele continua quente onde seu pequeno corpo se aconchegou. Será que foi ele tentando se desculpar de alguma forma? Não sei dizer. Foi a atitude mais fofa que recebi desde que tudo começou, então, em um rompante de estranheza, resolvi nomeá-lo de César, como o do filme mesmo.
Quem sabe, caso o resto da humanidade sucumba para os Ocultos, eles possam ser a próxima geração a dominar o mundo e acertar onde nós erramos... Quem sabe, serem melhores do que nós.
Inclusive, eu já ia me esquecendo o motivo de ter me aproximado dessa árvore.
Apoiada no espaço entre um tronco e outro, pego minha garrafinha, agora cheia de água graças a folha que pingava o líquido, imitando um filtro natural improvisado. Dou um longo gole, sentindo o frescor descendo pela minha garganta junto com um gosto de planta e terra. Provavelmente eu deveria ter parado, feito uma fogueira e esquentado a água, mas não quero perder tempo.
Ao longe, a cidade de Urbiserra já está visível aos meus olhos. Já está próximo de amanhecer, e os raios de sol que surgem no horizonte são refletidos pelos enormes arranha-céus da cidade abandonada, dando um brilho especial aos edifícios fantasmas.
O céu, agora pincelado com tons de laranja e rosa, forma linhas suaves que vão do brilho tímido do sol prestes a nascer até a escuridade do lado oposto. Satisfeita, guardo o recipiente de volta na bolsa e volto para a estrada, rumo à grande capital.
Os pelos do meu braço arrepiam sempre que o vento gelado me alcança, espalhando algumas folhas e poeira no ar, e enchendo meus pulmões com seu ar puro e bem-vindo.
Caminhadas assim, que antes eram feitas por questões de saúde ou alguma ambição física, hoje fazem parte da minha rotina, e posso dizer que me ajudam a manter a cabeça no lugar. Tento não pensar muito que, provavelmente, eu devo estar sozinha em um raio absurdamente grande.
Toda aquela baboseira antiga de que a natureza é a melhor companhia nunca ficou tão escrachado na minha cara como agora, em que vivo nesse mundo.
Natureza uma ova.
Tive várias crises de pânico e surtos até chegar onde cheguei. Sinceramente, não sei nem como me mantive viva. Eu sempre tive um círculo social farto, pessoas que de fato eu me importava e que eram importantes para mim. Hoje, essas memórias são como sapatos velhos guardados em alguma gaveta empoeirada na minha cabeça, rodeados por outros mil pensamentos em como ficar viva a cada maldito dia.
Para onde quer que eu olhe, tudo parece vivo, e ao mesmo tempo morto. A natureza, é claro, veio buscar o que lhe pertence, engolindo cada pedaço de cimento disponível no chão. Mas, mesmo estando com sua fauna no auge desde muito tempo, ela se tornou um lugar extremamente solitário para se viver como ser humano
Talvez fosse assim que os animais se sentissem quando nós éramos a espécie dominante. Mas, sinceramente, não é nem um pouco justo. Não temos o porte físico de uma onça para disputar comida ou território. Não temos as asas de um pássaro para viajar mais rapidamente, muito menos os olhos de um gato para enxergar no escuro.
Dominamos o fogo? Sim. Também conseguimos nos adaptar a ambientes com maior facilidade, e nossa tomada de decisão racional nos impede, às vezes, de fazer besteira. Mas, cara... Ainda assim, quando tudo isso é colocado à prova, eu me sinto uma ameba.
Tudo parece difícil e complicado, e, de fato, é. Ainda mais quando cada decisão sua te leva a apenas dois caminhos: viver ou morrer.
"Não..." Balanço um pouco a cabeça, tentando dissipar esses pensamentos.
E ainda tem mais isso! Muito dificilmente, quando estou divagando, não sou levada a pensar coisas ruins. Levar minha mente para possibilidades desastrosas não é difícil; o difícil é voltar à realidade depois de ter feito isso e dizer a mim mesma que, mesmo sendo falha em diversos pontos, se estou viva hoje é porque pelo menos o mínimo eu faço, e faço bem.
Após mais algumas poucas horas de caminhada, finalmente a cidade que antes era só uma silhueta no horizonte ganha contornos mais nítidos. O amanhecer trouxe consigo não só tons de laranja no alto dos edifícios, mas também uma brisa gelada que teima em se infiltrar através do meu moletom, causando-me leves arrepios.
Se fosse um dia comum, como no passado, com certeza essas horas pediriam uma coberta quente, Netflix e doces. Meu corpo, por mais que tenha sido adaptado forçadamente a uma rotina bem diferente daquela que eu tinha, ainda tem lampejos do que é desfrutar de uma manhã tranquila, mesmo que só nos pensamentos.
Instintivamente, coloco as mãos nos bolsos do agasalho, sendo recompensada pelo toque quente do tecido, e começo a mexer meus dedos de forma aleatória, para ver se ficam um pouco mais aquecidos.
Urbiserra, ou "cidade boreal" como era conhecida nos seus tempos de glória, foi a maior cidade do Brasil, resultado da união de duas cidades já grandes por natureza: Monte Paulo e Lago Valverde. Eu costumava viajar frequentemente para cá a trabalho, então estou um tanto quanto familiarizada com uma parte da cidade — ainda que pequena, levando em conta seu tamanho colossal.
Olhar para tudo isso assim, à distância, destruído, me causa uma sensação estranha. É como se uma parte muito importante de quem eu fui tivesse sido arrancada de mim sem a minha permissão. Não é como se eu tivesse um apego emocional ao lugar; como na maior parte do tempo eu estava apresentando a cidade aos turistas, dificilmente sobrava algum tempo para o meu lazer. Mas, considerando o emprego que eu tinha e o trabalho que fazia, não foi tão ruim passar momentos aqui.
À esquerda, a rodovia que abraça a cidade começa a se elevar como grandes teias de caminhos através da paisagem. Ela leva para a rodovia estadual e, caso se aventurasse por ela, à municípios próximos.
Minha confiança, aos poucos, cresce. Uma sementinha minúscula, mas ainda assim, eu conseguia senti-la: ela está aqui, pulsando pequenas ondas de ansiedade por todo meu corpo, entupindo meus pensamentos com a possibilidade de, finalmente, encontrar algum lugar fixo, onde eu pudesse me estabelecer e, enfim, dar um basta no meu estilo de vida nômade.
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