
Capítulo 10 - Os infortunados
Tive sorte por decidir ficar em casa o restante do dia, pois uma tempestade está se abeirando novamente, e confesso que essa me amedronta pela quantidade alucinante de trovões e raios que fazem a noite clarear no horizonte.
Não sei se é verdade ou não, mas sempre me disseram que durante tempestades não se pode estar descalço, então eu nunca dou sorte ao acaso. Também dizem que não se pode comer de colher e nem se olhar no espelho.
Bran faz o nosso jantar sem proferir sequer uma palavra. Ele é um dos criados mais notáveis que encontrei durante todo o meu tempo aqui. Calado, baixinho, acne no rosto, sempre com vestimentas largas e narigudo. É certamente o criado mais focado na sua função e só troca olhares amigáveis com Dian quando acha que não há ninguém reparando.
O meu jantar é posto acima da mesa e a minha boca saliva. Eu amo bife acima de tudo. Os que são feitos em Kildare, devo admitir, são a minha única felicidade aqui. A carne é feita ao ponto, temperada sem medo e com uma textura tenra. Eu como quantas fatias posso, no mínimo cinco, e nem reparo nos outros aperitivos que Bran preparou.
— Parabéns, você ganhou uma fatia a mais. — Dian empurra o prato dele com mais carne para mim e puxa o das saladas. — Há baba até na sua bochecha.
— Por que está me dando? — Arqueio a sobrancelha para ele, desconfiada, e passo o dorso da mão na bochecha. Eu não sei comer de garfo e faca direito, às vezes pego com a mão.
— Aposto que você não sabe o que significa vegetariano — desdenha.
— Eu fui à escola. — Puxo o prato para perto de mim, praticamente ignorando-o e focada no alimento.
O jantar decorre em silêncio, pois nós dois estávamos famintos depois de um dia sem nada para comer. Bran preparou o jantar e está delicioso, porém sua baixa estatura o fez levar mais tempo para finalizar tudo, além de que o cronograma de todos na mansão está uma completa desordem desde ontem.
Fedelma está sendo medicada e em retiro do trabalho, duvido muito que não vá pedir afastamento da mansão. Quanto a Bran, ele foi o que teve mais sorte e foi medicado logo que começou a passar mal.
Meu suco favorito é o de morango, e é uma felicidade ver Bran me trazendo um copo bem grande até com um canudo para eu apreciar. Agradeço a ele, que sai sem nunca proferir uma palavra e retorno para o suco, a centímetros de tomá-lo e aliviar a minha sede.
Mas eu paro no meio do caminho, tendo a péssima recordação do que aconteceu à Erin após beber o chá. Tudo aqui pode ter sido envenenado outra vez, e eu e Dian fomos completos irresponsáveis por jantarmos sem sequer avaliarmos o que seria ingerido.
Droga.
Olhar para o suco não me dá mais vontade de tomá-lo. Acho que vou evitar e realizar minhas futuras refeições na Silken Thomas ou outros restaurantes espalhados pelo condado.
Durante o meu questionamento, vejo Dian retirar um comprimido esverdeado do bolso da blusa e colocar sobre a mesa. Ele se inclina para pegar um copo e vira a jarra, despejando água até a metade.
Isso tem cheiro de meala, eu tenho certeza que é a droga que tem o efeito multiplicado da cafeína, capaz de manter qualquer um lúcido por demasiadas horas e que, querendo ou não, me salvou da exaustão um dia.
— Me contaram que meala é proibido — menciono.
— E eu fiquei sabendo que Dub saiu do Crann Bethadh para nos visitar — afirma de volta, parando para colocar o comprimido na boca e tomar água em seguida, pondo o copo na mesa acompanhado de uma arfada. — Ele está furioso.
— Como sabe?
A princípio não entendo a razão para Dian se levantar e abrir a janela atrás de nós.
— Ouça os trovões. O clima reflete os sentimentos de Dub a partir do momento que a coroa foi colocada em sua cabeça — justifica, fechando a janela novamente e retornando ao seu assento. De repente, para mim, a chuva se torna ainda mais intimidante por reconhecer um novo significado nela. — Meu pai era um velho pacato e otimista, por isso até garoar era incomum. Agora, hoje, te dou a certeza de que esta mansão não será o ambiente mais monótono de Kildare. Mas não que isso seja um problema seu. Você já se encontrou com Dub, é opção sua ficar ou sair para algum canto que esteja distante da Imundice.
— Tente não dizer uma besteira. — Não sei ao certo o que comentar, nem compreendo a função do meala nessa história, tampouco como Dian arranjou uma droga ilegal.
— A julgar pelo tempo, Dub não me dará ouvidos mesmo se eu pronunciar uma verdade irrefutável. Qualquer coisa que eu disser será uma besteira. — Pela sua expressão e pela forma como se alimenta da salada no prato, Dian sequer apresenta preocupação com a tempestade o encurralando. Sua postura e ânimo são todos provenientes do meala que tem rápido efeito.
Embora eu calcule exaustivamente cada passo que dou por aqui, sei que vou cometer erros ou que é questão de tempo para me apunhalarem. Conversar com Redmond só reforçou o quão ignorante posso ser em relação à Kildare. Eu não reconheço o território, nem seus costumes, cultura, habitantes e sou educada com base nos mitos contados em Wexford, o que é um prato cheio para dar um passo fatídico um dia. Quero evitar isso a todo o custo, mas Dian está atraindo os erros e imergindo neles deliberadamente.
Para sair de Kildare, eu preciso de algo complicado: me livrar dos três irmãos Fir Bolg.
Quero que Dother me esqueça. Quero fazer bom uso da pouca boa vontade de Dub. E, por fim, quero pagar minha dívida com Dian e arranjar uma maneira que ele possa viver sem mim. Feito isso, sem dever mais nada a ninguém, posso fugir do país e recomeçar, dessa vez sem buscar por atalhos, sem aceitar trabalhos clandestinos como o de Balor.
Pensando dessa maneira, parece que nem com o tempo de uma vida eu posso cumprir meu objetivo, mas é melhor para minha saúde mental não pensar tanto. Só devo dar início e um passo de cada vez. Não há uma solução imediata para o que eu causei.
É falta de educação sair da sala de jantar enquanto todos não finalizaram o desjejum. Sou obrigada a aguardar Dian, mas ele come com a pressa de uma preguiça, mastigando demais e engolindo de menos. Feito meia hora que estamos na sala de jantar, Dian se levanta e passa a comer de pé, às vezes observando pelas janelas, sem ligar para o fato de que sua natureza destrutiva faz até o seu alimento apodrecer em maior velocidade.
Eu sequer tento impedi-lo de comer a salada que pode estar envenenada. Dian não se importa com sua integridade ao ponto de dar mérito a um veneno.
— Vai me fazer esperar até quando? — afirmo um tanto grosseira, sem intenção. — Já faz um mês desde que estou lhe devendo. Eu disse naquele dia que faria qualquer coisa e estou mantendo minha palavra.
Eu sinto o olhar dele sobre mim, porém evito encará-lo. Não quero, principalmente porque sinto que algo pesado se quebrará, caso eu ignore meus instintos.
— Como já avisei: eu não sei o que quero. — Seus passos são interrompidos para completar: — Ou melhor, ainda não decidi entre as minhas opções.
Seu tom despretensioso me dá raiva. Não preciso que ele entenda o que está em jogo para mim, nem quero que entenda. Não farei questão de explicar meus problemas a alguém que chamou minha família de parasita, mas é insuportável ignorar a sua apatia constante.
Quando Dian passa por perto de mim, num reflexo, eu agarro a manga da sua túnica de dormir e o impeço de dar o próximo passo. Necessito de força para impedi-lo, senão ele não pararia, e mantenho a mesma quantidade de força para não o permitir se distanciar.
— Invente qualquer coisa — insisto e decido enfrentá-lo diretamente, sem medo de que as minhas inseguranças transpareçam. — Faço qualquer coisa. É sério.
— Mesmo se eu mandasse você fazer algo que absolutamente odiaria? — incita, sem lutar contra o meu agarro. O prato está equilibrado na sua mão livre, como um garçom.
— Mesmo se eu odiar muito.
— E o que faria depois que a dívida estivesse paga? Fugiria? — Dá para sentir uma estranheza na sua última pergunta que me desagrada.
— Te conto depois que você souber o que quer. Até lá, não é da sua conta.
Estalo a língua, desistindo por ora dessa questão que ainda vai exigir de mim. Independente da minha vontade, não irei forçá-lo, pois devo supor que Dian ficará com raiva de mim e optará pela pior coisa que pode cobiçar.
Somado ao suspiro de derrota, distensiono o meu braço e abro a minha mão para libertá-lo do agarro. Apenas ao levantar, sinto uma força contrária me arrancando da minha posição original pelo pulso e me fazendo esbarrar na mesa, derrubando dois garfos, e um deles cai sobre o meu pé. O ímpeto de Dian é incisivo e brusco demais, comparado ao quão impassível esteve agindo.
A condescência que tantos se aproveitaram abandona o seu semblante. A mim, Dian entrega somente uma obstinação abrupta que derruba a minha guarda.
— Tudo que diz respeito a você é da minha conta. — Ele aperta o meu pulso sem dó e machuca, apesar do tom contido. — Da última vez que te deixei livre e te ajudei, o meu pai acabou morto. Planeja matar quem dessa vez? Qual dos meus irmãos?
Não fui eu que atirei. A culpa me arrebata por um instante de fraqueza.
Assim como ele, acho justo não desfazer o contato físico. Eu comecei com a discussão, fugir dela será uma péssima escolha e infantilidade da minha parte. Independente do que aconteça, não irei permitir que o controle da situação seja retirado de mim.
— Se você acha que só estou interessada em dinheiro ou qualquer bobagem de vingança, por que me libertou do obair?
— Ótimo que tenha entrado nesse assunto — sorri, incrédulo. — Por que me beijou?
Direto feito o disparo de uma arma, sem recuo ou hesitação, Dian não me solta nem quando me assusto por sentir as costas tocarem de leve na mesa de jantar, que é onde passo a me apoiar. A resposta está na ponta da minha língua, mas não tenho vez para falar.
— Você age como se não tivesse acontecido, e eu acho isso nada mais do que ridículo — prossegue Dian. — Faça mais essa cara de perdida, eu gosto de tirar as palavras da sua boca. Aliás, posso ser bem curioso quando quero. Como não tenho nada de importante para fazer aqui, presumo que irei ocupar meu tempo te perturbando até me dizer o motivo.
O som das batidas na porta retumbam e, mesmo que por reflexo, são responsáveis por fazer Dian me largar e olhar na direção do som, ainda próximo a mim e sem fazer questão de esboçar qualquer naturalidade. Eu só percebo que estou quase estirada na mesa quando a criada olha para mim cheia de confusão e depois para Dian. Nenhum de nós alivia a preocupação dela, e ela se vê sem alternativas, senão dizer o motivo da sua vinda:
— Sua Majestade está aqui.
A tensão deixa os meus pensamentos e, voltando ao raciocínio, me agacho para pegar os garfos que caíram. Nem tenho xingamentos o suficiente para direcionar a Dian, mas não estou com energia para isso agora, por isso só tento passar por ele e levar os garfos sujos à cozinha.
Contudo, com um passo para o lado, Dian barra a minha passagem e oblitera os meus planos.
— Sirva um chá a Dub e diga para aguardar — ordena, sem olhar para a moça. — Estou ocupado no momento.
A criada se direciona para mim com uma súplica da qual não posso corresponder. Ela não quer se dirigir ao seu rei e comunicar para que seja paciente. Ninguém tem a audácia de mandar um rei aguardar, mas ela não tem outra escolha a não ser acatar a vontade do príncipe.
De volta a mim, Dian exige uma resposta, sem dar importância a nada mais.
— Não sei a razão e não me empurrar foi escolha sua — retruco, sem alterar a feição ou o tom de voz, dando meu melhor para permanecer neutra. Nem eu posso dizer com certeza o que houve comigo naquele dia, exceto pelo sentimento de desespero. — Sabe que está perdendo seu tempo aqui. Eu não tenho mais nada a dizer... mas Dub tem.
— Nisso eu devo concordar. — A postura de Dian suaviza de um segundo para o outro, como se tivesse se dado conta de que só está tomando atitudes que enfureçam ainda mais o irmão. — Ele já veio para cá com vontade de me esfolar vivo. Raiva de mais, raiva de menos, não faz diferença. Sendo assim...
Com o olhar, acompanho Dian passar por mim, ajeitar a cadeira que estava sentado, acomodar-se e trocar seu prato inacabado de saladas com o que que contém mais duas fatias de carne. Antes de continuar, Dian faz um sinal com a mão para que eu me aproxime, e eu o faço, sem exagerar. Com seus talheres, ele os posiciona e realiza um simples movimento de vai e vem com a faca para cortar o bife, sem força ou velocidade excessiva. A faca dele parece muito mais afiada do que a que usei para jantar.
Eu fico inerte e silenciosa, sem entender o propósito de ele cortar carne se acabou de dizer que é vegetariano, mas minhas dúvidas são logo saciadas assim que Dian põe os talheres ao lado do prato e se levanta.
— É assim que se usa o garfo e a faca. — Pelo o que seu olhar indica, ele espera que eu repita para aprender. — Não é com a mão direita que segura a faca e você tem que parar de afundar o garfo com tanta força. É desnecessário tratar o prato como se ele fosse o Dother.
Cruzo os braços.
— E qual o intuito da sua dica?
— Intuito? Nenhum, na verdade. — Dian solta uma risada leve e inesperada, provavelmente tendo pensado em algo maldoso a dizer. — Apenas estava me agoniando e estourando meus tímpanos com você arranhando o prato.
A menção ao nome de Dother condiciona os meus pensamentos até a última audiência. Ele beijou o dorso da minha mão que foi ferida por ele próprio, lembro e não consigo evitar a pontada de raiva, medo e definitiva confusão que o ato ainda me causa.
Não sei com maiores detalhes a razão para Dian e Dother serem ariscos à presença um do outro, além da questão do cachorro que chamava napolitano e que pertencia a Dian, no entanto, o único ponto válido nisso é justamente o fato de Dian conhecer um lado do irmão que talvez mais ninguém tenha tido acesso, nem mesmo eu.
— Sobre seu irmão... — inicio por impulso. — Dother realmente não presta, não é? Por que todos o amam?
— O problema não é o estúpido prestar ou não, o problema é ele e todos os outros acharem que ele é especial. — Não espero tamanha sinceridade vindo de Dian, ainda mais com algo que eu disse sem pensar.
— Vocês dois estão na mesma posição — pontuo, encabulada, porém me recordo que agora Dian é visto como pior que escória, sendo um darach. — Ou ao menos nasceram iguais.
— Não. Nós nunca fomos iguais. O que faz os humanos acreditarem que tudo é tão homogêneo? Vocês simplificam tudo. — Dian se vira para mim e apoia com o braço na maçaneta da porta, prestes a se encontrar com Dub. — Me responda você: como acha que é a mentalidade de um imbecil que, diferente de todos nós, já veio ao mundo sendo druida? Ele não foi abençoado. Ele nasceu assim. Pode ser que no fim das contas o idiota realmente seja alguém especial e nós sejamos infortunados.
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HELLOOOOOOO
Aos poucos esse livro vai finalmente chegando no ritmo que eu preparei pra ele alskas
O que acharam da revelaçãozinha no final? :D
Ainda tem muuuita coisa do Dother pra saber
E essa semana não vai ter curiosidades pq eu to atrasada pra almoçaaaaaar
Enfim, brigada por terem lido!
INTÉ SEGUNDA QUE VEEEEEM
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