O retorno para a Imundice acontece dentro de três dias, o que considero um intervalo sem dúvidas útil para estabilizar meus pensamentos. Não tinha como minha mente ficar presa em preocupações quando fui com Dian até o Condado de Dublin para comprarmos coxinhas — que são inexistentes em Kildare — e corremos o risco de nos reconhecerem. Nosso jantar foi excelente, e pela primeira vez experimentei ketchup.
Horas depois do nosso regresso à mansão, recebo a visita de Muirenn e Muirne, que convido para entrar e Fedelma se prontifica a trazer um chá, porém ambas soam apressadas por estarem em horário de trabalho.
— Foi ela e sua estupidez que nos fizeram vir aqui e andar nesse sol — aponta Muirenn para a irmã cabisbaixa.
— Desculpa incomodar, senhorita Marfach, eu apenas queria ter uma conversa rápida e franca contigo. — Muirne levanta o olhar, embora mantenha a postura retraída e as mãos postas à frente do corpo. — Estou buscando informações sobre o paradeiro de Sua Alteza até hoje... Eu simplesmente não consigo acreditar que ele teria deixado tudo para trás. E isso me preocupa muito, não somente por conta do seu desaparecimento, como por me solidarizar com a senhorita.
— Comigo? Por quê?
Muirne, sentada no sofá, dá uma olhada para os cantos do cômodo, para se certificar de que estamos num ambiente privado o suficiente para dizer:
— Por causa da sua humanidade, oras — cochicha para mim, por precaução. — Nunca escutou sobre as brigas severas que Sua Alteza teve com Sua Majestade Carman e Balor para que não expusessem sua identidade? Sem Dother aqui, elas podem se achar no direito de ignorarem o que foi discutido. Sua Alteza é necessária para a sua sobrevivência aqui, por isso acredito que a senhorita jamais faria algo de ruim a ele, independente do afastamento entre ambos, não é?
Me falta uma resposta para o que acabei de ouvir.
— Não é, Bridie? — O tom de Muirne se torna mais grave.
— Sim, perdão, só estou um pouco assustada pensando sobre tudo isso. — Eu me levanto apressadamente assim que ouço a campainha tocar. — Obrigada por me sinalizarem. Qualquer coisa a respeito de Dother que eu descobrir, vocês vão ser as primeiras a saber.
Depois de mil e um perdões para me despistar delas, corro até o salão principal para fingir que a visita é de suma importância para mim, quando na verdade deve ser Neve trazendo a televisão nova e colorida que compraram.
*
Quase todos os dias desde então, dependendo de onde estamos e com qual humor, Dian pegou o costume de me cumprimentar com um beijo, seja de bom dia, boa noite ou simplesmente quando a vontade surge, ignorando o testemunho dos criados ou convidados. Há mais burburinho sobre isso do que eu gostaria. Nunca o impedi, apesar de ter me desconcertado na primeira semana, até que criasse uma barreira após tanto ser caçoada e motivo de risada por ficar com o rosto corado. É cedo para afirmar como me sinto em relação à sua atitude. Parte de mim não se importa com o olhar dos outros, outra parte se preocupa com o caminho que estamos tomando.
É em um dia comum como esses, que Kiera volta a frequentar nossa residência. Ela passa a tarde toda por aqui conversando comigo, depois que finalizo as aulas com Shira, e indo embora após o jantar. Isso perdura por aproximadamente uma semana. O estopim é na manhã seguinte a uma noite em que ela acabou por dormir na Imundice, justificando que estava tarde para retornar sozinha.
Nessa manhã, Dian não me cumprimenta. Na verdade, é um milagre ele ter acordado mais cedo do que eu e estar a sós com Kiera na sala de jantar. O olhar de ambos é antipático, e me direcionam a atenção quando eu abro a porta, desavisada de que me depararia com uma tensão inquietante no ar.
— Aconteceu algo? — Eu intercalo o olhar entre eles.
— Apenas elucidando coisas que deveriam estar claras há semanas. — As maneiras de Dian se apresentam mais densas do que o normal. Está exasperado. — Precisamos de um tempo a sós.
— Se você não se importar, Bridie, é claro — complementa Kiera, como afronta a Dian. — A casa é sua. Nós podemos ir para outro cômodo, se for da sua preferência.
— Não, não, tudo bem — digo, apressada para fechar a porta. — Vou dar uma volta.
Tem vários dias que não saio de casa, agora estou numa hora propícia para tal. Tenho a opção de frequentar inúmeros locais de Kildare que são únicos no país, como uma sorveteria chamada Sundae, e é minha melhor ideia para combinar com o dia escaldante, sem uma nuvem nos céus.
O trajeto de carruagem até lá é de meia hora. Dei sorte pelo condutor da minha carruagem saber onde é, sem necessitar da orientação de um mapa. O estabelecimento ostenta suas riquezas desde a entrada, com um lustre de cristal no teto, tendo velas distribuídas nele e fazendo um balanço com os papéis de parede texturizados em preto e branco. No balcão há uma réplica falsificada de tudo o que é vendido por aqui e, ao me sentar em uma das mesas de minha escolha, um garçom de cabelos brancos como os meus faz uma reverência a mim e serve aperitivos doces, até que eu escolha um sorvete e o preparem.
Como não sou eu quem pago, opto pelo sorvete mais caro, apelidado de Diamante Negro. Quando a sobremesa chega, só a sua tigela preta ornamentada em prata e esmeraldas me faz questionar o valor do que eu pedi. O conteúdo do sorvete é uma bola de baunilha, açafrão, trufas e fitinhas douradas que fogem do meu conhecimento.
— O que é isso? — aponto para as fitinhas, indagando ao garçom.
— Ouro comestível, Lady Marfach. Não é do seu agrado? — responde, num tom excessivamente atencioso.
Meu olhar retorna lentamente à tigela. Cheia de delongas, afirmo que é do meu agrado e dispenso o garçom. Ouro comestível. Comestível! Não sei se devo ingerir isso ou guardar no bolso. Me dói segurar a colher, pegar uma parcela do sorvete e colocar na boca. Só não vou coletar as fitinhas porque me veriam fazer isso, além do mais, eu recebi presentes de aniversário com joias. Já tenho o que vender no futuro.
Me pergunto como eu venderia tantas joias e garantiria o preço que elas valem. Numa negociação podem roubar de mim simplesmente. Ainda tenho que pensar como vai ser o retorno para Wexford. Nossa casa foi reduzida a cinzas e teremos que construir uma nova.
Minha filha, tu sabe quem me patrocina, lembro-me de Leanan dizendo. Com o tanto que tem guardado há décadas, daria pra comprar Wexford inteiro e sobrar.
Posso guardar tudo o que eu vender — mesmo que o preço seja vendido a baixo — e gastar o mínimo, exatamente como Leanan faz. Daria para sobreviver sem levantar suspeitas da vizinhança, retomar os estudos de Brizo e comprar remédios para as dores do pai.
— Bridie? — Reconheço a voz de Redmond ao meu lado. — Que surpresa agradável te encontrar por aqui.
— Eu diria que é ainda mais surpreendente encontrar um homem como o senhor numa sorveteria. — Mostro um sorriso atípico, porque igualmente acho a presença de Redmond convidativa.
— Acabei me tornando um apreciador depois de tantos passeios levando as crianças — diz, prestes a se despedir, mas eu insisto para que sente na mesa comigo e Redmond reluta um pouco antes de aceitar. — Obrigado, Bridie. Não irei permanecer por tempo desnecessário, apenas estou aguardando meu horário.
— Como está sendo dar aulas em outro condado? — Ele é uma das raras pessoas que me dá vontade de puxar assunto.
— Tão caóticas que mal compreendo como conservo a paz interior, além de que me roubaram oito carteiras e desisti de ter uma. Afora os furtos ocasionais andando até a escola, aprendi que gosto de lidar com crianças, embora esteja distante de um especialista na arte de acalentá-las e fazê-las prestar atenção no conteúdo. — Redmond faz uma pausa para escolher o seu sorvete, fecha o cardápio e retorna: — Estive pensando nisso ultimamente e, se não for uma pergunta invasiva, como estão seu pai e irmão? Essa questão tem me preocupado por meses. Você tem intenção de retornar para casa?
— Não é invasivo de forma alguma. Eles estão ótimos e espero poder visitá-los algum dia. — Dou mais uma colherada no sorvete e sinto meus dentes gelarem. — Sobre a última pergunta do senhor, eu só estou me levantando da cama ultimamente porque tenho que ir para casa.
— "Ter" e "querer" são diferentes, Bridie. Não sou ninguém para lhe influenciar ou escolher no seu lugar, porém saiba que nem tudo o que você conquistou por aqui deve ser abandonado na sua partida. Se for um objeto, leve para casa. Se for uma pessoa, cartas existem, encontros existem. A despedida se torna mais doce quando há a certeza de um reencontro.
Eu sorrio para Redmond e retorno ao meu sorvete que está começando a derreter. Em dois minutos, uma criada próxima da terceira idade adentra o estabelecimento acompanhada por mais de dez crianças e pede permissão ao garçom, objetivando ir à ala econômica da sorveteria, onde — se eu entendi — haverá a festa de um dos garotos no grupo.
Uma das meninas tem sua característica de druida aparecendo nos cabelos, pois são pretos e as pontas vão se tornando azuis em um belo degradê. Ela é a única das crianças que me encara até me deixar desconfortável. O nó do obair está no seu pescoço. Às vezes acho que vai vir falar comigo ou que reparou em algo que não deveria, porém não há contato entre nós. O garçom oferece a chave da ala econômica à criada e as crianças são conduzidas.
— Professor, qual a sua característica de druida? — questiono por pura curiosidade, afinal Redmond se assemelha a um homem ordinário com as vestimentas de um sábio.
— Nem toda transição é glamourosa. Eu tenho seis dedos nos pés.
Faço um som gutural com a boca sem querer, pega desprevenida pela resposta dele.
O sininho na porta da sorveteria badala, anunciando a chegada de uma silhueta imensa que se agacha para atravessar a passagem e nem preciso ver o seu rosto para reconhecer Balor. Não sei o que houve com ela, mas seu olhar impaciente me dá a sensação de que ela não consegue parar de tremer. Sua fúria é tamanha e tão perceptível que até os garçons olham um para o outro, temerosos de quem vai atendê-la.
A general usa um elegante vestido decotado em V de mangas longas e pregas na cintura, com luvas pretas e um chapéu grande que vai de ombro a ombro. Ela nos tem como alvo desde o primeiro segundo em que passou pela porta, e se dirige até nós encarando mais a mim do que a Redmond.
— Chegaram? — pergunta Balor, parando à frente da nossa mesa que está colada à janela.
— Faz pouco tempo. Já desceram. — Redmon não soa um cúmplice, apenas oferece o esclarecimento que tem. — Não lhe apetece um sorvete antes de seguir aos seus afazeres?
A indignação no semblante de Balor responde por ela, contudo, sua decisão é de se acomodar na mesa conosco, ao lado de Redmond e de frente para mim.
— Não é como se o tempo fosse moldável para que eu usufruísse com maior proveito, porém sempre devo alguns minutos ao senhor. — Ela puxa o cardápio e sinaliza sua escolha ao primeiro garçom que vê. — E quanto a você, menina, aproveitando Kildare?
— O dia estava quente e vim conhecer a sorveteria, pois dizem que é dona de iguarias — sou sucinta e falo rápido para acabar logo.
— Entendo perfeitamente — continua Balor, me encarando com seu único olho dourado aparente e a rigidez explícita na voz. — As pestes quiseram sorvete e fui obrigada a ceder.
Um estalo me vem à cabeça, assim que conecto Balor às crianças que acabaram de chegar e meu coração erra uma batida. É real. Eu não queria que fosse. Queria que não passasse de um blefe a notícia de que o orfanato de Liam foi demolido e as crianças levadas para Kildare. Até o obair foi real. Eles condenaram trinta inocentes aos serviços forçados para chantagear um único homem.
O sorvete já não me desce, nem feito de ouro ou qualquer outro ingrediente. Encarar Balor é nojento com toda a sua arrogância e nem a Redmond consigo direcionar o olhar.
— Conheço bem a ira de uma pessoa quando a testemunho, menina — inicia a general, servindo-se de um sorvete com cheiro insuportavelmente doce. — Eu sou uma mulher de negócios e preciso sempre manter a minha palavra para igualmente manter o nome. Cada um dos que foram contratados por mim tiveram a opção de recusar, sendo dito desde os primórdios quais seriam as punições em caso de traição. Você me traiu. Liam me traiu. E não estou fazendo nada além de manter a minha palavra. Vocês pagam o preço de suas ambições.
— O senhor concorda com isso, professor? — Me recuso a direcionar a palavra para Balor sobre esse assunto.
— Peço perdão. — Redmond finaliza a sua sobremesa e empurra o prato um pouco para frente. — Acredito que não seja do seu conhecimento, Bridie, mas me categorize como uma existência neutra às adversidades. Sei muito sobre você e sei muito sobre a general, porém cada uma dessas informações morre comigo, sem tomar partido. Não passo de um professor em horário de almoço.
— Se esse é o caso, estou retornando para minha residência — declaro, pondo as mãos na mesa para me levantar.
Só que minha atitude é interrompida com Balor estapeando a mesa e fazendo os pratos darem um pequeno salto, o que chama a atenção dos presentes e deixa minhas pernas bambas de susto.
— Eu te conheço melhor do que você gostaria, menina — declara a general. — Você é tão precavida que flerta com a covardia, e só não irei te rotular a tamanha desonra porque já presenciei a sua coragem. Não irei ignorar os fatos somente para te desmerecer, da mesma forma como não me farei de desentendida. Eu sei que você é responsável pelo desaparecimento de Sua Alteza. Aonde ele está?
— Não, não sou responsável por nada e muito menos sei aonde ele está. — Meu tom de voz é seco como nenhum outro. O medo me cobre, porém a indignação é maior que os pavores. — Se me conhece tão bem como acaba de afirmar, saberia dizer que nossa força é desproporcional. É impossível fazer mal a alguém como ele. Estamos citando uma alteza que veio ao mundo sendo druida, o único entre todos. O que eu sou perto disso?
Balor sabe a resposta. Se disser em voz alta, estou condenada. Se ficar quieta, a palavra de Dother ainda tem peso para manter minha humanidade em segredo.
Ela sorri para mim, com o dente de ouro brilhando à luz da sorveteria.
— Você é uma peste neste condado, uma peste que por algum motivo chamou a atenção de Sua Alteza e ele não permite o seu extermínio. — Há uma paciência desconcertante no seu tom, que contrasta absurdamente tanto com suas palavras quanto o sorriso dentado. — Francamente, menina, eu estou me contendo para não esmagar o seu crânio aqui e agora.
— Chega! — A voz de Redmond adquire um tom opressivo que quase me faz duvidar que meu professor seja o autor. — Tenham o bom senso de discernir o ambiente em que se encontram. Decerto é melhor que retorne para casa, Bridie, não permita que a general te intimide uma segunda vez.
— Não é necessário. — Balor faz um gesto com a mão, solicitando para que eu pare. Ela não está nervosa ou impositiva, somente impassível. — Estou longe de negar a sensatez do senhor. Dito isso, seguirei o meu caminho sem maiores delongas, pois devo ter mencionado que meu tempo é curto. Cada segundo é valioso quando seus dias estão contados.
— Contados? — O olhar de Redmond assume um brilho abrupto, transtornado com as últimas palavras da mulher que se levanta da mesa, rumo à ala econômica da sorveteria.
Meu professor mal tem a chance de se despedir de mim. Ele arruma os seus pertences, agradece pela minha companhia, desculpa-se uma segunda vez e anda depressa, visando encontrar Balor novamente.
Eu sequer fico para descobrir o que é. Aproveito que o meu sorvete está pago, saio pela porta e mando o condutor da carruagem retornar para a Imundice com o máximo de pressa, pois tenho receio que Balor volte, e já não terei meios para me defender ou evitar a verdade cada vez mais difícil de manter oculta.
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HELLOOOOOO
óia eu atrasada
livro anda calminho ultimamente né, apesar que conseguiram deixar o redmond brabo
Que será que o Dian tava brabo?
Ou que será que a Balor quis dizer? heuuehe
Por enquanto é certeza de que vai ter capítulo duplo essa semana, até pq eu quero chegar logo no 30, apesar de 29 ser fofim
Semana que vem a gente chega na contagem regressiva pro final do livro (não fazendo ironia com o nome desse cap) \o/
Tá confirmado que vão ser 40 cap
Todos os capítulos já tem uma listinha do que vai acontecer, só falta o 33
bora pras curiosidades da semana:
- Muito ironicamente, a ideia de fazer um verdade ou desafio veio do meu namorado, e minha resposta foi "essa foi a ideia mais adolescente que você já deu", não à toa virou um diálogo dentro do livro KKKKK
- Se forjadora fosse escrito para adultos, a ais não seria a protagonista, e sim a Carman, por isso eu gosto dessa véia
- Ia existir uma pedra que se comunica através de sinais. Eu sei, brisado
INTÉ QUINTAAAAAAAA (possivelmente)
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