Capítulo 9
A sacola de plástico branca balançava junto com as passadas de Manoela entre aqueles corredores intimidadores. Raramente se aventurava por essa parte do edifício. Acontecia apenas quando tinha que fazer alguma entrega como agora.
Alguns alunos passaram correndo por ela. Um deles, mais distraído, quase ocasionou um acidente, evitando apenas no último instante que os seus corpos se chocassem, o que fez a mulher segurar a respiração por um tempo maior e logo em seguida soltar um dos seus palavrões costumeiros em um idioma que o rapaz nem imaginava qual fosse.
Abriu a sacola verificando se o conteúdo estava em perfeita ordem e seguiu o seu trajeto sem mais problemas. Ao virar a esquerda, entrou no reduto dos docentes. Era um corredor extenso com várias portas que guardavam as salas privativas de seus professores. Cada uma delas diferentes em seus tamanhos. O que indicava a importância naquele lugar. A de Stephen não era a maior, porém, estava longe de ser a de menor significado, ficava estacionada no meio. Manoela procurava pela sala lendo os nomes gravados elegantemente em uma placa de bronze.
Quando estava exatamente no meio do corredor, foi capaz de ler: Prof. Weber, Literatura Inglesa. Encarou aquelas palavras com um suspiro de satisfação. Olhou de um lado para o outro. Corredor vazio, e agradeceu internamente por isso. Limitou apenas a dar uma batida forte contra a porta de cor preta. Instantes depois, escutou a voz do seu professor indicando que entrasse.
O professor Weber estava atarefado naquele princípio de tarde. Sua mesa em uma completa desordem, repleta de livros e documentos. Atrás dele, o cartaz de uma peça de Shakespeare encenada pela turma de teatro a qual dera a sua consultoria no semestre anterior, – não era raro fazer tal coisa, tendo em vista que as principais escolhas eram por obras dos famosos autores ingleses que Stephen dominava com a palma de sua mão – e a sua estante com os seus clássicos e os seus diplomas das diversas especializações que fez durante todos esses anos.
Em sua frente, ficava um sofá de dois lugares, com um estofado muito gasto em um tom de bordô desbotado, e ali repousava a sua maleta. Num mancebo próximo a porta estava o seu casaco de lã fria na cor chumbo. Nesse dia, Stephen estava usando uma de suas calças jeans um pouco mais escura, uma camisa azul clara e sobre ela um suéter gelo de botões na frente. Estava muito bonito, na opinião não apenas de Manoela como também de algumas colegas de ofício.
Manoela o encarou com um sorriso maroto. O homem nem tinha se dado ao trabalho de ver quem havia liberado para entrar em seu escritório, permaneceu concentrado no manuscrito em suas mãos e sentado ereto em sua cadeira de homem sério.
— Comida.
Manoela sacou que teria que dar o primeiro passo, e dessa forma, sem fazer muito barulho – os tênis sempre facilitavam esse processo – atravessou a sala e colocou quase que em cima do que ele lia a sacola de comida.
— Mas o que...
O professor ergueu o seu olhar com indignação, até que reconheceu quem era a pessoa que se atrevia a atrapalhar a sua concentração. Stephen detestava intromissão nesses momentos de leitura. Seus filhos e sua ex-mulher sabiam muito bem o que acontecia nesses momentos, e talvez por isso Elizabeth fizesse questão de interrompê-lo sem motivos, apenas sentia prazer em vê-lo irritado.
— Manoela?! O que faz aqui?
— Comida! — respondeu com mais entusiasmo — Sei que não comeu nada hoje. — e assim acomodou-se na cadeira a sua frente.
— Como tem tanta certeza disso?
— Segredo. Espero que goste de massa. Eu adoro!
— Está com um cheiro bom.
— Se não se importar, não tenho muito tempo... Podemos comer?
Stephen arrumou os óculos, passou a mão pelos cabelos e logo em seguida pelos lábios. Olhou para pilha de papéis em sua mesa e suspirou.
— Péssima ideia a minha, né?
Manoela levantou e retirou a sacola da mesa de Stephen, se sentindo uma completa idiota. Depois daquele final de semana eles mal se viram. As vezes que ele foi até o café – no total de duas, normalmente o professor Weber ia bem mais – não tiveram como trocar mais do que meia dúzia de palavras. Os horários por ele escolhido nessas idas coincidiram com os de maior movimento, o que impossibilitava Manoela de lhe dar atenção.
Stephen instintivamente evitou ir até um dos seus lugares favoritos naquela cidade – que teve de aceitar quando o seu casamento escorreu ralo abaixo. Ficar em Londres estava fora de cogitação por tudo o que havia acontecido, e sendo assim, resolveu aceitar o convite que há muito lhe fizeram e encarrou a vida tediosa em uma cidade pequena.
Quando a olhou atrás do balcão com aquele uniforme sentiu-se constrangido e preconceituoso. A garota era incrível, inteligente, uma amante lasciva, mas, mesmo assim, algo o impedia de sequer iniciar um diálogo com ela. Pegou o seu pedido limitando a retribuir o sorriso que lhe foi dado. Pensou que fosse algo do momento, afinal, tudo aconteceu tão rápido, e então decidiu que no dia seguinte iria chamá-la para conversar. Falhou. As mesmas sensações permearam as suas reações, e dessa forma, sentiu que teria de achar outro lugar para tomar o seu tão apreciado café. E agora ela estava ali, diante dos seus olhos e com uma sacola de comida entre as mãos, lhe atrapalhando no seu momento sagrado. E só o que ele pensava era apenas em jogá-la sobre a sua mesa e possuí-la como fizera no apartamento.
— Pelo contrário. — ele respondeu. — Foi a melhor de todas. O que tem aí?
— Não precisa fazer isso se não quiser.
— Fazer o que? Comer? Certamente eu quero comer.
— Aprecie o fettuccine a carbonara.
Manoela devolveu a sacola para mesa e fez menção de sair da sala. Antes que pudesse girar a maçaneta, as mãos dele alcançaram as suas.
— Normalmente eu não sou essa pessoa tola, devia ter entendido que você não queria mais me ver. — Manoela desvencilhou do contato de suas mãos e manteve o olhar baixo.
— Nunca disse isso.
— E precisa? Suas atitudes já demonstraram, eu apenas não quis compreender. — agora ela o olhava com intensidade.
— Esqueceu que eu sou um completo idiota? — Stephen lhe devolveu um olhar triste.
— Talvez não seja. Talvez a única idiota aqui seja eu!
Stephen, em um gesto rápido, segurou o seu pequeno rosto e roubou-lhe um beijo, murmurando um pedido de desculpas pela sua atitude de indiferença.
— Gosta de resolver as coisas com beijos, professor?
— Não. Mas nem todas as pessoas com quem discuto fazem com que eu queira beijá-las.
— Que peste! — Manoela riu alto e lhe deu um tapa leve no braço. — Então vamos comer? Não gosto de comida fria.
— Vamos. Apenas não sei como vamos fazer isso.
Manoela piscou e correu até a mesa, pegou de volta a sacola e sentou no sofá. Retirou de dentro duas embalagens descartáveis. Estendeu uma para Stephen que permanecia de pé a sua frente e lhe passou talheres, também descartáveis.
— Dessa forma. — Manoela abriu a sua embalagem e o cheiro do fettuccine veio com mais força. Enrolou com o seu garfo alguns fios do macarrão e levou até a boca. — Não é bom comer em pé, devia se sentar. Olha... Isso está muito bom.
Stephen se acomodou do seu lado e se serviu do alimento. Stephen gostava de peixe feito de qualquer forma, mas deixou que aquela iguaria da culinária italiana matasse a sua fome, que só foi notada assim que começou a comer.
Quando terminaram, sem nenhuma discussão, Manoela andou pelo seu escritório olhando os seus objetos. Estava sendo interessante para ela conhecer um pouco da intimidade daquele professor.
— Quantas trouxe para cá?
— Desculpa, não entendi.
— Quantas alunas você trouxe para a sua sala?
— Muitos alunos vêm até aqui... — ao ler o rosto dela percebeu o que Manoela sugeria. — Quer saber se já transei com alguma aluna aqui?
Manoela fez um gesto com o ombro e virou de costas, seguindo para a mesa toda empilhada de papéis.
— Eu sei que você sai com algumas. Mas faz tempo que isso não acontece. E tem também uma professora que se vocês não transam ela morreria por isso.
— Tenho medo de perguntar como sabe disso tudo.
— E descobrir que sou uma maníaca assassina? — voltou-se para ele com os olhos esbugalhados e rindo logo em seguida.
— Está dando fortes indícios.
— Apenas observo, professor. — tonou a dar de ombros e seguiu com a sua inspeção.
— Ainda não entendo porque me chama assim.
— É o que você é. — ela o provocou. — Quem são?
Manoela pegou da mesa dele um porta-retratos e virou mostrando a imagem contida. Stephen, nesse momento, levantou do sofá e foi até a sua direção, retirando das mãos dela o objeto e o colocando de volta no lugar em que estava.
— São meus filhos. — respondeu de forma seca.
— Você é casado? Olha...
— Divorciado. Já tem uns seis anos. — sentou-se novamente em sua cadeira atrás da mesa – repleta de trabalhos para serem analisados até o final daquela semana.
— Moram em Londres? — Manoela apoiou-se na mesa olhando para o professor com mais interesse.
— Com a mãe, ela ficou com a guarda. Então, o que pretende fazer hoje à noite? — Stephen passou as mãos sobre as pernas e a encarou.
Essa não era a intenção de Stephen, de propor qualquer coisa para Manoela, mas se sentiu obrigado já que não pensou em nada melhor para mudar o rumo daquela conversa. Falar sobre os filhos não era algo que gostava de fazer. Manoela entendeu o recado e não insistiu.
— Dormir. A não ser que algo inusitado aconteça.
— Janta comigo? Agora é a minha vez de retribuir a sua gentileza nesses últimos dias.
— Sabe que não precisa fazer isso, podemos muito bem nos despedir aqui.
— Não quero me despedir de você.
— Sendo assim, aceito.
— Vou cozinhar para você. Chega de comer essas comidas.
Manoela ia lhe responder, mas foi interrompida por uma batida forte na porta, e sem um tempo de espera suficiente para que o casal pudesse se afastar – mesmo sem estarem fazendo nada de mais, com Stephen sentado em sua cadeira e Manoela encostada na sua mesa com as pernas bem próximas a deles, – a porta foi aberta e esse detalhe não passou despercebido pelos olhos ávidos do diretor Brown.
— Weber, preciso daquele relatório... Desculpe, não sabia que estava ocupado. — Brown parou no meio da sala encarando com cuidado os dois.
— Uau! — Manoela olhou para o relógio em seu pulso e deu um pulo da mesa — Estou atrasada. Preciso ir. — passou pelo senhor de pouco mais de sessenta anos, alto, mais do que Stephen, careca e com uma barba branca espessa e olhos azuis quase transparentes. O homem a intimidava, não gostou dele. — Até mais tarde.
Dessa forma, como se fosse um hóspede indesejado, pegou as sacolas com as embalagens vazias e saiu daquela sala querendo desaparecer. O diretor Brown, Jonathan Brown, fixou os seus olhos em Stephen com um misto de curiosidade e repreensão.
— Estava acontecendo o que estou imaginando? — ele questionou Stephen assim que ficaram sozinhos.
— Não.
— Não seria a primeira vez que um professor faria esse tipo de coisa com uma aluna.
Brown sabia muito bem disso, até porque aconteciam algumas escapulidas em seu próprio escritório no final daquele corredor. Apesar da idade, ainda era um homem muito atraente e bem relacionado. E o que acontecia naquela sala era mais uma troca de favores.
— Ela não é uma aluna, e não aconteceu nada disso. Só veio me trazer o almoço.
— Não é uma aluna? Podia jurar que já vi esse rosto antes.
— Deve ter visto mesmo. Ela trabalha na cafeteria no início do quarteirão. — Stephen tentava manter uma expressão neutra, embora dentro do âmago queria gritar para que aquele homem lhe deixasse sozinho.
— Não sabia que eles serviam refeições desse tipo.
— Não servem. O que você quer mesmo? Os relatórios? Estão quase prontos.
— Está certo. — Brown entendeu perfeitamente a mudança de assunto por parte do seu professor de literatura inglesa. — Espero até o final do dia.
O diretor Brown deixou a sua sala sem fechar a porta, o que forçou Stephen a levantar de sua mesa para fechá-la. Antes, saiu no corredor e encarrou o vazio. Passou as mãos pelos cabelos ao mesmo tempo em que se questionou:
— O que estou fazendo?
Sem ter uma resposta, voltou para a sua sala e enfiou novamente o nariz entre os seus papéis, terminando o seu relatório a tempo de poder sair mais cedo e comprar os ingredientes que precisava para fazer o jantar de despedida para Manoela. Naquela noite colocaria um ponto final nessa aventura sem futuro. Assim esperava Stephen.
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