O programa do Sr. Urso
"Caralho, Han. Você é mesmo um imprestável, eu nunca deveria ter te contratado para trabalhar nessa gravadora. Parece que é um estagiário perdido na vida, não sabe o que está fazendo? Trabalha direito, inútil!"
Esse é o tipo de coisa que escuto do meu chefe todos os dias. Preciso trabalhar até nos sábados o dia inteiro para receber um salário miserável e ser humilhado por um rico engravatado.
A minha sorte é que eu moro com meu melhor amigo que sempre dá um jeito de me animar, Hwang Hyunjin.
― Hanji! ― ele deu um tapa leve na minha nuca. ― Vamos assistir um filminho de terror hoje?
― Uma hora dessa, cara? São meia-noite, daqui a pouco é o horário o capiroto. ― Eu coloquei a mão sobre a nuca.
― Tu é cagão demais ― Hyun se jogou no sofá ao meu lado e pegou o controle ― Você não sabe o que eu achei...
Hyunjin colocou na televisão o filme "Ursinho Pooh: Sangue e Mel". Eu bufou e começou a reclamar.
― Já disse que não vou assistir essa bomba com você. Qual essa sua tara com coisas de terror envolvendo infância?
― Deixa eu explicar, seu boboca! Esse filme aqui foi dublado por uma casa de apostas e eles não tinham dinheiro pra uma dublagem decente, então todos os personagens tem a mesma voz em tons diferentes. Não é zika?
― Me convenceu.
Eu dei play no filme e nós começamos a assistir a maior obra audiovisual já vista no mundo. Ao invés de gritos, os vizinhos ouviram muitas risadas vindas do nosso apartamento. No final do filme, nós estavámos com a barriga doendo não só por rir muito, mas também de fome.
― Hyun, tá com fome? ― Perguntei.
― Bastante.
Eu levantei e fui pra cozinha fazer um lanche. Hyunjin não cozinhava muito porque não conseguia nem fazer uma torrada sem deixar o pão com cor de carvão, então eu preferia comer comida gostosa feita por mim do que ter uma intoxicação alimentar, e Hyunjin achava o mesmo.
― Sabe o que esse filme me lembrou? ― Entreguei um misto quente para Hyunjin, que enfiou metade do pão na boca. ― O programa do Porão do Senhor Urso.
Hyunjin franziu o cenho e falou algo que não entendi por estar de boca cheia. Eles ficaram um tempo se encarando até Hyunjin engolir o pão enquanto ele levantava a palma da mão como um sinal de "espera".
― Do que você tá falando?
― Não lembra? Caledon Local 21, aquele canal de televisão da cidade vizinha.
― Cara, não faço ideia do que é isso.
― A gente via junto o programa do Senhor Urso toda vez que você ia na minha casa, como não se lembra? ― Passei a mão sobre minha testa.
― Lembro da gente ver televisão, mas não o que a gente via.
― Tudo bem, vou dormir agora. ― Guardei o que foi usado para fazer o pão dentro da geladeira e fui andando para meu quarto.
Hyunjin perguntou se eu não comeria nem um pãozinho antes de dormir, mas neguei.
Deitei em minha cama e fechei meus olhos, mas o sono não vinha. Então comecei a pensar em diversas coisas. Uma delas que mais martelava em minha mente era o trabalho.
Mas pensar no trabalho me deixava com um sentimento ruim, afinal era isso que fazia todos os dias durante o dia inteiro, trabalhar. Quando não estava trabalhando, pensava no trabalho. Quando recebia meu salário, comprava mais recursos para trabalhar. E aquilo era um loop infinito de trabalho que me deixava exausto. Mas não poderia simplesmente descansar, viver de arte não é fácil, ainda mais difícil quando se divide apartamento com seu melhor amigo, que também é artista.
Então todas as bolhas de pensamentos que pairavam sobre minha cabeça estouraram e apenas uma lá atrás restou. Uma grande e colorida bolha, que me esquentava nas noites mais frias. A infância.
Eu podia reclamar de qualquer coisa na sua vida, menos de minha infância. Eu me considerava a criança mais feliz do mundo, quando era pequeno sempre falava para meus pais que deveriam me colocar no guiness book por estar sempre feliz.
Só tinha uma coisa que me deixava chateado: ter que dividir a televisão com meus pais. Eu era um garotinho que só queria assistir o programa do Chaves, mas passava no mesmo horário que o noticiário que meus pais assistiam. Os amigos da escola sempre comentavam sobre os episódios, mas isso me impedia de fazer o mesmo.
Depois de tanta reclamação, os meus pais compraram uma televisão velha, de tubo e com antenas. Tinham apenas vinte canais, e nenhum deles passava o programa do Chaves. Não consegui me importar menos, pois fiquei fascinado no meu novo presente. A maioria dos canais era entendiante para um garoto de cinco anos que só pensa em se divertir, então eu apenas assistia ao canal dois, que passava Pokemón.
Mas eu não desistia, e por um mês todos os dias passava pelos canais a procura de algum outro desenho que me interessasse. Até que em um dia aleatório, consegui acessar o canal vinte e um chamado "Caledon Local 21". Tinham apenas desenhos infantis, então eu me divertia vendo tudo que passava ali até dar o horário de Pokemón, que era de lei.
Um tempo depois de manter a rotina de assistir esse programa, comentei com os amigos da escola sobre. Mas acharam os desenhos bobos, então só Hyunjin assistia junto comigo. Ele também descobriu que Caledon era uma cidade vizinha de onde nós morávamos, Brampton.
Em uma tardezinha, em minha casa, Hyunjin foi me visitar como sempre. Nós passamos a tarde vendo esse canal. Quando deu o horário de Pokemón, eu queria mudar de canal, mas Hyunjin estava tão entretido com a nova descoberta que implorou que não mudasse de canal, e eu cedi.
Então descobrimos um novo programa que passava no mesmo horário de Pokemón: O Porão do Senhor Urso. Esse era o único programa sem ser Chaves que tinham pessoas de verdade, e não desenhos. Por esse motivo, ficamos fascinados pelo programa, e passamos a assistí-lo todos os dias.
Eu me lembrava muito vagamente dos episódios, mas sabia que havia um padrão: Todos eram apresentados por um homem numa fantasia de Urso que recebia uma criança diferente todos os dias em seu porão.
Mas, alguns dos episódios do programa ficaram em minha mente.
Um deles começava com o Sr. Urso jogando damas sozinho. Ouviram-se batidas na porta que logo foi aberta, revelando duas crianças. Ele fez uma dancinha alegre ao ver eles ali e os três entraram para o porão, que era iluminado apenas por uma luzinha no teto. Eles cantavam uma música inaudível e depois iam brincar de esconde-esconde, mas assim que o Sr. Urso terminava a contagem, a transmissão era interrompida e outros desenhos começavam a passar.
O outro não era bem um episódio, mais um especial mesmo. Era um programa estúpido sobre uma sopa e uma colher, e tinham cenas bobas de uma colher perseguindo uma sopa. No final, uma mesa com sete crianças era revelada, cada uma delas com uma tigela de sopa. Mas as crianças não estavam felizes como aparentavam em outros episódios, estavam extremamente assustadas. O homem da câmera segurou a colher e disse "Colheres... Prontas?" então a gravação acaba.
Esse outro episódio foi muito mais divertido do que os outros na época, pois continham palavrões. Mas hoje Jisung pensa diferente, achava macabro do começo ao fim. A câmera mal posicionada mostra o Sr. Urso subindo as escadas do porão, mas logo a câmera apaga e volta em uma posição melhor. Havia um garoto falando com ele, mas pela voz parecia ser mais velho. Eles conversaram por um tempo, mas não pude ouvir muito por conta da má qualidade, até que o garoto começou a aumentar o tom de voz. Ele dizia que já estava tarde e que sua irmã deveria voltar para casa, mas o Sr. Urso respondeu "Sai fora, porra, você não foi convidado!". Sua voz estava diferente, não era aquela voz amigável dos outros episódios. O garoto começou a subir as escadas e disse que chamaria a polícia, mas o Sr. Urso correu atrás dele, gritando também. Então o episódio acabou. Eu e Hyunjin demos risadinhas quando o canal entrou em tela estática, o fato de ter palavrão em um programa infantil foi engraçado para nós.
Outro episódio era mais fresco na minha mente, já que era passado durante todo o mês de agosto. O episódio é apenas o Sr. Urso sentado em uma cadeira falando "Olá, crianças! Você quer visitar o meu porão? Se você quiser, por favor me escreva uma carta neste endereço!". Então trocava para uma tela com um endereço colorido. O meu pai pensava que o programa era legalzinho, então me deixou enviar uma carta para o Senhor Urso. Uma semana depois, recebemos uma resposta.
"Querido Jisung, muito obrigado por sua carta. Eu adoraria ter você aqui no meu porão! Nós iríamos brincar, ver filmes e fazer uma fogueira durante um acampamento no meio da floresta. Venha a minha casa em (... a polícia cortou este endereço...), Caledon, Ontário, Canadá. Espero muito poder me divertir com você! Com amor, Sr. Urso."
Mas quando chegamos no endereço, não encontramos o Senhor Urso, mas sim policiais intrigados na fachada da casa que estava cercada por uma fita de cena de crime. Meu pai conversou com o policial e depois me levou para casa, e essa foi a última coisa que lembrava sobre o Senhor Urso.
Eu peguei no sono depois de tanto pensar nessa parte de minha vida, que tanto me confortava.
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