Capítulo 14
Não estava nevando naquela noite. Faltava um mês para que isso acontecesse. Dentro do quarto o aquecedor mantinha o casal em uma temperatura prazerosa, tanto que Stephen ainda se permitia ficar sem a camiseta, apenas usando uma cueca. Ele observava Manoela deitada de lado embaixo do lençol com uma de suas regatas.
— Stephen... — ela o chamou estendendo a mão em sua direção. — Não precisa falar sobre isso.
Ele acomodou a sua mão dentro da dela, desviando o olhar para esse ponto de junção entre os seus corpos. Stephen teria de encarar o seu passado. Nos relacionamentos que seguiram, após o término do seu casamento, não lhe veio essa necessidade de falar sobre o ocorrido. Mantinha tudo no suspense.
Não sabia explicar o que estava acontecendo em sua cabeça, apenas sentia que ela merecia conhecer essa parte de sua história.
O professor desejava mostrar-se imparcial sobre aquilo que relataria. Como se a história que seria narrada não fosse a dele, e sim de um personagem criado pelo seu imaginário. De certa forma, era o que acontecia quando essa questão vinha à tona.
Stephen havia inventado um personagem para si, e Manoela estava sendo apresentada a ele.
Voltou no tempo. Foi parar em Cambridge, quando ainda era apenas um estudante de um curso que o seu pai não aprovava, e tinha Christopher, o primo três anos mais velho que fazia o curso tão idealizado para o seu primogênito.
Christopher e Stephen. Dois opostos que se repeliam. Christopher Weber, o prático, astuto e estrategista. Desde muito jovem fora moldado pelo seu pai para assumir os negócios da família. Não era um rapaz desagradável, pelo contrário, tinha carisma e persuasão, o que compensava a falta da beleza física onde Stephen se destacava até entre os irmãos mais jovens. Tímido, quieto e introspectivo esse era e ainda é, em certos momentos, Stephen Weber.
Em uma festa universitária a vida de Stephen seria sacudida. A garota já era figura conhecida, Christopher também era nesses eventos entre os estudantes. A exceção estava em Stephen. O Weber mais novo ainda preferia a companhia dos seus romances do século dezoito a uma festa regada de bebida, drogas e rock & roll. Fora convencido naquele dia a abandonar qualquer uma das irmãs Brönte, e foi dessa forma, que conheceu uma Felton.
Elizabeth ganhou a sua atenção. Primeiro pelo nome, um tanto óbvio para um admirador de Elizabeth Bennet, e depois pela sua beleza clássica. Olhos quase verdes e cabelos castanhos claros até o meio das costas, com alguns cachos na ponta. Esguia e tão alta quanto ele. Não foi muito difícil para ela se fazer notar pelo seu alvo: o Weber bonito. E dessa forma, direcionou toda a sua energia em conquistar o garoto recluso.
Sempre atenta, Elizabeth tocou em seu ponto fraco: os romances antigos. E como uma estudante de artes, fez com ele uma viagem ao passado que tanto ansiava. Stephen agora tinha alguém que lhe escutava e se entusiasmava com as mesmas coisas. Foram a museus, clubes de leituras e peças de teatro shakespeariano.
Terminaram a graduação já noivos, e em poucos meses o casamento foi realizado no gramado do casarão que seu tio herdou quando seus avós faleceram. E em menos de três anos de união já tinham Charlotte e Timothy.
Elizabeth estava feliz com a colocação do marido dentro da empresa da família, ignorando o fato de que Stephen detestava tudo aquilo. Ser um dos executivos nunca foi a sua intenção, mas esse era o acordo feito com o seu pai antes de entrar para universidade, e também para que pudesse seguir com os seus estudos em literatura que nada tinha a ver com o que executava diariamente nas empresas de sua família.
O romance iniciado antes mesmo de ter ingressado na universidade, repousava intocado dentro de uma gaveta. Nos raros momentos de isolamento, Stephen voltava a rabiscar algumas palavras perdidas na imensidão de suas aspirações.
Stephen tinha o sonho de ser um escritor como a sua avó. E cada novo dia que iniciava sentia que estava mais distante de realizá-lo. Sentia falta dela, sabia que se ela estivesse viva o seu sonho seria possível.
Elizabeth – nessa época ainda uma apaixonada por Stephen – percebia o desânimo do marido e fez um acordo que possibilitaria essa retomada em seus desejos. Stephen se agarrou naquilo. Então, ocorreu outra morte na família. Seu tio, o diretor-geral das empresas Weber, havia lhes deixado.
O pai de Stephen sentiu que aquele era o seu momento, porém, o tio já havia se antecipado e Christopher, seu filho, ficou com o cargo por unanimidade. Levando o pai de Stephen quase ao desespero e desgosto.
O primo, agora detentor do poder, sabia dos sonhos do primo e em uma jogada estratégica de afastá-lo das decisões da empresa ofereceu ser seu mecenas. Stephen, maravilhado com essa possibilidade de poder dedicar-se ao seu romance em período integral, se trancou no sótão do seu lar por dois anos.
Tanto o seu pai, quanto Elizabeth foram contra. Acharam tudo aquilo uma loucura, uma completa idiotice por parte de Stephen. O jovem escritor ignorou as lamúrias, tinha apenas a atenção voltada para o seu romance.
Os filhos cresciam e o pai mal os via. Aconteciam apenas encontros ocasionais na mesa do café da manhã e alguns esbarros nas escadas do sobrado. Houve momentos em que as crianças nem o reconheciam. Elizabeth se revoltou. As brigas e insultos começaram a ser diárias. O sexo entre eles praticamente inexistente. Então, um dia ela parou. Ficou em silêncio.
Um silêncio destinado apenas a Stephen. Elizabeth saia praticamente todas as noites. Fez dietas, frequentava academias. Seu corpo ganhou peitos novos. Os cabelos ficaram mais loiros e com um corte moderno. Suas roupas mais sofisticadas. Stephen, por um momento, se questionou sobre como estavam pagando por tudo aquilo. O que o primo lhe enviava era mais do que satisfatório, porém, estava abaixo da vida que a esposa vinha ostentando. Deixou-se levar pela ilusão de que vinha da galeria de arte que ela comandava.
Depois de quase três anos vivendo dessa forma, sem se reconhecerem como um casal, houve finalmente a estreia do romance. Muitas pessoas importantes da roda social do primo compareceram à noite de autógrafos – um evento bancado pelas empresas da família, é claro.
E tudo desmoronou.
As críticas nos principais veículos literários massacraram a estreia de Stephen como escritor. O pai sentiu-se vingado. A esposa indiferente. Os filhos eram muito pequenos para entender o motivo do pai não querer mais sair da cama.
Alguns amigos remanescentes da época de estudos, entre eles Michael – nessa época ainda um roteirista promissor – vieram salvar Stephen, lhe oferecendo trabalhos como freelancer.
Passou a revisar artigos, manuscritos, escrevia algumas crônicas, basicamente fazia o que lhe mandavam. Já que não quis retomar o seu antigo trabalho nas empresas da família, a qual o primo nem se quer fez menção em oferecer. Ter Stephen de volta não estava nos seus planos.
O casamento ia de mal a pior. Elizabeth lhe olhava com nojo. Passou a constrangê-lo em público, exaltando os seus fracassos como homem, pai e escritor.
E em um final de semana cinza, tudo mudaria para Stephen. Com muito custo, deixou ser convencido de passar um final de semana na casa de campo de um de seus amigos. O que revelou ter sido uma péssima ideia. Stephen não conseguia se enturmar, e dessa forma, decidiu voltar antes do planejado.
— Ao estacionar em frente da minha casa pude perceber que havia pessoas nela. Estranhei, até porque Elizabeth havia me dito que ficaria aquele final de semana com as crianças na casa dos pais.
Nesse momento, a voz de Stephen começou a falhar. Até então vinha exatamente como um narrador onisciente, distante, comandando as ações do seu protagonista. Um narrador que jogava as emoções mas não as sentia. Passou a sentir, e isso refletiu em sua postura e palavras.
— Ao abrir a porta, percebi que mais de uma pessoa estivera ali... e não eram nossos filhos. Não havia brinquedos espalhados como o habitual, e sim duas taças de vinhos usadas sobre a mesa de centro da nossa sala de estar, e o som ligado.
Stephen lembra até hoje a música que estava tocando naquela noite nublada de outono. Uma melodia doce, sussurrada, daquelas que se ouvem em bordéis e que nos remete a sexo barato.
— De certa forma, naquele momento, não dei muita importância para aquele contexto, poderia ser qualquer coisa...
— Ela poderia estar com uma amiga. — Manoela, pela primeira desde que ele começou a falar, o interrompeu.
— Foi o que supus de princípio. Era comum Elizabeth receber amigas em nossa casa para tomar vinho. Enfim. Segui para o meu quarto, no andar de cima. Queria tirar minha roupa, tomar um banho e dormir. Mas das escadas eu já podia escutar...
— Stephen... — Manoela o encarou segurando em seu rosto — Você não precisa continuar...
— A porta estava entreaberta... — Stephen ignorou o alerta de Manoela e seguiu. Sentia que precisava terminar com tudo aquilo — ...A luz estava fraca, mas eu conseguia ouvir o que se passava ali. Eu sabia o que estava acontecendo, não precisava ter entrado, mas a curiosidade foi mais forte.
— Sinto muito.
— Christopher me viu parado na porta encarando aquela cena. Afastou Elizabeth do seu colo e começou a vestir as suas roupas. Meu corpo ficou congelado. Não conseguia me mover, ou mesmo falar.
— Consigo imaginar a sua angústia. Mas se fosse comigo eu estaria berrando, esperneando e jogando coisas em cima dos dois.
— Qualquer pessoa normal teria esse tipo de reação, e Elizabeth esperava por uma assim. Ela nem tinha conseguido colocar o seu hobby, e falava coisas para mim. Eu só conseguia acompanhar o que o meu primo fazia dentro daquele quarto. Do meu quarto com ela! — Stephen estacou por um momento, era como se estivesse revivendo aquele momento em que percebeu que sua vida sempre fora uma mentira. — Ele veio em minha direção, me pediu passagem. Eu saí de sua frente e então ele bateu devagar com a mão em meu peito e disse: "Agora quem sabe você tem uma boa inspiração para uma história, e vê se não estraga como da última vez!".
— Que filho da puta! — Manoela praticamente cuspiu essas palavras de tanta raiva que sentia.
— De certa forma ele tinha razão. — Stephen, pelo contrário, se mostrava calmo. — E assim ficamos, apenas Elizabeth e eu.
— O que você fez? Bateu nela? — Manoela estava quase que grudada nele nesse momento, com os olhos arregalados e esperando a resposta.
— Não fiz nada. Ela fez por mim. Me mandou embora e eu fui. Alguns meses depois estávamos divorciados. E eu falido, sem nada. — suspirou alto e voltou a encarar Manoela. — Sabe Manoela, não a culpo de tudo isso. Ela se casou com o Weber errado. Agora está com o certo.
— Todos tiveram a sua parcela de culpa e gostei de saber que você não se coloca no papel de vítima. Renato não faria o mesmo. Certamente me pintaria como uma vagabunda.
— Isso teria acontecido com ela, não da minha parte, se Christopher não tivesse casado com ela.
— Então ele gosta mesmo dela? — Manoela se mostrava surpresa com essa revelação.
— Sim. Ele sempre gostou, e trata muito bem os meus filhos. Ele quem os criou. Essa é a parte que me ressinto e me culpo.
— Stephen, você não pode simplesmente desistir deles, são seus filhos e vejo que você os ama.
— Amo mais do que tudo, mas fui um pai relapso e ausente.
— Pare de ser.
— Agora? Está tarde para isso. Charlotte tem quase dezoito anos e Timothy dezesseis.
— Nunca é tarde! Você não tem como recuperar o tempo que passou, mas tem como construir com eles algo a partir daqui. O começo não vai ser fácil. Terá de ter paciência. Mas Stephen... Tente. Por eles e por você.
As palavras de Manoela ficaram em sua mente por dias. Estaria ela certa de que ainda dava tempo de conhecer e fazer parte da vida de seus filhos de forma ativa e não apenas monetária? O professor gostaria que isso fosse verdade, porém, o medo do oposto acontecer ainda o dominava.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro