Quando Dian para de andar, suponho que seja porque chegamos à casa no meio das árvores que ele mencionou, porém não há nada ao redor. A floresta nos envolve, soturna, desprovida de vida e repulsiva. Nessa hora está escurecendo, passado das seis da noite, pois o sino que toca no Crann Bethadh é diariamente pontual.
— Não há casa alguma — constato, e gentileza é a última coisa que demonstro. Estou impaciente. — Você não cansa de me fazer de idiota?
Minha expressão pode estar inalterada por conta do cansaço e estresse, porém cada músculo do meu corpo se mantém rígido, dispostos, independente de quem seja, e a alma preenchida pela desconfiança amarga que não é correspondida.
— Eu sinto tanta pena daqueles lords medíocres que te fizeram propostas ontem. São tão imbecis por acreditarem que você seria uma esposa comportada, rasa e moldável como aparenta. É cômico que tenham me lançado olhares de triunfo ao decorrer da festa, sendo que eu nem sou o verdadeiro desafio que enfrentariam. — Dian se aproxima de mim e retruca à altura, mantendo o nariz empinado e sem tirar o sorriso pretensioso do rosto. — Mas respondendo à sua questão: é óbvio que não me canso. Como seria capaz? Sua cara de indignação tem um valor indeterminável para mim, exatamente como está agora.
O final da sua frase faz o meu semblante enrijecer ainda mais e, antes que eu possa responder, Dian dá as costas para mim, rindo feito uma criança despreocupada. Não demora para ele dar três passos, arrastar o pé por cima da terra e acertar uma superfície de metal. Há um alçapão redondo ali. Eu volto meu olhar para a sua direção e noto que minhas ações foram previsíveis, pois ele está me aguardando de braços cruzados.
— Aqui está, Lady Arisca — zomba, não sei se verdadeiramente ofendido pela forma como eu o tratei. — Apenas não me recordava onde ficava a entrada.
Nem nos sonhos mais desconexos eu poderia imaginar que a tal casa se trata de uma espécie de búnquer. A razão para não encontrarem Dian nos seus retiros foi porque ninguém pensou em olhar para baixo, o que deveria fazer nenhuma diferença, quando os druidas scelaiges são especialistas da investigação e contam com o apoio da natureza para localizar qualquer um, o que não foi o caso deste búnquer.
Dian desce as escadas de concreto e estreitas, habituado ao local e sem se importar com a escuridão lá embaixo. Seus passos começam a ecoar e se distanciar de mim, até cessarem completamente.
— Dian? — chamo, e só agora percebo como seu nome soa estranho sendo dito por mim, ouvindo a minha voz pronunciar.
— Não se mova — ordena ele. Está tão longe que escuto graças ao eco.
Eu paro no terceiro degrau, com metade do corpo para dentro do abrigo subterrâneo e outra metade ainda vendo os arredores cada vez mais obscuros e solitários da floresta morta. Não é das sensações mais agradáveis começar a ouvir os uivos na distância, e vez ou outra corujas sobrevoando o espaço abandonado pela própria natureza. Minha contemplação desprazerosa do exterior só termina com Dian liberando a minha descida, assim que pequenos prismas de luz nos cantos das paredes se iluminam ritmicamente de onde estou até lá em baixo, revelando todo o caminho até uma porta que se assemelha a um cofre.
Puxo a porta do búnquer e a travo. No fim das escadas, paro logo atrás de Dian, um degrau acima dele e aguardo, assistindo por cima do seu ombro ele colocar várias opções do molho de chaves e tentando uma por uma. Eu fico na ponta dos pés para enxergar e evito me apoiar nos seus ombros para não o atrapalhar — e porque só faço esse tipo de coisa com Brizo —, até ouvirmos o som do trinco.
Conforme a porta se abre rangendo, o calor transpassa não somente a minha pele, como os meus olhos. A calidez define a minha visão e sensação do ambiente, com todas as luzes tendo um tom puxado para o amarelo, não intensas ao ponto de ferir os olhos. O chão é laminado e envernizado, brilhante, provavelmente escorregadio e ameaçando meu equilíbrio, e as paredes brancas com são de grafiato com brilho. Os móveis são igualmente de madeira e assustadoramente preservados. Tudo me causa uma impressão atemporal, por mais antiquada que seja a decoração, é bem-cuidada. Odeio admitir que o abrigo está em melhores condições do que a Imundice.
Tenho um breve vislumbre do quão proveitoso podem ser esses dias, mas os empecilhos vem à tona em semelhante velocidade.
— Aqui é ótimo — afirmo, à medida que passo as mãos pelos móveis e não encontro um indício de poeira. — Realmente estou longe de poder reclamar, mas não acho que ficar por mais de uma noite seja uma boa ideia. Não posso ficar dias com esse vestido, além de que Fedelma entrará em pânico. Ela está muito mais cuidadosa desde o que aconteceu no envenenamento, além de que a Shira viria me dar aula.
— Você sabe onde fica a porta de saída e eu indiquei mais cedo para qual direção está a trilha. — Dian dá de ombros, embora seu tom de voz contrarie seu gesto. — E volto a dizer que você não usufrui da sua posição ou dos benefícios que a acompanham. Não deve satisfações a ninguém, exceto a mim ou Dub. Fora isso, faça o que quiser.
Arqueio as sobrancelhas, assistindo Dian retirar os sapatos e se acomodar no sofá capitonê.
— Claro que já me viu usar os benefícios. Nos encontramos justamente no dia em que eu estava comendo de graça no Silken Thomas — eu retruco, só que isso tem mínima importância perto do que estou focada: — E eu devo alguma satisfação a você, com exceção de precisar me manter por perto?
— Referindo a assuntos formais, deve e muita, mas assumo que estou com preguiça de explicar, então deixo as suposições contigo. São bem óbvias. — Erguendo-se para buscar um objeto atrás do sofá, Dian retira um violão com uma das cordas arrebentadas e sua atenção vai totalmente para o objeto. — Sinta-se livre para explorar ou não. E não se preocupe em ficar sozinha, ninguém seria capaz de entrar aqui sem que você soubesse, incluindo Dother.
Como Dian está ocupado e eu com tanto para ver em pouco tempo, opto por dar uma olhada no abrigo, apenas para me surpreender a cada porta que abro e, principalmente, a cada andar que desço. Tem cinco andares. O que Dian está é o mais básico, feito somente para a recepção. O segundo há um salão do tamanho de uma quadra e um bar ao seu final, com bebidas importadas à disposição, a maioria estragada faz anos. O terceiro tem a mesma dimensão do segundo, só que é dedicado à plantação de suplementos, e encontro plantas secas nesta horta abandonada. O quarto andar é reservado para os dormitórios, banheiros mais luxuosos e biblioteca, sendo de longe o piso com maior conforto. E, por último, desço as escadas para o quinto andar, o mais rústico, uma sala composta por prateleiras e objetos estranhos. Não acho prudente tocar em nada desse último andar e retorno ao quarto.
Todas as placas, objetos e embalagens estão escritas em outra língua. Meu conhecimento da linguagem dos outros países é rasa, mas suponho que seja um búnquer construído por goliezes durante a década passada em que Danann e Golias faiscavam, à beira de uma guerra que foi cessada nos primeiros dias pelo então rei Dagda. É tudo muito impecável para terem passado brevemente e mal usufruído. Não me recordo das aulas de Redmond terem algo sobre os goliezes permanecerem escondidos no país, nem o que os fez abandonar este local.
As roupas que encontro nos armários estão em melhores condições do que as minhas antigas em Wexford. Todas as peças estão dobradas em forma de rolinho e embrulhadas em seda, de forma que impede o tempo de torná-las amareladas e mofadas. Além disso, estão dentro de caixas com bastões de giz.
Com um par de pijamas em mãos, é a primeira vez que me lavo em um chuveiro e descubro sua praticidade. Em Wexford estão disponíveis somente nas áreas públicas e em Kildare fazem questão de priorizar o uso de banheiras. Terminado de me banhar, experimento o pijama e me surpreendo com o conforto de sua simplicidade, sem nenhum detalhe como os que uso na Imundice e me causam coceira durante a noite, e também é ideal para o frio que está.
Cada quarto dos dez, suponho, contém duas camas próximas uma da outra, separadas por uma cômoda de três gavetas com uma jarra de água que Dian trouxe para si. Ele está com um conjunto comprido de seda vinho com bordas e botões brancos, e bebe um copo antes de se deitar na cama da esquerda, sem se cobrir.
Este é o único cômodo disponível para dormirmos — as portas dos outros estão emperradas —, inclusive não é dos melhores pelo fato da porta não se fechar mais. A maçaneta está torta e enferrujada, enquanto a parte da parede próxima está repleta de arranhões, o que me faz acreditar que este também se encontrava emperrado até Dian forçar a entrada.
No meu silêncio, fico de pé e andando a esmo no quarto estreito. Ora me encosto na parede para pensar melhor, ora ando lentamente em círculos, lançando olhares indiscretos para a direção das nossas camas.
Pode ser infantil da minha parte ter receio de me deitar próxima a ele. Não que me preocupe em roncar, babar ou gritar de susto como às vezes meu pai faz, é apenas uma hesitação que sou incapaz de controlar e surgiu quando pisei no cômodo. Meu coração está acelerado por uma bobagem que Dian desdenharia sem piedade só de ter conhecimento sobre. Faço pouca ou nenhuma ideia do que ele esteve pensando ultimamente, mas eu não esqueci do que fizemos há duas semanas, e às vezes acredito que também devo esquecer, que deve ter sido horrível para ele ou que simplesmente eu fui um passatempo.
Nada mais do que passatempo, insisto. Assim torna-se mais fácil para eu deixar o assunto de lado.
Eu deveria parar de colocar significado em bobagens, como se aquele beijo não existisse somente para me atormentar nas horas que estou distraída. Devo parar de fantasiar o que jamais existirá ou sequer se é exatamente isso que eu quero. Não sei o que eu quero, nem porque continuo insistindo sozinha e sem tomar atitude. Qualquer caminho é inevitável gerar um desconforto ou frustração.
Entre ficar aqui ou ir para a Imundice, na verdade, a casa de Kiera é a melhor opção.
— Por quanto tempo pretende fazer uma maratona em círculos? Estou ficando tonto vendo isso — comenta Dian, e me causa um pequeno sobressalto por ter erroneamente acreditado que ele estava dormindo.
— Não vou demorar. — Minha resposta é curta. — Eu vou ficar bem aqui.
— Sei que vai e tem chances de eu acordar e você ter dormido de pé. — A sua vontade de caçoar é ácida como esperado, exceto pelo tom suave e sonolento, bocejando com frequência. — Se perder a hora e não me ajudar com a limpeza, faço questão de te acordar de uma maneira que você jamais vai esquecer.
Minhas bochechas ficam insanamente quentes, sem me dar um segundo para racionalizar e formar um argumento que justifique a minha enrolação. Toda a farsa mal feita que tentei criar se desmancha só de olhar para o semblante de Dian, que a esse ponto já voltou a se sentar na sua cama e tem toda certeza sobre o que o assunto se trata, especialmente ao analisar o meu rosto corado, cada vez mais derretido pela minha própria imaginação caótica.
— Eu estou indo dormir — corto qualquer possibilidade de Dian comentar a respeito do que vê.
— E eu aposto minha herança que você vai levantar em menos de uma hora.
— Ótimo. — Não quero que fique evidente como estou aliviada por ele deixar o assunto de lado, então finalizo com o máximo de casualidade: — Vou mandar uma carta para o meu pai dizendo que estamos bilionários.
Eu me deito na cama, e tão logo os pensamentos importunos voltam a me acompanhar com o retorno do silêncio mútuo.
Não me desce o fato de que estou dialogando com alguém que tem dinheiro para adquirir o que quiser, na hora que quiser. Tem dias que são como um delírio, embora na maioria deles eu me mantenha consciente de que é um luxo temporário para mim, e no futuro será uma grande e inacreditável história que contarei morando num barraco de Wexford ou em Falias.
Sei que desperdiço os benefícios de ser uma lady. Sequer faço ideia de quais são e não pretendo perguntar, pois não quero sentir falta de nada que tenha neste condado.
— Dian — o chamo de novo, e tudo que ele faz é abrir os olhos, que brilham sob a luz fraca do prisma no quarto —, o que você compra com setecentas monas?
— Um café na Silken Thomas — ele estranha a pergunta, mas esclarece. — Por quê?
— Nada demais. É o valor que ganhei trabalhando uma semana no Beltane e seria o sustento de casa por uns três meses — afirmo. Não tenho vergonha de ser sincera quanto às minhas antigas economias.
— É muita audácia chamar o sustento de três meses de "nada demais".
— Como você sempre tem uma resposta para tudo? — Eu me viro na cama para observá-lo, meio inconformada com a raridade que é vê-lo hesitar.
— Você dá abertura com frequência, tanto que às vezes nem percebo — Dian não se delonga. — E você já está perdendo a aposta.
Com a recordação da ameaça que ele fez, tento adormecer e bastam minutos para minha consciência me estressar. Estou com sono e não consigo dormir. É como se fechar os olhos levasse todo o cansaço embora, na medida que me torna mais exausta pelo turbilhão de reflexões. Estou confusa, pisando sobre a linha tênue que divide a ansiedade da incerteza, otimista e pessimista. Nunca em minha vida pensei tanto sobre duas pessoas, temerosa por culpa do presente de Dother e perdida com relação a Dian.
Brigo para impedir meus olhos de abrirem no menor dos estímulos, a batalha é intensa e decorre minutos demais para saber com exatidão. Seja lá o tempo que eu tenha passado me revirando na cama e nos meus conflitos, uma hora meus olhos abrem e são recepcionados pela escuridão. A coberta aquece cada centímetro do meu corpo, porém me desfaço do aconchego para me sentar na cama, ficando inerte. Preciso decidir o que fazer, e dentre tantas opções, beber água é a minha escolha desesperada.
Todo o restante está errado. Não sei como aquela flor chegou no meu quarto. Eu ouvi o conselho de Muirenn, ouvi Kiera, e estou perigosamente sob o risco de compreendê-las. Já passei pela mesma dor com Dother, quando ele quis que eu ficasse e optei por retornar para casa. Eu não posso abandonar isso hoje. Meu lugar não é aqui.
Irracionalmente eu queria que fosse, mas Kildare não é o lar para nenhum humano.
Se se tornar algo público, nem alguém como eu, Dub, Carman ou Dother pode te proteger. Há coisas que transcendem a hierarquia druida, e encontrar um humano aqui é uma delas. Tome cuidado, menina. O aviso de Balor jamais deixará de ser uma preocupação que me atormenta.
— Como é a sensação de perder uma herança sem precedentes a troco de um copo d'água? — Escuto a voz baixa de Dian, sem enxergá-lo.
— Você estava dormindo até um minuto atrás — replico, indignada.
— Meu sono é extremamente leve — diz ele. — Acordei com o som do copo sendo colocado na cômoda.
— Não vou beber mais água e nem me levantar, pode dormir. — Eu deito de barriga para cima, de olhos abertos ainda que veja o breu, e puxo o cobertor até metade do meu rosto para esquentar.
— E quanto a você? — Dian rompe o silêncio.
Eu não entendo como uma pergunta pode me deixar tão desconfortável e acomodada de forma simultânea.
— Posso acabar não dormindo, mas vou estar acordada amanhã para nós limparmos o abrigo — respondo prontamente. Estou acostumada a rotinas pesadas. — Não vou te deixar na mão, se é isso o que está pensando.
— Ou nós podemos jogar verdade ou desafio. — Sua ideia vem dentro de segundos que poderiam ter marcado o fim da conversa.
— Essa é a ideia mais adolescente que você já deu.
Eu me viro na sua direção assim que ouço Dian bater palmas ritmicamente para ligar os prismas do quarto.
— Oh, me perdoe, a senhorita é muito adulta para uma brincadeira idiota que pode te ajudar a se distrair... ou, quem sabe, seja tão covarde que tem medo de falar alguma verdade? — Dian está apoiando a cabeça com o cotovelo na cama, me desafiando a aceitar.
Estou cansada demais para relutar, então me levanto e busco um objeto que poderemos usar para definir o jogo.
— Como se você também não fosse ter que dizer a verdade — retruco.
— Isso foi uma tentativa de me intimidar? — provoca, me assistindo procurar pelo item. — Nesse caso, boa sorte.
— Quando o jogo termina? — indago, após retornar para a minha cama com uma mona de prata, pois não consegui nada no quarto além da moeda esquecida no canto.
A resposta de Dian vem seguida ao momento em que ele me pede a mona e aponta para a coroa, indicando o seu lado da moeda.
— Termina quando um de nós hesitar.
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HELLOOOOO
Hoje o dia tá tão zicado que até a internet caiu e num consigo trabaia, então voy publicar cap que ganho mais alskal
Pra quem se perguntou, na real acabou que o 27 é o bão, porque eu tive que cortar o cap por não imaginar que esse treco daria quase 6k.
Resumo da ópera?
Tem cap quintaaaaaaaa
Quem sabe algum dia tenha espaço pra falar sobre a historinha desse abrigo, ma num sei se vai ter espaço
Ais ta bem da cabeça né?
Que seis acharam do joguim do Dian?
Bora pras curiosidades da semana:
- Eu num sou o tipo de pessoa que faz playlist pro livro, mas tem uma musiquinha que achei que combina com esse livro, e o nome dela é "This quiet violence"
- O Samaim (o feriado ai do livro) acontece 31 de outubro
- Na primeira versão, o Dian não ia pra esse abrigo pra se esconder da Carman. Na verdade, ele ia pra uma boate de outro condado
- Essa aqui não é boa pros ansiosos: o plot final do terceiro livro já foi mencionado desde os primeiros capítulos do primeiro livro
- Iria ter uma situação que a Kiera quase descobre a Ais como humana, mas isso foi retirado pq imaginei uma cena bem melhor pro futuro
INTÉ QUINTAAAAAAAAA
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