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É hora de ir para casa!

https://youtu.be/os2C0TdDphc


Por Gisinha Lima

Em uma fria manhã...

24 de dezembro...

Podemos pensar que não, mas o Natal como conhecemos nem sempre foi desse jeito. Essa festividade trivial e grandiosa, cheia de um glamour que, na verdade, é tão especial quanto o ouro dos tolos, já foi algo próximo do que se vivenciava nos primórdios, quando a sobrevivência era o mais importante e partilhar e ser solidário não era exatamente uma opção, mas um dever.

A maior festa do ano é também, por falta de um termo mais adequado, uma grande enrolação, durante a qual pessoas que semearam inveja, intriga e discórdia durante 350 dias do ano, agora esperam – muito cretinamente, vale mencionar – que os últimos 15 dias façam suas vítimas esquecerem o quanto foram torturadas, a nível físico, emocional e, nos dias de hoje, digital. É quando o verme subestima a inteligência daqueles que insultou o ano inteiro, esperando que o (a) insultado(a) realmente acredite que voltou às boas com seu agressor, apenas para que esse (o agressor, não se preocupe, pouparei seus pobres neurônios) garanta seus presentes de fim de ano, às custas – pasmem! – das pessoas que agrediram o ano inteiro, e que serão jogadas para escanteio novamente, até as festividades do ano seguinte, quando a mesma enrolação se repete, as pessoas sendo perpetuamente exploradas, vivendo um círculo vicioso demasiado tóxico e bastante perverso, que só é rompido quando o agredido percebe isso – antes tarde do que nunca – e se desvencilha, com muita dificuldade, da situação.

Eu sei, leitor, você provavelmente vai ler isso exigindo que eu romantize a situação, em respeito a essa época do ano, que deveria, pelo menos em tese, ser mágica...

Mas não. Não me darei o trabalho... pelo simples fato de que não quero fazê-lo. Além de, nesse momento da minha existência, eu procurar muito sabiamente me aproveitar do expediente de um personagem de TV muito engraçado e querido, desejando assim "evitar a fadiga".

A verdade é que as pessoas que sofrem o ano inteiro (e são decepcionadas diariamente, só para serem usadas como cofre de banco e caixa automático a cada fim de ano) já estão tão desacreditadas e desencantadas com a vida ao partirem, que é – quase – inevitável não experimentar as mesmas emoções e mergulhar na mesma insatisfação e revolta que os vivos experimentam durante toda a sua jornada quando vou ao seu encontro. E não há religião, filosofia ou mantras que possam confortar alguém que passa por isso, porque quem os regula ou profere, são quase sempre os mesmos que exploram, ou incentivam a exploração e a imposição do sofrimento a outrem. Gostaria de poder dizer que há exceções, que ainda há pessoas bondosas, capazes de fazer mais pelos outros sempre que possível, mas, ao vermos tantos oportunistas, gentinha se mostrando nas redes sociais, expondo uma vida glamourosa que na verdade nunca teve, e tanta falta de ética e desrespeito com o próximo, fica meio difícil achar bons exemplos, certo? Não quando a mídia que mostra, falsamente mesmerizada, um exemplo de boa vontade é a mesma mídia sensacionalista que vive da exploração comercial de tudo que há de mais feio e tenebroso no ser humano.

Infelizmente, para um grupo familiar que ainda insiste em se comportar como se fossem a última bolacha do pacote, essa lição foi aprendida de uma forma bastante dolorosa, não apenas por precisarem, momentaneamente, abrir mão de seu status para garantir sua sobrevivência (questões de vida ou morte costumam ser muito urgentes, especialmente quando eventos a estas relacionadas caminham na minha direção); as pessoas com as quais passaram a conviver, após todos os percalços que precisaram enfrentar, exigiam não apenas respeito, empatia e tudo o mais relacionado a um comportamento mais respeitoso.

Exigiam, tão e simplesmente, que se lembrassem de qual era seu verdadeiro lugar, sua atual e perene condição – por mais especiais que morressem se achando, nunca deixarão de ser o que sempre foram – e se lembrassem que, não fosse pelas mesmas pessoas que tanto menosprezam (e, pasmem, invejam!), sequer se encontrariam na condição que estão agora. Resumindo, não apenas por uma questão de respeito, mas pelo simples reconhecimento da inexistência da autossuficiência (todos dependem de todos até o dia em que me encontrarem, goste você disso ou não!); dar crédito a quem merece é o mínimo que se espera, especialmente se você não tem competência para chegar ao mesmo status sozinho (a).

Alguém que conseguiu, com talento natural, dedicação e muito esforço empregado, chegar a um status e situação financeira confortável almejados por todos, mas completamente fora do alcance de uma parcela da população, esta incompetente, preguiçosa e sem o menor desejo de crescer, que não às custas dos outros, quando atravessa o caminho de alguém que (não se dando sequer o trabalho de fazer o mesmo!) acha que fez a mesma coisa, mas optou por conseguir o mesmo status por meios menos aceitáveis (um mau casamento, por exemplo...), meu conselho maior e de ordem geral é: não se orgulhe, muito menos daquilo não foi mérito seu, deixe isso para quem realmente pode se dar o luxo. O que você alcança por meio de mãos que não são as suas não é motivo de orgulho, muito menos deve ser usado para fazer inveja, a postura a ser adotada nesse caso é a mesma adotada pelos verdadeiramente ricos, realmente cientes da sua não condição, "meus pais é que são ricos" sendo seu mantra, e também seu bordão.

As pessoas que conquistaram seu status apenas vivem de acordo com o padrão de vida que alcançaram, porque merecem o status atual, afinal batalharam para tanto, é inevitável que sejam um pouco vaidosas – ainda que não recomendado – mas se falam de suas conquistas, cientes do que fizeram, – e muito mais ainda do que abriram mão para chegar lá – é porque podem fazer isso, essas pessoas agiram com dignidade, batalharam com as armas e meios que a vida lhes deu, e conseguiram muito com o muito pouco que lhe foi dado; essas pessoas, sim, tem motivo pra se orgulhar. Tem uma vida confortável, ainda que simples, e todos os meios para viver de acordo com os ideais que sua situação financeira e status social lhe permitem viver.

Não estou com isso incentivando que haja diferenças, muito pelo contrário. Além do que, não posso incentivar, ou mesmo desestimular aquilo que já existe e está arraigado. Pessoas tem o bom senso de conviver apenas com pessoas que "falam a mesma língua" por um bom motivo. Pessoas de universos diferentes não conseguem pensar do mesmo modo, isso é praticamente impossível, além de ser a maior causa da quantidade de injustiças que sempre existiram.

Hoje, mesmo com todo o cenário de (des)avanço tecnológico, a frase "cada um no seu quadrado", apesar de ser um tanto simplória, nunca fez tanto sentido, tanto para esse grupo familiar, nenhum pouco merecedor dos parcos privilégios que acha que conseguiu, como para as pessoas que (sem muita escolha) agora os cercam, em muito precisando se ajustar (ainda que estes primeiros sequer tenham feito esse esforço logo de saída...), vendo-se forçados a conviver com pessoas que não desejavam e, ao mesmo tempo, passando pelas muitas mudanças que a vida exige rumo a maturidade, aprendendo por conta própria, alcançando pelos próprios braços, tudo que tem, mas diferente de seu novo círculo social, permeado do mais puro preconceito e menosprezo, a vida desse segundo grupo passou a ser muito mais calma, depois de uma tempestade de problemas que testou até seu último nervo, provando o que eu sempre soube, mas gosto de falar no final, quando tudo está resolvido...

Ao verdadeiramente vencedor, as batatas!

E, apenas como forma de confirmar minha premissa (digo minha, mas qualquer um com o perfeito juízo pensa do mesmo modo), que tal observarmos um pouco o dia de todos os envolvidos, tanto direta, como indiretamente, naquilo que poderia ter saído um completo desastre, mas acabou, por falta de termo mais adequado, saindo melhor que a encomenda?

*****

Enquanto as malas estavam espalhadas pelo quarto aconchegante onde se encontravam, as paredes banhadas pela luz matinal, um sol pálido e tímido iluminando suavemente o aposento, a maior parte abandonada em cima da cama, aberta e sem destino certo, um homem encarava o próprio reflexo em um pequeno pacote embrulhado em um papel de presente azul turquesa, uma espessura não muito fina, mas consistente com algo que ele já desconfiava que houvesse sido escolhido a dedo para ele. O sorriso no rosto ficou ainda maior quando leu o pedaço de papel dobrado em dois, a letra miúda e caprichosa espremida ali.

Caro amigo secreto:

Esse ainda não é seu presente de natal, mas já dá uma boa ideia do que vai ganhar. Faço votos de que o agrade, tanto quanto aquele que será seu presente logo mais.

Até lá!

Muitos beijos da sua amiga de presentes.

Ele voltou a sorrir ao desembrulhar um livro que não o surpreendeu menos que a pessoa que o enviou (ou melhor, deixou ali sorrateiramente. Ultimamente, ela também se servia de seu meio de transporte peculiar, principalmente quando saía atrasada para a escola).

O diário de Anne Frank, um relato vívido da Polônia em plena Segunda Guerra Mundial, descortinado pelos olhos de uma menina de 13 anos, o desviou de sua missão de arrumar a bagagem para o dia seguinte, fazendo-o voltar-se para a poltrona onde estava, por um segundo esquecendo até mesmo da rusga ainda existente entre ele e certa jovem, amante dos livros e barraqueira por opção – esperemos que ela também não seja telepata, ou com certeza vamos ter uma explosão de ira logo mais!

O presente delicado, contudo, tornou-o ainda mais consciente do que nunca que precisava tomar uma decisão que pode, a longo prazo, definir como será o futuro de sua família, e o que é mais necessário para que pudessem ter algo próximo do que tinham antes. Apesar do tanto que viveu e aprendeu, esse homem, agora diante de um presente singelo, que não passa de um recado implícito muito claro, entendeu o que a frase "dar murro em ponta de faca" realmente significa. Decisões precisavam ser tomadas, algumas não serão mais populares que as já tomadas; no entanto, isso se faz necessário em um contexto no qual se percebia obviamente que não se encaixavam.

Enquanto esse presenteado segue ocupado, emocionado a cada página com o mimo que lhe fora dado, que tal vislumbrarmos um pouco do dia agitado que todos, inclusive nosso querido presenteado, tiveram até o momento em que esse – e o próximo mimo – serão os primeiros de muitos a ocupar uma modesta estante, ferrenhamente escondida de todos, até dos mais íntimos...

****

No dia anterior a esse...

- Lúcia? – uma cabeça loira balançava-se em completo horror, os olhos arregalados. – você ficou doida de vez?!

- Como assim? – uma jovem sorriu, os olhos castanho-escuros travessos, fingindo uma inocência que não enganava ninguém.

Enquanto todos na graciosa casa nº 18 do Regent Park ainda descansavam, se refazendo de um baile muito animado a que compareceram, oferecido pelo novo padrinho de Elisabeth, às nove da manhã em ponto, a irmã desta, a carteira em mãos e uma lista enorme de presentes, saiu da própria casa, animada para as compras.

- Você não vai levar isso com você! – a mulher rosnou, aborrecida.

O isso a que ela tão raivosamente se referia era nada menos que um exemplar novinho em folha de It: a coisa!, escrito pelo mestre do suspense Stephen King. Além dele, estavam dispostos diante de um animado atendente da livraria mais movimentada de Londres outros vários exemplares novos, sendo mostrados às duas clientes, entre eles O homem de Giz, de C.J. Tudor, Até que a culpa nos separe e O Caçador de Pipas. Outros livros como O natal de Poirot também estavam na lista da jovem, mas aquele em particular seria um presente à parte.

Melhor dizendo, um dardo envenenado à parte...

- Por que está preocupada? Nem é pra você! – a outra apenas meneou a cabeça, ainda sorrindo sonsamente.

- E por que você acha que estou preocupada? – ela olhou em volta, os outros clientes observando a dupla, curiosos, antes de voltar-se para a amiga – A última vez que você fez isso traz alguma lembrança? No que deu, mais exatamente falando?

- Ah, na verdade, foi Sua Baixeza Real que fez essa "gentileza" comigo. – Lúcia rosnou, igualmente aborrecida. Mr. Mercedes foi o primeiro volume da Trilogia Bill Hodges, que literalmente conquistou a jovem e ao mesmo tempo a enfurecera, por ter sido usado como dardo envenenado de maneira tão ultrajante.

- E quanto a Um estudo em vermelho? – uma jovem, quase tão loira e da mesma idade de Elisabeth, agora rodeava Lúcia, igualmente preocupada.

- Deixa eu pensar um pouco... - a moça olhou para o teto, um dedo indicador batendo suave e rapidamente no queixo desta. – ah! Foi ele, também.

- A corrente?

- Tudo culpa dele!

As duas mulheres começavam a se preocupar, achando que não conseguiriam demover Lucia da ideia de provocar uma tragédia sem precedentes.

- Ah, tem também outro... O que aconteceu com Annie?

A jovem começou a rir.

- Adivinhem?

As duas já iam desistindo quando uma moça vinha na direção delas, equilibrando um exemplar em capa dura de A revolução dos bichos, que logo chamou sua atenção.

- E aquele ali?

Lúcia tentou segurar o riso como podia.

Eu sei que vocês acham que eu não posso comprar esse livro pra dar de presente, mas... Não estou nem aí. Acostumem-se, ele me ofende, eu ofendo de volta. – a jovem bufou. – Estão com sorte até. Eu podia bater nele, tipo, sei lá, com a frigideira.

As acompanhantes de Lúcia se deram por vencidas e, rindo, voltaram às compras, dos presentes e decoração aos preparativos da ceia, deixando as três bastante ocupadas, o dia ensolarado e cheio de animação a receber as três mulheres.

Só que nem tudo é só animação e risos, certo?

Apesar do clima, a vida não estava tão festiva assim. Muitas coisas aconteceram ao longo dos meses antecedentes, tirando sua vida normal dos trilhos, bagunçando tudo, a solução para isso tudo parecendo cada vez mais difícil, o fim do túnel mais longe, conforme o tempo passava. Mas antes que esse capítulo fique melancólico demais e acabe com o clima de boas festas, que tal visitarmos outro diálogo, que promete ser quase tão animado quanto esse? (não prometo nada, estou apenas garantindo a paz e a harmonia que, nessa época tão especial do ano, deve reinar nos lares... bom, estou me esforçando, trabalhando bastante pra isso...).

It's been a long day without you my friend

And I'll tell you all about it when I see you again

We've come a long way from where we began

Oh I'll tell you all about it when I see you again

When I see you again

HENRY

Quando já estava quase desistindo de esperar que Kelly finalmente desse o ar da sua graça, finalmente a porta do pub Vitória da Rainha se abre, o vento frio de dezembro antecendo a entrada de um rapaz que outrora, nos tempos de escola, era o mais franzino dos garotos da São Bartolomeu, uma muito provável vítima de várias emboscadas nos corredores, não fosse minha enorme e assustadora presença... E você leu corretamente certo! Eu era muito gordinho, tipo o garoto do It, a coisa! e Kelly era o menor entre os meninos da quinta série.

Pois é, mas os tempos mudaram...

Eu falo desse jeito brincalhão, mas nossa infância não foi das mais fáceis, afinal, uma criança pode facilmente virar alvo dos valentões por qualquer motivo, da fofura em excesso à inteligência demasiada; o mesmo vale para a beleza, especialmente a das meninas (entre parentes próximas, a competição pode ser selvagem, até supera a da escola, mas é na escola que as invejosas se aproveitam, já que os alvos das suas invejas estão sem proteção); olhos oblíquos, pouca estatura, sardas, espinhas, timidez, pés pequenos, cintura fina, pode escolher.

Os pais mandam os filhos para a escola receber educação formal por ser uma mera obrigação parental junto ao Estado, – mande seu(s) filho(s) para a escola, ou prendemos você! – ou simplesmente por orgulho em relação aos outros – meu(s) filho(s) tem mais inteligência que o(s) seu(s), tipo aquela competição ridícula, "meu cavalo é melhor que o seu". O problema é que não são eles que vão sofrer as agruras consequentes de uma educação familiar que visa apenas satisfazer sua vaidade pessoal. Somos nós, as crianças, que sofreremos nas mãos dos valentões, sejam eles externos ou as vis sanguessugas criadas nas tetas da própria família, sendo arrastadas dia após dia para esse terrível abatedouro... Também conhecido Escola.

Eu ainda estava imerso nas lembranças lúgubres da infância, totalmente destoantes da época festiva que vivíamos, quando Hannah, minha ex-colega de banda amadora e a única a seguir trabalhando no pub, passeou pelas mesas, chegando perto de nós, um sorriso largo no rosto, a maquiagem gótica destacando o rosto redondo.

- Olá, rapazes! – a voz afiada alcançou meus ouvidos, afastando tudo que literalmente estava pesando na minha cabeça. – A que devemos a honra da presença dos nossos ex-funcionários mais famosos? Estão precisando de um esconderijo? – mesmo a piada ficando velha, acabamos rindo, ela a sorrir ainda mais, voltando para o bar depois de anotar nossos pedidos.

Uma heroína que se mantém constante, apesar de todos – ou quase todos – termos dado o próximo passo, Hannah também tinha o sonho de formar a própria banda de música; ela era talentosa, tocava piano lindamente e a voz de sino dos ventos era, por falta de palavra melhor, incrível. Ela teria futuro, se investisse na própria carreira e se cercasse das pessoas certas. Algo bem difícil se o seu sonho está no meio artístico (lá vai eu de novo!), eu sei por que a cantora pop que conheci no Festival de Munique passou por isso, precisou aturar alguns perrengues pra poder chegar lá... Só que ela não era a Hannah. Essa valente e incansável trabalhadora preferiu limpar chão e servir mesas num pub, tocando de forma amadora todas as noites a se rebaixar por qualquer CD de gravadora. Torço para que todo o esforço dela seja recompensado um dia, pois é triste quando nos dedicamos de corpo e alma à realização de um sonho de infância, um baita projeto de vida, para só colher a decepção e a falta de reconhecimento.

- O que era tão importante assim a ponto de precisar de uma mesa aqui no pub pra me contar? – tornou Kelly, ainda corado do frio enregelante de dezembro.

Eu não sabia como controlar a ansiedade e nem adiantava tentar, Kelly e Lúcia me conheciam bem até demais, então dei o melhor sorriso e, discretamente, a fim de não atrair olhares desnecessários (comuns nessa época do ano), mostrei uma caixinha aberta com um aro dourado e um solitário pequenino, faiscando na luz suave do pub. Ele abriu um sorriso enorme quando viu.

- Não acredito, cara! – ele deu pequenos tapas no meu ombro, tamanha alegria. – Então já decidiu sossegar? Estava mais do que na hora, quem é a felizarda?

- Por que precisa ser uma felizarda? – Hannah passou outra vez por nós, os olhos baixando para a aliança que tentava esconder. – Ele pode ter mudado de time, quem sabe... Você mudou? Passou-se tanto tempo. – de repente, aqueles olhinhos azuis me encaravam, meio apertados. Odiava quando ela fazia isso...

- Não, - Enfatizei, usando um tom de voz que estava bem longe de ser azedo. – garanto que gosto de mulher.

- Tudo bem, preferência já reforçada, - Kelly também riu. – Ah, oi, Hannah!

Ela entendeu na hora que o troço era sério e voltou-se para o bar, a fim de pegar os pedidos das outras mesas.

- Tá legal, conta logo! – bem no meio da lata, né, Kelly! Fazer o que? Melhor contar de uma vez.

- Vou pedir a Izzy em casamento. – meu sorriso só não era maior porque não havia como. Meus amigos já conheciam a garota pra quem eu andava arrastando asas desde que mudei para Munique, e ficaram muito felizes por mim, e mais ainda com ela, por sermos do mesmo ramo, parecidos em várias coisas, o que só poderia resultar em um relacionamento harmonioso à longo prazo. Apenas Kelly tinha lá suas reservas, e eu sabia por quê. Só não queria falar mais disso, já que, aparentemente, eu havia perdido a batalha (mas não a guerra, Lizzie me lembrava, às vezes). Tudo que fiz foi aceitar a situação de uma vez.

- E a garota que cantou com você no festival? Você sabe, lá em Munique, depois do estalo.

- Ah, a Cohen... – eu sorri, lembrando dos primeiros cinco meses depois da primeira briga com a Isabella, achando que a gente não voltaria. Foi um relacionamento curto, mas bem alegre, e ela se tornou uma cantora lírica pra lá de famosa depois disso.

Kelly ainda me encarava, um vinco de preocupação na testa.

- Já conversou com a Briseida sobre isso?

- Já, quer dizer, mais ou menos – confessei, a cadeira onde eu estava, de repente, ficando desconfortável. – Eu contei a ela sobre a Isabella, do quanto eu gosto dela e tudo... Mas desde que isso não afete meus planos de ir para Genebra assumir um lugar na orquestra... - O queixo de Kelly caiu enquanto eu falava. – Ah, esqueci isso, também. Estou de mudança para a Suíça. Um convite de última hora, mas Kaito conseguiu um lugar pra mim na orquestra onde ele atua como diretor fi...

- E quando você pretendia contar isso? – eu esperava preocupação, tristeza, talvez. Esse olhar acusador, não.

- Sei lá, papai, no dia de São Nunca? – rosnei, irritado. – Foi tudo muito rápido, ainda não deu tempo de processar. – o que era mesmo verdade. As coisas ultimamente vinham acontecendo muito rápido. O tempo também teimava em voar, o que não deixava margem para fazer planos à longo prazo, algo que me deixava bastante inseguro em relação ao futuro.

- Cara, não precisa morder, também. – Kelly se irritou, mas logo voltou às boas comigo. – Só fico pensando em Lúcia, porque ela vai zangada com você, muito zangada!

Droga, tinha que esquecer logo dela?

- Olha só, eu deixei Briseida na casa da tia Hannah antes de vir pra cá, que tal passarmos lá pra contar a novidade?

Kelly soltou uma risada ao ouvir isso.

- Briseida? No mesmo ambiente que Lúcia e as amigas?

- Sim, por quê? – comecei a ficar preocupado nessa hora.

- Ela já sabe que vocês vão para a Suíça?

- Claro, e está animada, não fala de outra coisa a semana toda. – eu suspirei. – Quando ela começou a escola nova em Munique, ficou bem apreensiva, quer dizer, nova escola, idioma diferente, provavelmente amigos novos, isso a deixou nervosa por um tempo, mas Genebra a está deixando bastante animada, já que a língua não será um problema e podemos fazer todo tipo de coisas ao ar livre, vai ser maravilhoso.

- Não falei disso, apesar de achar ótimo que você e sua sobrinha vejam essa mudança como algo positivo. – Kelly sorria. – o que me passou pela cabeça agora é que, se Briseida já sabe dos seus planos sobre a orquestra na Suíça e você não teve o bom senso de pedir segredo, a essa altura, todos na casa da Sra. Fairchild já sabem.

Foi quando quis realmente que abrisse um buraco no chão agora.

- E para completar, Lúcia e a mãe estão recebendo um grupo bem grande, já que esse será o primeiro natal de verdade desde o estalo e bom...

- Não. – eu empalideci, sabia porque senti o sangue fugindo do meu rosto e pescoço. – Não, Lúcia só está com a família, você, Lizzie, Polly...

- Não, - Kelly sorria de orelha a orelha. – Lizzie trouxe o namorado pra conhecer a mãe dela, além da amiga rica dela, que veio pra passar o natal aqui, junto com a família dela; a garota de antena[2] e as amigas, algumas das convidadas do nosso casamento que mantiveram contato, Laura e o marido, que vão trabalhar comigo como sócios... E, claro, a sua ex-namorada, que decidiu passar o natal em Londres esse ano... Sabe, o carro cujo porta-malas... – eu corei de vergonha ao ver uma sombra se agigantando em cima de nós.

- Mas vocês homens são mesmo um caso perdido, hein! – Hannah, a nossa Hannah, nos abordou, furiosa. – não falam sobre outra coisa?

- Estávamos falando de carros, né, Kelly? – eu ri, sabendo que nossa querida amiga ficaria ainda mais brava. Kelly segurava o riso em vão.

- Carros, sei! Vocês homens são podres! – ela se irritou. - Como foi que a Lúcia acabou casada com você? Ah, é, eu também posso responder essa... Ela padeceu do mesmo problema que todas nós mulheres pobres enfrentamos na vida... Falta de opção! – e com um bufo irado, ela voltou-se para o bar, a bandeja já cheia de pedidos que aqueceriam os clientes do bar enquanto aquela chuva torrencial durasse.

- Ela não falou sério sobre a Lúcia, não é? – Kelly se preocupou, à toa, em minha opinião. No entanto, a insegurança sempre foi um problema pra ele.

- Bom, saímos das fraldas juntos no jardim de infância, então, crescemos juntos, de certa forma... – eu sei, devia tranquilizá-lo, mas não foi bem o que aconteceu, então resolvi mudar de assunto. – O que você fazia aqui no centro antes de me encontrar? Não avisou do atraso.

- Um casal está procurando casas pra eles em Londres e eu achei a casa ideal, com pé direito alto e tudo, por isso enfrentei aquilo, - ele apontou para a chuva na janela. – fico feliz em dizer que ficaram satisfeitos e já assinaram a papelada e o meu empreiteiro fará a reforma deles depois das festas.

-Olha só o pequeno Kelly trabalhando com as casas. – Sorri ao ver o homem que ele se tornara. – Tem até empreiteiro, que chique!

- O não tão pequeno Kelly! – ele riu, animado. – E, sim, tenho um empreiteiro, cuja esposa ficou demasiado feliz de vê-lo mexer em qualquer cozinha que não fosse mais a dela.

- Laura ficou feliz com isso?

- Sim, com a faculdade dos filhos garantida e a certeza de a casa deles permanecer intacta, que esposa não ficaria feliz? E grana extra, mesmo em Libras, sempre é muito bom.

Enquanto Kelly relatava sua nova parceria na corretora imobiliária que herdou depois do estalo, animado com os rumos de seus empreendimentos, aproveitei para relaxar na cadeira e pensar num meio de resolver dois problemas sérios: Briseida e como ela reagiria ao meu noivado e como outra certa dama também reagiria a isso, além de todas as decisões que tomei no último ano, todas partindo de uma única premissa óbvia.

Não posso esperar pra sempre!

A ceifadora de histórias...

Bom, não prometo nada, como eu disse antes, estou me esforçando!

(Por favor, não me cobrem, tudo que faço é buscar vocês no momento certo, não posso interferir na vida de ninguém).

Entendo que as pessoas, já amplamente frustradas, esperem que as coisas se ajeitem de modo a tudo seguir em linha reta para a resolução dos problemas em curso, mas aqui me dou o luxo de roubar a fala de Mahatma Gandhi ao aconselhar você, caro leitor: faça você a mudança necessária e desejada. As pessoas nos cobram tanto (são especialistas nisso!), mas ao olhar para os outros estão apenas disfarçando a própria sujeira, afinal, é mais fácil ver sujeira na janela dos outros do que se dar o trabalho de limpar a própria janela. Impõe-se um padrão de comportamento que, no fim, ninguém consegue alcançar, só para esfregar na cara dos outros que eles (os outros) é que são imperfeitos. Que tal verificar se seu teto não é de vidro? Se for o caso, faça-o regularmente, ou terá a desagradável visão de cacos vindo em sua direção mais vezes do que gostaria.

Contudo, a essa altura do campeonato, fico feliz que, pelo menos, uma alma que venho observando aprendeu isso, e de uma forma mais suave, com as próprias convicções, o que é sempre bem melhor do que ver a vida pela lente de aumento dos outros, um modo nada agradável de viver, certo? Que tal espiarmos o próximo diálogo, que é uma prova muito feliz do que acabo de dizer?

*******

Três dias antes disso...

Eu ainda não estava pronta para o que estava por vir, mas já imaginava no que resultaria.

Ainda estava em frente ao meu notebook, a longa lista de presentes que Lúcia e eu íamos trocar durante nosso jantar de natal em Londres, um item à parte me fazendo rir (pobre Sr. Darcy!), até ver Ava, a garota com quem eu dividia o apartamento, já na sala de estar, as malas prontas, o pai dela bem ansioso, já que seria a primeira viagem mais longa dela desde a infância, quando ela migrou da Argentina pra cá pra tratar uma condição grave de saúde, que a longo prazo se tornou progressiva e – por muito pouco, mesmo! – definitiva, o estalo[3]* (algo que, ironicamente, foi benéfico para a situação, porque ela melhorou) e a atual situação de pandemia, um dos motivos para hoje eu precisar dividir o apartamento.

Dividir o apartamento com uma amiga que estava precisando de espaço foi um ajuste que precisei fazer pra manter as despesas equilibradas, algo inesperado, já que eu tinha feito meu planejamento de forma a não precisar recorrer a isso (eu ainda prezo minha privacidade...), mas acabou sendo uma benção disfarçada, já que, quando me mudei pra cá para os EUA, eu tinha brigado com a minha mãe e Lúcia tentava de tudo pra voltarmos às boas, algo que demorou bastante; então o que poderia ser um incômodo e um problema me presenteou com a convivência com o pai adotivo da Ava, que se tornou uma figura paterna demasiado importante durante os meses que passei aqui, não que eu sentisse falta disso; meu pai nunca foi ausente, e o Sr. Darcy – mesmo sem perceber – conseguiu suprir essa falta. A convivência com o pai da Ava, no entanto, me possibilitou reavaliar minhas prioridades, além de ajudar no sentido de ver o que eu ainda desejava. Ele tem um senso de praticidade que superava até a Lúcia (que minha irmã nunca escute isso!), era um excelente cozinheiro e muito divertido, o que trouxe muita leveza pra minha vida nesses tempos tão difíceis, em que fiquei isolada em casa. E Ava, com o tempo, se revelou um desafio, já que ela era péssima em matéria de moda (o moletom que usava agora prova isso), namorados, então, nem se fala, então passávamos muito tempo juntas conversando. Meu próprio namorado estava bem ocupado, já que ele ajudava a polícia a manter a ordem, – de uma forma nada convencional, admito, além de uma equipe bastante inusitada... – então eu ficava meses sem notícias, o que tornou a companhia dela muito bem-vinda. Esqueci alguma coisa?

Ah, sim... a advertência...

Só posso dizer que eu podia dormir sem essa!

Quando menos esperava, o pai de Ava esperou que ela voltasse para o quarto, vendo se havia esquecido algo, a brecha de tempo muito bem aproveitada para checar se eu é que havia esquecido algo (não se preocupe, vai entender a redundância logo, logo).

- Você e Ava vão ficar bem, não é mesmo? – o sorriso afável deveria esconder a preocupação óbvia, mas não, o que só aumentou minha inquietação.

- São duas semanas, apenas, logo estaremos de volta. O projeto que tenho na editora poderia afundar e Literatura Americana Moderna vai ter aulas bem mais trabalhosas do que gostaria de admitir... – eu estava enrolando, eu sei, mas precisava saber o motivo de tanta preocupação. Eu sou ou não uma moça responsável?

O pai de Ava tinha lá suas dúvidas. Posso culpá-lo?

- Elisabeth, – o tom era comedido, a preocupação, nem tanto assim. – pode me garantir que essa viagem curta não vai causar nenhum estrago na vida da Ava? Ela já tem muito com que se preocupar.

- Pode ficar sossegado, professor. – eu sorri, ainda que minha confiança estivesse em baixa. – Ava vai se divertir bastante, além do mais, nenhuma das duas tem planos pra namorar, ou namorados em vista...

Aquele sorriso de novo não...

- Não é com os rapazes que deve se preocupar, Elisabeth... A Ava é gay.

Eu devia ter dito alguma coisa na hora, sei lá, mas minha boca não fechou por um tempo (tenho certeza que meu queixo despencou e ficou por aí largado). Tantas coisas poderiam ter ocupado meu pensamento, nunca me ocorreu que era comigo mesma que devia me preocupar.

Mas tudo que consegui foi um nada confiante:

- Não se preocupe, como disse antes, sua filha vai se divertir muito. – o nó na garganta não ficou mais confortável agora do que há alguns segundos atrás, mas devo ter passado no teste, porque ele ficou bem mais contente depois disso.

Ava voltou depois dos dez longos minutos em que fui sabatinada (me senti assim) e percebeu a mudança no ambiente, mas preferiu deixar as coisas como estavam e se despediu do pai.

- Até logo, professor, e nada de exagerar em Vegas. – ela sorriu, um olhar preocupado. – ainda acho que devia vir com a gente.

- E perder a chance de ver a Torre Eiffel e as luzes? Não, obrigado, Londres pode passar sem mim. Divirtam-se, garotas.

Não vou mentir, a situação ficou mais tranquila depois que nossa carona canina nos trouxe para Londres. Minha mãe nos recebeu (não sei se ela já esqueceu eu preferir a faculdade ao casamento, mas se não, ela não disfarçou muito bem) e Lúcia imediatamente nos envolveu naquele abraço de urso que ela costumava me dar quando pequena, algo que sinto muita falta hoje em dia. Só no meu antigo quarto que eu pude avaliar as coisas agora, me perguntando porque ela nunca havia me contado ou que pensava a meu respeito, só me restando o pensamento tenebroso de que devo ter feito algo para que tivesse receio de mim, uma coisa que tratei de remediar, porque o desconforto dela também era óbvio.

- Sabe que vou ser sempre sua amiga, não é? – começo errado! Mas tinha que partir de algum lugar.

Recebi um sorriso encabulado como resposta.

- Isso te incomoda?

Meu sorriso involuntário me fez perceber que eu não precisava me preocupar com nada.

- Seu pai me fez prometer que não te apresentaria para os rapazes, o que eu pretendo cumprir... – Ava deu uma risadinha. – mas não falou nada sobre garotas... e conheço algumas amigas solteiras que vão adorar conhecer você!

A risadinha que ouvi agora me tranquilizou bastante, o que rendeu um profundo suspiro da minha parte.

Tudo está bem quando acaba bem!

Damn who knew all the planes we flew

Good things we've been through

That I'll be standing here

Talking to you about another path I

Know we loved to hit the road and laugh

But something told me that it wouldn't last

Had to switch up look at things different see the bigger picture

Those were the days hard work forever pays now I see you in a better place

THOMAS

Lembra aquele valioso conselho que sempre nos dão, mas raramente ouvimos, "não dê um passo maior que a perna"?

Pois é, minha mãe ouviu isso... Diversas vezes, na verdade, mas só muito depois de eu ter nascido, ela finalmente resolveu seguir o conselho. E não foi porque ela achou ser o certo, não. Não mesmo!

Foi por puro orgulho!

Antes de dizer qualquer coisa sobre o que eu penso a respeito, ou sei lá, criticar as decisões mais recentes dela (ela precisava ouvir algumas coisas também!), que tal eu contar uma situação que vai, logo mais, explicar o porquê de ela ter feito uma burrice que nem eu pensei que ela faria (mamãe jura que eu vou entender quando ficar mais velho... não sei, não...).

Vamos lá para a história? Prefiro contar logo, antes que as coisas esfriem e eu perca o fio da meada, e acreditem, isso já acontece muito, agora que, mesmo não admitindo, todos sabem que sou capaz de invadir mentes, ler pensamentos e conversar por telepatia com os outros, o que faz com que eu seja considerado um perigo em potencial. Que coisa, não?

Ninguém tem paciência comigo!

***********

Enquanto uma chuva forte batia ruidosamente nas janelas, um som realmente assustador sacudindo as vidraças de todas as casas de Londres, alheia a fúria pluvial, um grupo de mulheres se reunia na cozinha alegre e iluminada da casa nº 18, os risos enchendo o ambiente, tornando o espaço menor e mais sufocante do que realmente parecia. Uma delas lutava para segurar no colo um garotinho, que tentava de tudo para alcançar uma tigela de massa para biscoitos que agora foi puxada por uma jovem, os olhos cinzentos brilhando divertidos, as covinhas no rosto fazendo-os sumir quando ria. Outra jovem suspendia uma garotinha pequerrucha de pouco mais de um ano no colo, sentando-a na bancada de granito, dando-lhe mais espaço para ajudar no preparo do jantar. Todas as outras riam enquanto uma senhora se fazia ouvir, a algazarra ficando ainda maior. Mulheres de diferentes idades se espalhavam ao redor da bancada, umas ajudando com os afazeres, outras meramente assistindo, todas especialmente felizes, a atmosfera natalina, apesar de espalhada em cada canto da modesta residência, sendo a única coisa que não era motivo de conversa no momento.

- Sério, achei que as coisas fossem sei lá, melhorar, mas... bom...

- Kate, querida, não é saudável esperar que um cavalheiro tome a iniciativa, você pode morrer esperando!

- O coitado pode ser como o Sr. Bingley, mamãe! Aí não tem mesmo remédio. – uma garota fez todos rirem na mesa, se sobrepondo ao ruído feito pela chuva no vidro das janelas, fazendo a cozinha parecer ainda menor.

- Tia Lúcia, por que você não foi mais pra Munique visitar a gente? – uma menina estendeu uma colher de pau para uma das jovens mães, esta sorrindo enquanto remexia a massa de biscoito, acrescentando uvas passas na mistura.

- Bem que eu queria, Briseida, mas as coisas andam estranhas aqui desde que Kelly herdou a corretora do pai. – Lúcia mordeu o lábio inferior, pensando em onde o marido estaria agora, com a chuva impossibilitando-o de se deslocar ou entrar em contato.

A pequena, agora esguia e crescida com seus astutos dez anos, encarava Lúcia e as demais, os olhos verde-claro perscrutando o ambiente, testando as mulheres na cozinha.

- Eu pergunto por que, se vocês um dia forem ver a gente, vão precisar de um tempo maior de viagem. – uma loira que literalmente lutava para manter o filho longe da tigela com a massa de biscoitos retesou-se de imediato ao ouvir as palavras de Briseida.

- Como assim?

A menina sorriu, observando a figura, que estacava à menor e mais simples de suas palavras.

- Vamos nos mudar pra Suíça! – a garotinha sorriu, animada. – o Sr. Fujiyama conseguiu uma vaga para o meu tio na orquestra onde ele trabalha como diretor financeiro, foi o que eu entendi, pelo menos. – ela fez uma pausa cautelosa. – O legal é que se fala inglês na Suíça e não preciso ficar toda cheia de dedos ao falar com alguém. Vai ser ótimo.

- Que bom, minha jovem. – a mãe de Lúcia tentou desfazer o rápido constrangimento ali na cozinha, que foi esquecido igualmente rápido, o garotinho agora brigando com outra menina pelo prêmio, a tigela onde foram preparados os biscoitos que estavam sendo assados.

- Lynette! Solta essa tigela, agora! – a mãe da garotinha berrava a plenos pulmões.

- Não, mãe! Manda o Thomas soltar!

- Solta você!

- Os dois vão ficar de castigo se não pararem agora com essa gritaria! – sem nem mesmo alterar a voz, a boa senhora conseguiu fazer as crianças se calarem, deixando as mães e as demais mulheres impressionadas.

Enquanto isso, imersa nos próprios pensamentos, uma das mães seguia ignorada pela balbúrdia na cozinha, o coração pesado, na balança todas as possíveis consequências de se manter na atual situação, que podia, em um futuro não tão distante, fazer com que se arrependesse de não tomar a decisão que vinha há tempos adiando e, caso uma providência não fosse logo tomada, deixando-a em uma situação ainda mais desconfortável que a vivida antes que esse garotinho altamente teimoso passasse a fazer parte de sua vida.

How could we not talk about family when family's all that we got?

Everything I went through you were standing there by my side

And now you gonna be with me for the last ride

Uma mãe em desespero... e porque não dizer... em apuros...

Caro diário:

(Nota: sei que ainda preciso me acostumar com isso, mas não tenho realmente certeza se fiz bem em usar esse caderno como diário. Já me meti em muita enrascada por causa dele, enfim...).

Sabe quando você precisa estabelecer quais são suas verdadeiras prioridades, mas tudo à sua volta parece não querer te ajudar? Bom, ultimamente ando assim. Protelei bastante muitas decisões importantes, justamente por ter a ver com a minha vida pessoal, especialmente a amorosa. E não foi por falta de aviso. Fui avisada até demais (eu te amo, Thomas, mas você não tem poder de decisão nesse caso...).

"Você tem certeza disso, mamãe?"

Não acredito! Até tu, Brutus?

Eu só queria respirar um pouco, sério. Não é qualquer decisão, é o resto da minha vida, já que, para algumas pessoas, divórcio não é uma opção, e para uma parcela ainda menor, porém mais próxima de mim, casar seria o mesmo que enterrar tudo que batalhei pra conquistar, e nisso incluo a minha carreira, a qual eu prezo muito. Eu gosto de como vivo hoje, e parando para observar melhor o quadro geral (acredite, eu refleti muito nos últimos três anos), posso dizer que tenho uma vida maravilhosa! Quer dizer, eu tenho dois filhos que eu amo muito, uma carreira muito mais promissora a longo prazo, consegui mais uma titulação para engordar o currículo, algo que nem estava nos meus planos, não esperava mais voltar a estudar, mas confesso que foi muito divertido voltar a cumprir créditos em uma universidade. Bom, nos primeiros dois anos, pelo menos. Terminar, apesar de trazer muito alívio, não foi mais fácil, tampouco tranquilo, eu tive que carregar minha cota de vagabundos nas costas até finalmente perceber que os professores (os mais atentos, pelo menos) não faziam tanta questão assim de trabalhos feitos em grupo, então fiquei muito confortável tomando a sábia atitude de mandar todo mundo para o inferno.

Eu não precisava disso, não. Já tinha a titulação necessária para atuar no meu ramo de trabalho, o que veio depois foi bônus. Percebi, também, que eu tinha um lado carrasco, que mal conhecia... E que gostei de usar na minha própria classe, com os meus alunos (reparou que, quando saímos dos bancos escolares, temos a tendência de repetir com os "pobres" discentes o que os tão "incautos" mestres fazem com a gente?).

Ok, eu divaguei muito, já percebi, vamos lá, mantenha o foco!

O motivo de estar escrevendo agora é que eu, finalmente, acho que tomei uma decisão sobre como quero viver daqui pra frente e fico bastante surpresa de perceber que vai ser de uma forma muito diferente do que imaginei há quatro anos, quando toda essa loucura aconteceu na minha vida. Um belo dia esbarro em um casco que, à longo prazo, virou minha vida toda de cabeça pra baixo, e hoje me vejo tomando decisões que há uns dez anos nunca seriam prioridade pra mim, tão focada em fazer algo que era importante para outra pessoa, que já não estava mais aqui para fazer isso.

Eu poderia ter ignorado esse casco (como fui aconselhada a fazer, e talvez fosse a atitude mais sábia na época), poderia ter ficado com raiva dele depois, afinal eu quase levei um tiro e fui arrastada por meia cidade por causa disso. Hoje, no entanto, fico feliz de não o ter ignorado, do contrário, meus bebês não estariam aqui; bom, EU não estaria aqui, e nem a metade das pessoas que hoje fazem parte da minha vida não estariam comigo agora. Sara e Juliet estão sempre comigo, Isabella, muito generosa como sempre, me livrou de um encosto peludo (eu gostava daquele gato, sério, mas o dono dele já tinha me chutado, então foi bom seguir em frente e o gato devia ter ido embora junto com as coisas do dono, enfim... vamos, foco!) e de modo geral, minha vida está como sempre deveria ter sido se eu dispusesse de um tempo para pensar com clareza e focar mais em mim.

Não acredito muito nessa de "há males que vem para o bem", é só uma forma de deixar ao acaso as coisas boas que acontecem... fora que também não acredito em acaso. Apenas nas escolhas que fazemos, e mesmo aquelas que resultam em situações muito ruins, acabam se provando boas depois, já que somos ensinados desde pequenos que se a vida te dá limões, você tem que ser muito criativo ao fazer uma limonada.

Mas isso não vale se é a sua vida amorosa que pode descer pelo ralo e a minha estava a um passo disso.

Eu refleti muito e percebi que nunca estive tão feliz sozinha. Eu falava que não era tão ruim assim, mas a verdade é que eu só queria disfarçar o fato de que não priorizei minha felicidade o bastante e paguei caro por isso, agora vejo o quão idiota eu fui ao dar valor para coisas que no fim nem importavam tanto, e agora parecem tão secundárias que nem lembro mais porque as desejava. E só cheguei a essa decisão depois de uma boa conversa com um dos meus amigos terráqueos, sabe, esses que realmente só arredam o pé quando sabem que você está bem, não importando o quanto isso custe a eles. E fico feliz por eles estarem tão perto em um momento como esse, com tantas coisas acontecendo. E precisei muito deles, pois, quando achei que as coisas iam bem, foi o momento em que percebi que não poderia estar mais errada...

(Nota nº2: Também preciso me acostumar a olhar por cima do ombro, mesmo em casa... já que ainda posso ter a surpresa desagradável de ver gente aparecendo, de surpresa, e ver o que estou escrevendo... privacidade, zero, né?).

****

It's been a long day without you my friend

And I'll tell you all about it when I see you again

We've come a long way from where we began

Oh I'll tell you all about it when I see you again

when I see you again

A ceifadora de histórias...

Pobre alma, ela realmente pensa que está fazendo um favor a si mesma... pena que só engana uma única pessoa ao longo do percurso...

Apesar do que possa parecer, não a julgo por desejar algo que lhe traria felicidade e realização pessoal. As pessoas talvez se focadas mais em alcançar os próprios objetivos, ao invés de perder um tempo precioso – e fugaz, vale ressaltar! – frustrando as conquistas dos outros, ou tendo inveja destes por terem a vida que os invejosos não têm a mesma competência de conquistar, a vida de modo geral seria bem mais tranquila. E acho que finalmente ela entendeu isso.

Não, ela não perdia seu precioso tempo minando a vida dos outros, e não era por ser algo mesquinho. Felizmente, se há algo a ser dito de positivo sobre essa jovem e audaciosa mãe é que ela não era egoísta ou mesquinha; ela não era sequer má. Apenas dedicava o tempo que podia gastar consigo mesma realizando o sonho de outros. E o tempo, implacável como sempre, cobrou seu preço... E muito alto.

Hoje, contudo, as experiências vividas, tanto as felizes, quanto as amargas, ensinaram essa jovem mulher a focar mais em si mesma, seus próprios projetos, desejos e sonhos, alguns já alcançados, para sua alegria; outros, porém, dependiam muito mais da sua capacidade de amar o próximo e respeitar as próprias limitações, entender que seu direito acaba quando o do outro começa, além de até onde iria seu comprometimento, ou mesmo o quanto estava disposta a fazer, caso a felicidade de outros dependesse inteiramente de suas decisões futuras. E nesse caso, feliz ou infelizmente, a felicidade de uma família inteira dependia de todo seu bom senso. E justamente quando seria mais útil, percebia-se que ela não dispunha de muito...

First you both go out your way

And the vibe is feeling strong and what's

Small turn to a friendship, a friendship

Turn into a bond and that bond will never

Be broken and the love will never get lost

And when brotherhood come first then the line

Will never be crossed established it on our own

When that line had to be drawn and that line is what

We reach so remember me when I'm gone

THOMAS

Apesar de entender minha mãe e tudo que ela passou e abriu mão por minha causa, eu ainda acho que ela precisa se decidir, pois isso é o que vai definir se ela vai ou não ser feliz. Não apenas no coração, a vida dela toda depende disso. Meu pai seria uma péssima escolha, por conta de tudo que ele já pensa. Ou acha que pensa.

Um dos perigos de uma educação familiar tendenciosa e deficiente, que só visa menosprezar os outros, independente do que e quanto você (não) tem, é correr o risco de desprezar pessoas que podem ser vitais na sua vida. Quando você acha que é melhor que outras pessoas que, na verdade, estão numa situação bem mais confortável que a sua, você pode acabar caindo do cavalo. É fácil querer a grama do vizinho quando não é você que tem o trabalho de aparar, não é, não?

E talvez seja exatamente o problema hoje em dia: as pessoas querem sucesso, - a qualquer custo – mas sem a responsabilidade de fazer por onde. Minha mãe, como muitas pessoas na vida, nem sempre foi rica (na verdade, ela não é); precisou batalhar para ter o que precisava, mas teve que sair da própria zona de conforto e buscar em uma área de formação que havia abandonado, para se formar em outra que a ajudasse a realizar os sonhos do meu avozinho, o conforto material que veio como um bônus ao buscar o básico. E é assim que as pessoas agem, na maior parte do tempo (algumas, pelo menos): buscam o básico para si e para os seus, o que vier junto é lucro, e com minha mãe não foi diferente.

O problema foi que, ao longo desse processo, ela conviveu com diferentes pessoas durante os últimos três anos: tio Henry, um músico que se esforçou, precisando pagar pelos estudos para poder atuar na música clássica; tia Lúcia e tio Kelly, recém-formados na universidade, trabalhando nas próprias carreiras e no negócio que o pai deixou pra ele (algo que, até onde eu sei, não foi intencional), tia Elisabeth, ainda na faculdade, o sonho de ser escritora próximo da realidade. Pessoas que buscaram realizar seus sonhos e a incentivam a crescer, assim como as amigas da minha mãe dos tempos da faculdade, Sara, Juliet, Isabella e Victoria, que largaram seus compromissos no momento em que ela mais precisou, todas muito prósperas em suas carreiras, Juliet, professora, Isabella, empresária, Sara e Victória, empreendedoras digitais. Todos eles trabalham, são felizes nesse universo e tiram o melhor proveito disso e minha mãe, ao conviver com todos eles, cresceu nos três anos em que ela me teve e me viu crescer. E digo de barriga cheia, ela cresceu muito, viveu mais, aproveitou mais as oportunidades, descobriu que a vida não precisava ser tão dura.

A lição mais importante, no entanto, ela não aprendeu ainda.

Ela precisava aprender a ser mais decidida e (aqui ouso ir mais longe ainda!) fazer o que realmente é importante para o próprio futuro, porque ninguém fará isso por ela, cada um de nós deve fazer aquilo que realmente nos fará bem a longo prazo, afinal, cabe a nós decidir nosso futuro. E eu sei disso porque duas pessoas muito queridas ajudaram minha mãe a entender essa premissa...

How could we not talk about family when family's all that we got?

Everything I went through you were standing there by my side

And now you gonna be with me for the last ride

CHRISTIAN

O primeiro natal que passo fora de Santiago desde que minha melhor amiga precisou de nós e nos dispomos a cuidar não só da saúde dela, mas garantir que aos poucos retomasse sua vida, foi um tanto estranho. Não apenas pela situação em si (deixamos nossos compromissos e empregos em Santiago, a vida nos Estados Unidos substituindo nossa rotina antiga), mas porque agora convivemos com um grupo que em nada se parece com a gente. Eles não batalharam como nós, "conquistaram" seus privilégios explorando a boa fé de terceiros e menosprezam qualquer um que pense diferente.

Apenas pessoas como eu, que sabem o que é ganhar a vida com o próprio esforço, entendem o quão tóxico pode ser conviver com gente assim. Não apenas porque eles fazem de tudo para excluir das suas rodinhas quaisquer pessoas que pensem diferente ou não se submetam a sua vontade. É pelo simples fato de que esse tipo de gente existe, e, em momentos tão conturbados como o que vivemos agora, esse tipo de gentinha não devia proliferar tanto (já que faz mais mal do que bem), mas é o tipo de verme que você vê com frequência, mesmo que você faça o possível pra evitar.

Para evitar que a situação ficasse mais estranha do que realmente devia, e como uma forma de dar à mãe de Thomas e Mayse um conforto muito bem-vindo, algo que nem a Juli com todo seu bom senso conseguiu, decidi me encontrar com ela em um café pouco movimentado a essa hora do dia. Como ela dá aulas em casa agora, e estava no período de recesso, a gente marcou esse encontro, que eu também devia, prometi estar mais presente para os meus amigos, e em alguns momentos da sua vida você precisa cumprir a palavra dada (eu sei, Thomas, eu vou fazer meu melhor, campeão!).

Eu levantei os olhos para ver a figura que entrava no restaurante, a neve caindo em flocos, o cabelo loiro todo salpicado de pontos brancos, o gorro azul que segurava sendo sacudido, as botas de cano médio sendo limpas no tapete de boas-vindas na porta de entrada. Ela se dirigiu à um ponto com álcool em gel para as mãos e baixou a máscara pra limpar o rosto, um sorriso de uma orelha à outra ao me ver, eu levantando por instinto, batendo mecanicamente no assento, a figura robusta se acomodando, a nuvem loira e bem penteada escorregando preguiçosa pelos ombros, as bochechas coradas do frio intenso, os óculos agora de aro quadrado e muito discretos deixando a fisionomia elegante, os olhos azuis bem destacados, algo com que ela não se preocupava muito, já que no trabalho ninguém se importava com a aparência dela desde que entregasse um bom trabalho (e muita mulher que trabalhava com ela ficava feliz ao ver essa figurinha não se importar consigo mesma, mais coberta que na idade média, não fazendo bom uso das dicas que Victória só viria a dar bem depois) e ela não dispunha de amigas sinceras, ou mesmo parentes do sexo feminino que quisessem seu bem, as poucas que ainda tinha torcendo para que sua vida descesse ladeira abaixo. Ainda bem que voltamos para sua vida no momento exato.

Rever essas lembranças me trouxe à memória um meme que vi outro dia na internet, a frase dizendo bem assim, "todo mundo pergunta se a gente se formou, se empregou, casou, se teve filhos. Ninguém te pergunta se você é feliz".

Entenda, as pessoas não fazem esse tipo de pergunta por que se importam com você, é justamente o contrário, querem garantir que você continue na merda, ou pelo menos em uma merda pior que a vida deles, a situação se mostrando contrária faz quem te odeia ter faniquitos, porque a inveja não a deixa seguir com a própria vida, o divertido para o (a) invejoso (a) é te conduzir de volta para a merda de onde ele(a) acha que você veio. Raras são as pessoas que nasceram verdadeiramente ricas, a maioria nasceu e vai morrer na merda. Talvez consigam algum conforto, os que, como eu, se esforçam por onde, irão consegui-lo mais facilmente, e farão por onde manter esse status; a maioria, em geral parasitária, vai tentar fingir que ganha alguma coisa, geralmente explorando a boa fé alheia, ou à custa do contribuinte, o que é bem mais comum, mas fará o possível para que os verdadeiramente competentes não sejam vistos, ou caso sendo, não recebam o devido reconhecimento, a balança sendo muito injusta. E foi exatamente o que aconteceu com minha amiga ao longo dos anos. Apesar de ter uma boa reputação no mercado de trabalho (conquistada com muito esforço), raramente era reconhecida pelo que fazia, e ainda era chamada de maluquinha nos bastidores – trocando em miúdos, essa é minha forma elegante de dizer que incompetentes a sabotavam com frequência.

A perda familiar paterna também não ajudou muito, o que fez com ela literalmente se anulasse, vivendo em prol de realizar o sonho que um sujeito não teve competência de realizar ainda vivo e não teve o bom senso de lidar com a rejeição, que sempre acontece na vida profissional, transferindo para a filha todas as suas frustrações, pessoais e profissionais. Ele queria que ela desse continuidade a essa cruzada pessoal e, mesmo sem palavras, a fez conseguir isso, o que a levou a pausar toda uma vida de projetos pessoais, o que me deixou muito chateado quando a conheci melhor, porque não me conformei com as escolhas feitas. A mais recente, então, quase a matou, pois esperar que pessoas que já estão acostumadas a virar as costas assim que não precisam mais de alguém foi praticamente uma sentença de morte; ainda bem que as garotas tiveram bom senso o bastante pra tentar cortar o mal pela raiz. Uma delas, pelo menos...

- Terra para Christian! – é, ela estava mesmo ali, muito diferente da mulher que quase definhou há quatro anos, um sorriso hesitante, mas uma confiança e maturidade que deviam sempre ter estado ali. Vê-la tão cheia de vida foi muito reconfortante e me encho de orgulho ao saber que tenho minha parcela de contribuição pra tanto.

- Sinto muito, a nostalgia atacando na hora errada. – eu sorri quando nos acomodamos. – Fico feliz de conseguirmos esse espacinho na nossa agenda, mas imagino que você esteja bem ocupada com os preparativos das festas de fim de ano.

- É, sim, e prometo contar tudinho, já que vocês também vão... Mas preciso de sua ajuda com outra coisa.

Eu fiquei meio perdido com o que ouvi. Tenho certeza que perdi algo na fala da Juli sobre o natal.

- É muito sério?

- Você já advoga há quanto tempo?

Agora sim eu entendi o que ela queria. Um conselho vindo da experiência sempre vem a calhar.

- Eu sempre quis ser mãe e não vejo mais minha vida sem o Thomas, mas consigo perceber que poderia ter pegado um rumo diferente na hora de planejar a gravidez...

- O plano A deu certo, não deu?

- Deveria ter dado, mas acho que consegui mais do que precisava.

- Sarna pra se coçar? – ganhei um olhar torto de volta, mas gostei do sorriso que veio em seguida.

- E um pai que enxerga ele mais como herdeiro e futuro rei em potencial e não como o filho que poderia ter sido. – aí eu vi um sorriso que não gostei muito. – Alienação parental é muito ruim?

- Essa pergunta foi para o amigo ou o advogado? - Eu segurei o riso como pude, entendendo a pedra no sapato da pobrezinha. - Está bem, desabafa aí.

- Eu sei que você pode achar que não, mas... eu percebi agora como as coisas estavam boas...

- Na verdade, o tempo de ser feliz veio e passou e você ficou tão ocupada com outras coisas, agora não tão importantes, que esqueceu do principal – eu sorri ao vê-la corar. – você mesma.

Um rubor mais intenso se espalhou pelo rosto dela.

- Você podia e devia se bastar, mas quando tinha liberdade não aproveitou direito e agora se sente tão pressionada que não sabe o que fazer.

- Isso já aconteceu com você?

Quase não consegui segurar o riso.

Você esquece que eu sou homem, né? – e eu desisti do esforço, dando uma boa gargalhada. – Eu entendo. Venho de uma tradicional família de advogados, me formei em Direito, mas meus pais quase tiveram um enfarto quando peguei o diploma, enrolei e entreguei pra eles, a mala nas mãos e um aceno acompanhado de um sonoro "vou viver meu sonho". Minha mãe até hoje pensa que eu moro na sarjeta, nunca se deu o trabalho de ir a um dos meus concertos musicais e raramente liga a não ser no natal e no aniversário. Já estou acostumado. – dei de ombros ao dizer isso.

- Então entende como me sinto. – Ela suspirou, parecendo mais desalentada que nunca. – Me ajuda?

Eu sorri, um misto de saudade da época em que ficávamos todos junto em frente a uma fogueira, quando achava que nada poderia dar errado. Foi quando um cachorrão, uma família mais esquisita que a Família Addams (no mau sentido, literalmente falando) e agora a pandemia de COVID-19 fizeram com que a premissa se provasse totalmente errada.

Então pra que lutar, né?

So let the light guide your way hold every memory

As you go and every road you take will always lead you home

A ceifadora de histórias...

Eu poderia dar a deixa para a outra pessoa que finalmente explicou de forma mais direta a premissa que o pequeno príncipe Thomas levantou mais cedo sobre a maturidade recém-conquistada da mãe (algo de que discordo), mas há uma pequena lembrança na vida de uma das muitas vidas que cercou a existência da futura princesa consorte que, se não ajudou em mais nada, trouxe uma conclusão óbvia para a situação desse músico tão apaixonado, que realmente precisava seguir em frente...

Janeiro de 2017...

HENRY

Eu já estava bem nervoso com a ideia de dar um presente para uma garota especial, e ainda me perguntava se não tinha exagerado querendo impressioná-la logo de cara.

Faltava pouco para estacionar quando vi a casa da artesã que contatei ontem, torcendo para que ela tivesse conseguido o que eu encomendei no curto espaço de dezesseis horas que ela disse que faria. Adentrei a residência, um mordomo todo empertigado na minha frente, torcendo para que a atmosfera intimidadora não me afetasse completamente, até que alcançamos uma sala grande de uma das alas da mansão, onde uma mulher estava soldando uma escultura enorme, as faíscas do maçarico indo para todo lado. Um pigarro a fez deixar a ferramenta suspensa no ar, a chama azul captando minha atenção. A máscara de soldador foi erguida, revelando um rosto de maçã alvo, os olhos cinzentos bem destacados, um piercing na sobrancelha quase imperceptível, um sorriso discreto enquanto a chama do maçarico desaparecia, substituído por uma cadeira que ela puxou para perto da estátua recém-soldada.

- Lady Dashwood, Sr. Hartfield! – o homenzinho se curvou de leve, a porta sendo suavemente fechada logo em seguida. O sorriso se alargou ao ver que eu estava admirando seu trabalho, em muito sobrepujando a beleza a minha frente, os longos cabelos castanho-claro formando um manto delicado que deslizava pelos ombros, costas e colo. Mesmo Hannah, com os cabelos longos de ébano gloriosos contrastando com a pele alva (adoro um contraste!), não conseguiu superar a aparência da mulher que agora vinha em minha direção, uma miniatura coberta por um delicado pano de linho branco que me fez sorrir de uma orelha a outra.

- Espero que essa garota realmente seja especial, porque foram as dezesseis horas mais trabalhosas da minha vida! – o sorriso, no entanto, era de alguém mimando um bebê. – Se ela não gostar do presente, arranco os olhos dela!

A pequena miniatura do simpático robô do filme Wall-E, todo amarelinho, feito de latinhas de refrigerante diet. Quantas latas dessas foram necessárias... não importa, o resultado ficou perfeito! É lindo em vários aspectos. Ela vai adorar!

- Valeu, Daphne, o Wall-E ficou perfeito! – eu não parava de babar naquela pequena miniatura. – Um legítimo Daphne Dashwood! - O sorriso se alargou ainda mais.

- Ela trabalha mesmo no setor aeroespacial? Algo que se pareça com ela não seria melhor? – Daphne deu um sorriso torto com a minha reação.

- Eu sei, algo tipo Apollo 11, não é? – eu sorri, encabulado. – Eu quis ir mais longe e ganhar o coração dela, sendo nenhum pouco óbvio. – ouvi uma risadinha. – ficou lindo. Mandou bem, Daphne.

- E você conseguiu, eu amaria algo assim. - ela sorriu ao me ver ainda babando pela miniatura. Ficou realmente perfeita.

Ela me encarou, séria agora.

- Sei como fica quando está gamado por uma mulher. – ela deu uma risadinha, mas se logo se recuperou. – Só não vá com muita sede ao pote. A Dominika já devia servir de lição suficiente, Henry, as mulheres de hoje não querem compromisso, as que assumem, o fazem apenas por conveniência.

Eu não consegui evitar uma risadinha.

- Tá falando por experiência? – achei que Daphne se ofenderia, (ela nem sempre foi rica, o pai biológico que era) mas apenas deu de ombros.

- Sou rica e com título de nobreza, posso me dar ao luxo, o primeiro casamento já foi aventura de sobra. Gosto da liberdade que tenho agora. – Tia Marsh nem sequer foi citada, né?

- E se ela for diferente? – entendo o que Daphne quer dizer, mas não posso aceitar que as mulheres do mundo, ou só querem se divertir, como a Dominika, ou são mercenárias (e algumas são, infelizmente, quanto mais baixa a classe de origem, pior elas se comportam, nem adianta questionar!). Quero uma esposa, então se eu tiver que usar uma peneira moral, que seja. Só não posso desistir.

- Ela gosta do trabalho que tem? – Daphne sempre ia na jugular, mas não sou eu o sabatinado, então...

- Já gostou mais. – eu acabei rindo dessa. – Mas, de modo geral, sim... – como eu disse, não estou sendo sabatinado...

- Então você entende que uma mulher com tanta liberdade financeira não vai abrir mão disso tão facilmente, a não ser por uma situação que resulte em um futuro muito vantajoso pra ela, não é? Afinal, ela também vai ficar velha com o tempo e a lei da gravidade vale para todas nós, sem exceções.

De repente, comecei a me sentir um pouquinho desconfortável.

- O futuro papai fez algum pedido formal de compromisso? – Daphne tornou, indo direto na jugular outra vez.

Agora, sim, estou sendo sabatinado.

- Sim, fez, ele queria as coisas nos termos dele. – senti um certo desalento ao admitir isso, desejando que a futura mamãe não tivesse sido tão honesta quando nos conhecemos. Esse negócio de "me mostra o seu, que eu te mostro o meu", na prática, traz mais problemas que soluções. A gente sempre tem vergonha do passado, mesmo o mais correto: algumas decisões e escolhas não tão boas, alguns parceiros errados ao longo do percurso, alguns pé na bunda, imerecidos ou não. Enfim, deixar quieto, o passado no passado, costuma funcionar melhor. Contar tudo um para o outro só funciona na ficção (às vezes, nem na ficção; já vi muita novela mexicana, honestidade demais ferra), o ideal mesmo é cada um com suas vergonhas e começar do zero. Fazer de conta que a vida começa no relacionamento.

Daphne deu a última agulhada, o balão de ilusões sendo estourado.

- Pois é, e o cara é rico, bonito, com um posto de honra, isso não quer dizer nada?

Eu ouvia Daphne atentamente, um solavanco pesado de desconforto.

- Antigamente, mesmo não desejando, as mulheres aceitavam os maridos que lhe eram impostos, não por mera obediência, mas por necessidade, por praticidade, era mais fácil obedecer que se rebelar; hoje, somos emancipadas financeiramente, e até certo ponto, desfrutamos de liberdade, desde que esta não ultrapasse o limite do socialmente aceito, a sociedade ainda é muito hipócrita pra admitir nossa emancipação. – ela deu um sorriso torto. – Contudo, quando se trata de relacionamento, ainda somos muito práticas, pensamos muito com o bolso, preferindo um parceiro mais vantajoso a alguém que nos trará mais felicidade na relação. No fim, o que vai pesar é o bolso e a certeza de manter as pessoas devidamente caladas, afinal, manter as aparências ainda tem o mesmo peso e importância.

Outra vez, fiquei desconfortável.

- Henry, nenhuma mulher, por mais honesta que seja, fará alguma escolha que irá prejudicá-la, mesmo que saiba ser o certo. No fim, mulheres só fazem o que é mais conveniente para si mesmas. – ela olhou pra mim, um misto de tristeza e pena. – E não me excluo do processo. – suspirou, admitindo. – Essa mulher pode até gostar de você, pode até sentir alguma atração sexual pelo pai do bebê. Mas se um relacionamento com qualquer um dos dois resultar em restrições à liberdade de que desfruta, vocês dois serão descartados da vida dela rapidinho. No fim, ela só fará o que for conveniente para si própria.

Sabe o mais engraçado de tudo? Três anos depois, Daphne tinha razão.

******

Hoje

Dois dias antes do natal...

KELLY

Um pouco antes das festas de fim de ano chegarem, a Europa ficando mais gelada do que nunca, comprei quase a preço de banana uma casa linda frente para a praia que durante as últimas oito semanas foi reformada pelo nosso empreiteiro favorito, que deixou tudo do jeito que a gente queria, cada detalhe ou cantinho sendo feito do jeito que eu gostaria que fosse, para que pudéssemos desfrutar de tudo. Acompanhar a reforma toda me fez ficar feliz por ele. Apesar de todos os sustos e a quase total falta de esperança dos últimos meses, ele ficou muito contente de se ver diante de outra reforma. Depois de prometer para a esposa que nunca mais mexeria de forma estrutural na casa deles – uma linda casa de fazenda, a propósito – fico satisfeito em dizer que procurei o futuro empreiteiro para propor um investimento no qual faria dele sócio, a criação de uma empresa que faria reformas em outras casas, a família dando a verba para o projeto, nas casas já compradas, ou ainda em processo de compra, sabe, tipo os Irmãos à obra, mas ao estilo Vingadores... Vingadores à obra? Eu sei, a idéia é ridícula.

Eu podia ter aceitado a sociedade, mas preferi dar o dinheiro para ajudar no planejamento e inauguração da empreiteira, vendo o quanto esse projeto ajudou no sentido de ser a luz no final do túnel para ele, e para a família, que teria sustento e futuro acadêmico dos filhos a longo prazo.

Eu ainda estava decidindo sobre as casas que iria visitar com os meus clientes além da reunião por vídeo conferencia que eu teria com ele logo mais, quando recebi uma visita bastante surpreendente da mãe do Thomas; bom, eu senti isso principalmente porque, em geral, sou a última pessoa que ela procuraria pra conversar. Mas ali estava ela, mais pálida do que me lembrava e um tanto afobada, o que pelo jeito me faria perder uma tarde toda. A última vez que isso aconteceu me rendeu uma adega assaltada e muito arrependimento acumulado...

Da minha parte, claro.

- Eh... Kelly, você tá ocupado? – alguém parece que esqueceu o conceito de pergunta retórica. O computador à minha frente com a plataforma Zoom aberta e ativa não significava nada?

Ela ignorou solenemente minhas indiretas e sentou na poltrona à minha frente, a máscara sendo trocada, o intervalo aproveitado para ingerir um pouco de água que pedi para que Selene, minha secretária, trouxesse.

- Pra que lutar, né? – apenas suspirei, mandando uma mensagem, no fim desnecessária, por minha reunião que seria agora precisou ser reagendada. – O que você precisa? Se for uma casa, ou apartamento em Londres e região, estamos meio atolados, apesar das previsões atuais...

- Relaxa, adoro Londres, mas não sei se aguentaria o custo de vida tão alto. – a risadinha não disfarçou o desconforto dela, mas compreendo. Eu mesmo pago uma pequena fortuna pra morar em Hampstead, atualmente, por causa da Polly, quando ingressar no pré-escolar. – além do mais, recebi uma proposta pra trabalhar no CERN, minha orientadora do Pós-doc. me indicou e querem que eu comece em fevereiro. – ela ficou escarlate de vergonha agora, a cadeira onde estava ficando, de repente, desconfortável.

Eu realmente não queria conversar com ela, mas fiquei feliz de um de nós ter sido bastante direto, já me poupa de ter que perguntar o óbvio.

- Já conversaram sobre como vão dividir a guarda do Thomas? Afinal é dele que estamos falando, certo? – e, de novo, a cadeira à minha frente ficou desconfortável.

- Sabe que eu também tenho a Mayse. – tenho certeza que ela sequer pensava nisso, mas...

- E duvido muito que Mayse desperte algum interesse no pai, a não ser aos dezoito ou vinte e um anos, quando já tiver idade para namorar. – sei que o coitado, nesse período, finalmente, vai agir como todo pai de menina: vai sabotar ao máximo os futuros candidatos, vai tentar prender a filha em casa, até ter que aceitar o novamente óbvio: que as filhas têm escolha, independentemente das nossas.

E, como todo pai de menina, vou fingir que essa premissa sequer existe! (pelo menos, enquanto eu puder).

- Valeu, Kelly, pelas minhocas extras, muito obrigada! – bem-feito, ela que quis bater um papinho. – o problema não é esse...

Pronto, lá vamos nós de novo...

- Acontece que, se eu aceitar, digamos que serei, na medida do aceitável, vizinha do Henry, como Briseida muito bem observou ontem à tarde. – ela rosnava ao dizer isso.

Eu disse que a pirralha ia dar com a língua, Henry, eu não disse? (e o cara não ficou nada feliz com a sobrinha quando eu disse isso).

- E daí? – eu não estava nem aí, eles que se resolvessem, já eram grandinhos o bastante, e já estava na hora de Sua Majestade Real aprender com a decepção.

- Você não vê o óbvio? - Eu engasguei com essa redundância, tentando segurar o riso.

Pois é, Majestade, nem sempre terá tudo que quer...

- Isso é motivo de preocupação? – não devo por lenha na fogueira, eu sei, mas não resisto...

- Eu e Henry na mesma cidade? Nos esbarrando de novo, de vez em quando? – e ela fica escarlate de novo.

Sinceramente, tirando todo o preconceito ridículo de Sua Majestade em relação aos genes e habilidades adquiridas quando aprimorados, tanto ele, como Henry seriam excelentes partidos, os genros que – quase – toda mãe sonha, os maridos que todas as mulheres desejam, ambos com pontos fortes e defeitos, faz parte. O problema da mulher sentada aqui a minha frente, no entanto, ficou claro agora.

-E eis que minha melhor amiga desfila toda pecadora pelas ruas da cidade. – dei uma risadinha discreta ao dizer isso. Pois é, não deu pra evitar.

- Ham? – ela me olhou de volta, os olhos azuis arregalados.

- Ah é, às vezes eu esqueço, você não lê Jorge Amado nem por acidente, que dirá de propósito. – eu resmunguei entre dentes, mas ela com certeza ouviu, porque ganhei um olhar bastante confuso como resposta.

Ainda bem que ela não lê pensamentos, ou eu estaria bem ferrado agora... se bem que a crítica, volta e meia, é merecida.

Quando a vi sair do escritório, o sorriso de uma orelha a outra e a respiração indicando um coração mais leve depois da nossa conversa (que acabou ajudando-a aparar as arestas necessárias), me peguei suspirando, a velha e recompensadora sensação de missão cumprida. Uma sensação que acabou horas depois, primeiro nas mãos de Lúcia, que não ficou feliz com meus conselhos (e quando ela fica?); depois nas da própria mãe do Thomas, que entendeu a minha indireta...

A ceifadora de histórias...

Ainda que eu ache que tenha muito mais a dizer, sinto que, especialmente nesse momento, o arco tinha se cumprido. Nossos heróis – todos sem exceção – acabaram por solucionar todos os problemas que enfrentaram, um por vez, e no fim, veio a calmaria, que pode não durar. Uma coisa é certa. Nenhum sofrimento dura para sempre, ele sempre terá um fim. A dor pode ser terrível, quase insuportável, mas até ela tem seu fim. As coisas continuam acabando e mudando, a vida a seguir seu constante curso.

A única coisa que realmente importa é quem fomos e somos, e o legado que deixaremos para trás, todo o resto sendo apenas complemento, não tendo qualquer interferência no futuro.

E é com essa certeza que declaro que esse é o fim da história.

Vamos lá?

Na Véspéra do natal...

LÚCIA

Não, eu definitivamente devia ter usado a frigideira! Stephen King não ofende mais como antes... ou sou eu que estou perdendo o jeito?

O jantar de natal tinha tudo pra ser um desastre, afinal, a sala de jantar é muito pequena (minha mãe protestou veementemente contra a ideia de fazermos o jantar e a troca de presentes na minha casa, mesmo com todos os argumentos a meu favor), mas até que conseguimos nos virar bem, pois todos estavam muito felizes (ou quase todos), e o carpete no chão e a lareira acesa nunca foram mais acolhedores. E todos estavam juntos, é que o que importa, certo?

Não, o jantar foi perfeito, a troca de presente, também. O que veio depois que quase foi ladeira abaixo, mas prometo poupar saliva e ser econômica nos detalhes. Que tal um resumo da situação?

Minha mãe trouxe o peru para a mesa de jantar nove da noite em ponto, como prometido, e, graças as interferências de Henry, Kelly e o novo amigo/empreiteiro, tivemos cadeiras e espaço suficiente para todos, e ainda conseguimos fazer uma mesa para as crianças, na qual Lizzie e Ava conseguiram se virar bem, mantendo o controle dessa turma cada vez mais ouriçada e turbulenta.

Depois do último pedaço de peru estraçalhado, voltamos para a sala, a árvore de natal gigantesca (não estou brincando, ela era enorme!), lotada de presentes nos esperava, minha mãe sendo a primeira a entregar o presente, alguns sorrisos de impaciência pra ela, já que nem todo mundo curtia essa brincadeira de amigo secreto (eu também não, raramente a gente sai satisfeito desse tipo de brincadeira, que só costuma ser engraçada para alguns), a presenteada, ainda que surpresa, ficou muito feliz com o mimo que ajudei minha mãe a escolher. Eu conhecia ou não a Cavalaria? Só que eu fui mais esperta dessa vez, preferi perguntar à quem lhe era mais íntimo o que ela realmente gostaria. Fico feliz de ter acertado, com uma boa dose de ajuda da Lizzie.

E, falando nela...

O Sr. Darcy era o amigo secreto dela, e a bonitinha já havia dado uma pista mais cedo (ela ainda não entendeu o conceito de amigo secreto... vamos deixar quieto, né?). Ele ficou felicíssimo com o presente de Lizzie, que lhe deu um exemplar muito elegante de O nome da rosa. Ó inveja... Mas não a ponto de querer ser escolhida (me erra, Sr. Darcy, me erra, por favor!).

Só uma dica: cuidado com o que deseja.

Todos trocaram de presente até que chegou minha vez de receber, o que me deixou bastante temerosa, pois eu não sabia quem seria meu amigo secreto (tive muita experiência com dardos envenenados, o receio era justificado), então torci muito para ser alguém que me conhecesse. O namorado da Lizzie, sorteado pelo Sr. Darcy, acabou sendo uma surpresa muito boa. Claro que teve um dedinho da própria, então...

- Por mais incrível que pareça, temos escritores no espaço, e essa coletânea de contos e poemas pode te agradar. – a capa de couro não parecia muito promissora (a origem dela parecia muito tribal pra mim), mas ao verem o título quando mostrei a folha de rosto, muitas pessoas presentes sorriam em aprovação.

- Os amantes de Asgard! – um dos presentes sorriu, feliz. – Nossa poesia é muito romântica e extremamente cavalheiresca, você vai gostar, Lúcia.

Eu sorri com essa. Peter se preocupou com o que eu gostaria e minha irmã o ajudou na escolha (ela piscou mais atrás).

Quando foi a minha vez de dar o presente, eu sabia que tinha uma missão hercúlea pela frente. Henry era meu amigo de quase sempre; Kelly era meu amigo de infância, marido e confidente. Teria sido muito fácil presentear qualquer um dos dois. Agora, o que fazer quando seu amigo secreto é alguém que você admira muito, porém mal conhece?

Sua majestade Real é, em vários aspectos, muito diferente do Sr. Darcy, ele é um homem muito encantador, gentil e, mesmo respeitando as tradições, rompeu com algumas delas por perceber que os tempos são outros, que, para governar, era preciso ter a mente aberta. Ele é um cara bem progressista em relação às mulheres, o que fez com que eu o admirasse muito e, graças à irmã dele, consegui algo de que certamente iria gostar.

- Meu pai não era exatamente amante dos livros, confesso, mas esse em especial ele gostava muito. – ele sorriu, satisfeito. Fiquei preocupada de ele não ter gostado, mas a reação me deixou muito feliz. – Obrigado, e fico satisfeito que nossas tradições a tenham encantado.

Eu corei com essa.

Depois de todos os presentes trocados, ajudei minha mãe a levar todas as louças para a cozinha e limpar a sala de jantar, mas não pude deixar de observar a conversa que veio a seguir, as paredes muito finas e a casa em si muito diminuta para bloquear a conversa, mesmo em meio à balbúrdia:

- Vejo que não ficou muito feliz com o presente. – Henry era muito delicado, do tipo que se preocupa com as mulheres, mas também precisava aprender a saber o que não dizer. Tipo agora, por exemplo.

Mas fiquei surpresa com o que veio depois, confesso.

- Minha tia foi feliz na carreira que escolheu, mesmo em um contexto em que o sucesso de uma mulher era muito mal visto. O exemplo dela me fez seguir seus passos. – uma das convidadas olhou com carinho para um exemplar de O conto de duas cidades enquanto falava. – Mas tive a chance de vê-la ser feliz no casamento e crescer com um tio maravilhoso... e esse era o livro favorito dele.

- Ele gostava de Dickens? – entendo o preconceito do Henry em relação a ele, Oliver Twist também não era um dos meus prediletos.

- A história parece um pouco com o meu tio, as duas vidas que teve, antes e depois do matrimônio... como dois homens diferentes em um só.

Eu só vim entender isso muito tempo depois, quando conheci melhor esse distinto senhor, que acabou se tornando parente do Henry. Ah, é, esqueci. Essa conversa na sala de jantar rendeu muito. Setenta e cinco anos de casamento, pelo menos. Estou bastante feliz pelo Henry. Enfim, mesmo depois de muito peneirar, ele encontrou o par perfeito, alguém com uma agenda quase tão apertada quanto a dele, mas que construiu com ele um relacionamento maravilhoso, e ainda conseguiu lidar com as grosserias da Briseida com muita elegância, tornando-a uma moça encantadora, que também seguiu os passos da tia anos depois. Meio clichê, né?

A única coisa que gostaria muito de não ter precisado ouvir foi a conversa (ou monólogo?) entre os pais de Thomas. Sei que desconsidero bastante a pobre Mayse, tão doce brincando com a Polly, mas até ter idade para namorar, a garotinha vai ser solenemente ignorada pelo pai (ou isso pode ser uma benção disfarçada. Ele está tão focado no filho, seu possível futuro herdeiro, que ela terá muita liberdade para fazer as próprias escolhas. Só o tempo dirá se estou certa).

Os dois estavam bem desconfortáveis, já que ela decidiu aceitar a oferta da orientadora de ir para a Suíça (ela quer as próprias melhoras na carreira, o que tem de mais?), e a decisão sendo engolida com muito esforço, algo que me deixou surpresa, afinal, ele é machista demais e mais de uma vez havia sinalizado que um relacionamento significaria cuidar da casa e dos filhos. A Sra. Darcy nunca fez isso, até onde soube, por que essa mulher faria? Só quis deixar registrado o parecer final desse monólogo, porque foi um monólogo pra mim...

- Eu te amo, sabe disso, não é? – como eu disse, monólogo... – E eu sempre desejei uma família, não por outros motivos, mas por ser capaz de cuidar bem de outras pessoas. – Sua Baixeza Real a brindou com um sorriso irônico. – mas isso não devia me impedir de ter uma carreira.

O olhar magoado dele a fez recuar um pouco, mas se manteve firme, as outras mulheres da família dele só observando. As amigas dela, Sara e Julieta, também estacaram, um pouco nervosas, mas todos nós sabíamos que essa conversa era necessária. Os dois precisavam aceitar um ao outro, exatamente como são.

Ele voltou os olhos para a noiva, escolhendo com cuidado as "palavras".

"Sabe que desejo que progrida, nunca fiz pouco caso do seu talento (Fez, sim!), só me preocupo com o quanto isso pode nos afastar... afinal, você era muito diferente quando a conheci, e agora é uma mulher independente demais...".

Bingo!

- Você percebe o que diz? – ela sorriu, carinhosa, uma das mãos em seu rosto. – Eu quero uma carreira e, ainda assim, serei sua esposa e uma boa mãe. Sempre achei que isso fosse possível, afinal tenho Hannah e Lúcia como bons exemplos. – uma risadinha veio em seguida.

Eu engasguei com essa, vários acessos de tosse, mas minha mãe sorriu muito satisfeita e Lizzie não parava de rir. O sorriso do Sr. Darcy, no entanto, foi genuíno, e arrisco dizer que era porque a noiva dele estava mesmo certa. Minha mãe soube mesmo equilibrar bem a carreira docente com a maternidade ao criar duas filhas adolescentes, sendo viúva e todo mundo torcendo pelo contrário.

- Isso significa que você não tem com o que se preocupar, entendeu? – ela tornou, selando a frase com um beijo, que decididamente o calou. Eles acabaram se entendendo depois dessa e de um jeito que nem a Sra. Darcy esperava (ela também torcia pelo contrário...).

E no fim, a cereja do bolo. Antes de todos se recolherem dei meu dardo envenenado de presente, It, a coisa causando bastante surpresa, a intenção por trás dele sendo lentamente entendida. Para minha surpresa, no entanto, ele acabou bastante satisfeito com o presente, o que acalmou os ânimos e a palidez de alguns, especialmente quem me acompanhou na compra desse dardo. Isso me fez pensar por um momento se eu tinha perdido o jeito, mas era natal, eu pensei, que tal deixar quieto, eu pensei. Por ora, o recado estava dado e ele, enfim, entenderia que me devia desculpas por aquele livro enfiado na minha cara.

Como eu disse mais cedo, cuidado com o que deseja. A resposta veio, alguns meses depois. E não foi bem como eu esperava.

*******

Nova York, seis semanas após o natal.

Depois de uma tarde muito tranquila no centro da cidade, um casal bastante extrovertido decidiu que era hora de uma bebida refrescante e um pouco de sombra para aplacar o calor quase insuportável da metrópole, incomum para aquela época do ano. Os dois se aventuraram por dois grandes portões bem trabalhados que encheram os olhos da jovem, que não parava de sorrir. E esse deslumbramento teria continuado se, ao se verem em um grandioso vestíbulo, um homem corpulento não os tivesse recebido, entre irritado e muito feliz por ver que o amigo estava bem acompanhado, provocando muitos rubores inconvenientes no rosto deste, que faziam a jovem rir de tempos em tempos. Os dois se dirigiam ao topo da escada quando ela estacou, ainda embasbacada com tudo.

- Minha nossa, isso aqui parece um museu. – os olhos da jovem brilhavam conforme alcançava outras áreas do prédio. – É perfeito!

- Todos os artefatos mágicos que temos aqui são muito raros e preciosos, Srta. Diaz. – o outro sorriu, empertigado. – Seus olhos são os primeiros a vê-los em muito tempo.

- Estou muito honrada, então. Obrigada pela oportunidade, Stephen. – a mulher se curvou, respeitosa. O acompanhante dela corou ainda mais, algo muito incomum, ainda mais depois de tudo que ele passou nos últimos anos.

Após um tour que arrancou vários suspiros e promessas de não tirar foto alguma para as amigas (uma promessa infelizmente não cumprida, já que a opção do flash foi propositadamente desligada), Sara não parava de sorrir, encantada com todas as preciosidades daquele santuário. Ela e o curador conversavam muito entretidos e talvez o anfitrião daquele passeio participasse com mais empenho daquela conversa, caso algo não tivesse tirado sua atenção, os olhos voltados para alguém mais a esquerda, um redemoinho que tornava a figura totalmente invisível para os outros dois interlocutores. A surpresa só não foi maior que o sorriso de boas-vindas no rosto e os braços estendidos na direção da mulher, que agora retribuía a atitude calorosa, um olhar sombrio que o sorriso de orgulho não conseguiu ocultar. Ela o admirou, os olhos esquadrinhando o homem magro, as mãos que ele tanto buscava que voltassem àquilo que um dia já foram, agora o lembrando do que deveria ser daqui pra frente. Foi quando seu sorriso murchou outra vez.

- Pensei que só a veria de novo, quando... bom, você sabe...

- Fico feliz de poder vê-lo mais uma vez. – ela sorria, tristonha. – Sempre soube que você seria o melhor de nós... – E nesse momento ela olhou na direção de Sara Diaz. Um sorriso cúmplice se alargou em seu rosto. O olhar dele acompanhou a mesma direção, as faces ficando escarlate outra vez.

- Eu posso explicar isso, anciã...

- Tudo bem, somos feitos de carne, merecemos um momento feliz na vida, e você está tendo o seu. – uma mão pousou suavemente na barba por fazer. – Melhor que seja ela. Essa moça é mais forte do que realmente aparenta. Foi uma boa escolha.

A constituição frágil poderia enganar um expectador menos atento, mas ali, naquele momento, estava uma mulher muito sábia, que aprendera muito, um grande poder acumulado de todo esse aprendizado.

- O que houve? Você não estaria aqui se... Onde esteve esse tempo todo?

- Escute, não tenho muito tempo. – ela instou, sentindo o tempo se voltar contra ela. – Vocês estão prestes a enfrentar algo jamais visto antes. Seu inimigo agora é pior do que imaginam. E vocês talvez não consigam...

- Como assim? Acabamos de sair de uma verdadeira guerra... E vem outra a caminho?...

- Meu caro, você aprendeu tanto, mas ainda não enxerga o óbvio. – uma única lágrima rolava em uma das faces da recém-chegada.

- Anciã?

Ela suspirou, o olhar mais sombrio que nunca.

- Vocês não terão a mínima chance. Milhões vão morrer e vocês não podem fazer nada.

- Sempre há uma chance! – quando o anfitrião finalmente se deu conta da mensagem, ele tentou achar meios de planejar uma possível investida, o passeio com Sara podendo ficar para depois. Ela entenderia...

A mulher a frente dele acompanhou sua linha de pensamento, outra lágrima triste riscando o rosto pálido.

- Não adianta... Tudo que foi possível fazer, já foi feito... Tudo que podem fazer... É aproveitar o que lhes resta.

Os olhos do homem se arregalaram, conforme o teor das palavras se instalava, a realidade dura finalmente sendo compreendida.

- Ainda... há algo a ser feito?

O olhar dela trouxe mais conforto do que suas palavras ao dar a má notícia.

- Aproveite pra ser feliz... Pelo tempo que puder. – e, para sua surpresa, a mulher o abraçou, um sorriso que mostrou porque ele a admirava, mesmo quando a questionara. – Ajude onde for possível, faça o seu melhor, mas não espere o melhor...

Ele entendeu. Com o coração pesado, ele retribuiu o abraço, sabendo que provavelmente não se veriam outra vez e após isso, ele se afastou, o redemoinho ficando mais forte, não antes de um sorriso aparecer no rosto da figura frágil.

- Eu gostei dela... – ela revirou os olhos para o grande salão, o rosto do anfitrião ficando escarlate outra vez. – O passeio por esse santuário até vale a pena.

Ele sorriu, um olhar de dor ao ver a figura desaparecer por completo, o olhar não passando despercebido pelo amigo, que ainda falava com Sara. Ela também percebeu que algo havia mudado, mas o olhar dele fez com que a moça não tecesse comentários. O silêncio pesado que se instalou depois disso foi quebrado de uma forma que fez Sara e o amigo se espantarem.

- Já que o passeio acabou, talvez você possa levar a coelhinha de fevereiro para dar uma voltinha pelo Multiverso.

Sara corou, dando uma risadinha. O anfitrião tossiu, uma sensação incômoda de desconforto enquanto o outro subia as escadas assobiando, contente com ambas as visitas.

- Espera, como ele sabe pra qual revista eu posei?

O outro tossiu novamente.

- Em uma frase? – ele sorriu. - Mea culpa.
- Entendi. – Sara riu outra vez, mais a vontade agora. Ela voltou a sorrir ao ver um arco girando à frente, pequenas faíscas se espalhando pelos lados. – Que tal um chá da tarde em Londres?

- Eu ia sugerir um passeio pelo Louvre e depois, quem sabe, um café sobre o céu noturno de Paris.

Sara ria com prazer ao ouvir as opções, algo fazendo com que o encarasse de volta, um olhar travesso que o fez sorrir com ternura.

- Algo mais ousado. Tóquio, talvez.

- Oui, mademoiselle! – ele sorriu ao conduzir a jovem pelo arco, uma chuva fina e gélida recebendo os dois enamorados.

It's been a long day without you my friend

And I'll tell you all about it when I see you again

We've come a long way from where we began

Oh I'll tell you all about it when I see you again

When I see you again

Um ano e meio depois...

Brighton, Inglaterra.

A expectativa era de um dia como aquele não se repetir tão cedo, o mesmo sendo simplesmente perfeito. Ou melhor, teria sido perfeito, não fosse a correspondência, o intragável e infeliz post-scriptum a acabar com a diversão.

Depois de uma semana inteirinha enfurnados no espaço fechado e quase claustrofóbico da corretora imobiliária, Kelly, Lúcia e a pequena Polly decidiram – melhor, Lúcia decidiu pelos três – que estava mais do que na hora de desfrutar de férias em família. E lá estava a diminuta família, além de Lizzie, que queria uma merecida folga antes de ficar enterrada até o pescoço com os preparativos para a solenidade de formatura na faculdade, e Henry que tirou uma folga antes do circuito de concertos musicais, passando um tempo mais que merecido com Briseida, todos passando o verão na praia, desfrutando da nova casa dos amigos, a água do mar deliciosa enquanto Polly gargalhava sentindo a arrebentação fria nos pezinhos fofos, ela querendo correr na areia.

Sentados na areia fofa da praia, já cansados de correr atrás da bebê, deixando a missão para Henry e Lizzie, o casal relaxava, Kelly, o olhar dividido, como quem decidia se queria ou não puxar assunto, encarava a esposa, a cabeça baixa. Lúcia o conhecia bem demais para esperar alguma notícia boa dessa postura, por isso percebeu-se mastigando a língua, já aborrecida. Ele hesitou um pouco, mas acabou desistindo ao ver o costumeiro olhar irritado.

- Desculpa, amor, eu ia deixar pra você ver essa carta só depois da nossa viagem de férias...

- Kelly!

Eu não precisava disso, pensava ela, que já tinha muita experiência com as farpas do Sr. Darcy e devia ter aprendido com elas, mas não, né?

Kelly acabou estendendo a "carta", uma placa de vidro que, por um breve instante, Lúcia desejou ter arremessado para bem longe. A jovem ainda ponderava os prós e contras ao encarar a carta enviada pelo Sr. Darcy; podia poupar-se do aborrecimento, pensava, ganhar menos rugas, mas pra que adiar? Depois de alguns segundos de reflexão, a jovem viu-se sentando mais confortavelmente na toalha de mesa que fora estendida na areia, equilibrando aquela placa no colo que, ironicamente, estava leve feito pluma, o que não a surpreendia, a massa encefálica que ocupa o cabeção daquele imbecil sendo um total contraste com a fama que o precede. O pensamento arrancou-lhe um ataque de riso.

Kelly ainda suspirou um pouco, mas não tentou impedir Lúcia de ler, já lamentando ter mostrado a missiva antes do desejado.

Cara Srta. Fairchild,

Sei que agora é uma dama, uma senhora casada e respeitável – claro que não como sua mãe, infelizmente – mas velhos hábitos nunca mudam, então vamos nos ater ao que já conhecemos, assim estamos em pé de igualdade, certo?

Ao contrário do que sua mente deturpada e povoada de minhocas possa pensar, torço para que esta carta a encontre com saúde, pelo bem de meu irmão postiço e minha amada sobrinha. Apesar do seu péssimo gênio, eles realmente sentiriam muito sua falta. Apesar, também, de todas as farpas trocadas até aqui – a última engolida com muita dificuldade, mas perdoada, em consideração à sua mãe, que, como dito antes, é uma grande dama, o que me faz pensar muito antes de responder à altura a qualquer agressão sua – creio ter conquistado ao menos sua confiança e amizade. Fui longe demais? Mil perdões, minha senhora, sou chefe de estado, antes de ser um homem.

Gostaria, enfim, de agradecer, não só por aquela bandejada que você desferiu no meu rosto (acredita nisso? Eu agradecendo por ter sido agredido, mas é isso mesmo). Você não só me permitiu a chance de recuperar minha família, que eu podia ter perdido para sempre, mas possibilitou que ela aumentasse; nunca fui tão feliz na vida, e não sei por onde começar a agradecer. Saiba que, ainda que não fosse sua intenção, graças a você e seus coices, pude garantir meu Felizes para sempre. Não sou ingênuo, sei que nada dura para sempre, nem mesmo a calmaria, mas saiba que farei tudo para que isso dure. Então... Meus dentes rangem com isso e meus dedos o escrevem com muita dificuldade, mas... Muito obrigado, Lúcia. Por tudo.

Espero que possam nos visitar um dia, em um contexto mais amigável, em que um confinamento não seja necessário. Minha família e eu teremos muito prazer em recebê-los.

Atenciosamente,

Apesar da cordialidade, a jovem soltou um profundo suspiro. A carta em si era suficiente, não havia mais nada a dizer, então... por que nunca obedecia seu instinto?

P.S: Enviei um presentinho junto com a carta, uma pequena lembrança de todas as nossas aventuras! Mas não se preocupe, está bem? Todo e qualquer sentimentalismo à parte será apenas efeito colateral!

Tremendo dos pés a cabeça, Kelly estendeu um embrulho pardo, cuidadosamente amarrado com cordões e fita adesiva. Mantendo a calma a muito custo, Lúcia pegou o embrulho e começou a rasgá-lo, a filha imune a isso, brincando de fazer castelinhos de areia junto com Briseida. Ao terminar de abrir o pacote, um exemplar novo de Lembra de mim?, de Sophie Kinsela fez a jovem mãe ferver de fúria. Pegando novamente a carta, leu novamente o Post-scriptum, que não foi repetido em voz alta, o restante dele indigno dos ouvidinhos da pequena Polly; contudo a vontade enorme de matar o autor da missiva deixou o rosto de Lúcia rubro de ódio.

- Kelly, eu te amo, você sabe disso, não é? – ele recuou apavorado quando ouviu isso. – Mas agora eu preciso muito de um advogado! Porque eu vou...

- Calma, amor, calma...

- Calma! CALMA! – os berros a plenos pulmões alcançavam o outro lado da praia, a voz só perdendo para a do imbecil, autor dessa missiva atroz. – ELE ME OFENDE E XINGA O TEMPO TODO E AINDA VAI DEFENDER, É?

Igualmente imunes a essa explosão de fúria, Lizzie e Henry, o bronzeado magnífico deixando a pele dourada pelo sol, vinham das ondas, ambos se jogando pesadamente na areia, a pequenina rindo da demonstração falsa de cansaço do rapaz.

- Pronto, aproveitei a praia. Por hoje, chega. – Henry fez uma careta que arrancou mais risos de Polly.

Voltando-se para os amigos, Ele sorriu, recuando logo em seguida ao ver a retribuição, um olhar malévolo de Lúcia.

- Cadê a patroa, Henry? Ela não gosta de praia? – uma das mais novas adições à gangue, Peter, o namorado de Lizzie, sorria, organizando algumas coisas da cesta de vime que trouxera. Todos se preparavam para um lanche rápido, a prancha de Henry fixada na areia perto do grupo já acomodado na toalha xadrez.

O rapaz corou de imediato, as maçãs do rosto quase em chamas. Ele ainda não havia se acostumado com a aliança de ouro que trazia na mão esquerda. Briseida, quase empoleirada no ombro de Lizzie, acabou respondendo a pergunta.

- Não sei se ela gosta de qualquer coisa que tenha a ver com areia ou sol, mas quando o tio Henry disse que ele vinha hoje passar o dia com a tia Lúcia e o tio Kelly, ela simplesmente disse "bom, então fica para a próxima". – a garota deu uma risadinha em seguida. – quando insisti na pergunta, ela só soltou um "não faço parte da turma, ir junto seria forçar a barra, né?".

O rapaz acabou rindo da menina, o rubor do tio ainda maior devido o constrangimento. Lizzie encarou Henry por alguns segundos, risonha, até notar a placa transparente na mão da irmã. Lúcia, ao perceber o olhar para a "missiva", estendeu-a, torcendo para que a jovem a lesse para si mesma, a humilhação da primeira leitura já sendo o suficiente para um dia só.

No alto de seus vinte e dois anos, a jovem conseguia, só de olhar, perceber as emoções dos outros, a afinidade com Lúcia ainda maior agora que também era adulta; além disso, o bom senso de Lizzie ajudou mais de uma pessoa ao longo dos cinco anos que se passaram, a garota aprendendo muito com as experiências que viveu, tanto sozinha, como em família. O olhar suave que lançou para a irmã fez com que a raiva desta se suavizasse um pouco. Henry, Kelly e o namorado de Lizzie acabaram sorrindo, também, a atmosfera ficando muito melhor, para eles e as crianças, ainda que estas quase nada fossem afetadas pela leitura da "carta".

- Lembram a primeira vez que Lizzie veio com a gente? – Kelly sorriu. – Nossa primeira vinda à praia juntos.

- Ah, eu lembro, sim. – Lúcia apesar da irritação, acabou rindo. – Minha mãe me disse para levá-la comigo, e ela, por baixo dos panos, ainda falou, "se eu não for com você, conto do Kelly para a mamãe!" - a jovem deu um risinho depois dessa.

- Não foi tão ruim, foi? A gente acabou se divertindo muito. – Lizzie também riu ao lembrar do desconforto que foi viajar no jipe de Kelly para a praia, o vento quase arrancando o cabelo das garotas.

- E a gangue foi oficialmente consolidada com a adição de Lizzie como novo membro! – o sorriso da garota ficou ainda mais largo à menção do próprio nome.

Henry levantou um copo de plástico, cheio de refrigerante, os outros se juntando a ele em seguida.

- Aos amigos! Que eles sejam mais próximos que irmãos e, quer na felicidade, ou na tormenta, possamos sempre contar uns com os outros, haja o que houver, - ele sorriu, a voz levemente embargada. – Sejam os do jardim de infância e das fraldas, - Kelly e Lúcia se entreolharam, sorrindo. – ou novos, - Peter sorriu, o olhar levemente envergonhado, ainda não se sentindo à vontade com o grupo. – que a amizade seja o mais forte dos laços, mais importante que família ou outra coisa que o valha. A amizade nos uniu na juventude, que ela nos mantenha juntos até o fim. Aos amigos!

- Aos amigos! – todos repetiram juntos, a risada tomando conta do grupo. Kelly, com uma pompa que em nada combinava com ele, acabou levantando o copo descartável, a expressão fazendo todos os demais tentarem, sem sucesso, segurar o riso.

- A amizade antes do sangue! – a fala fez todos caírem na gargalhada outra vez, outras pessoas próximas constrangidas ao ver a reação dos jovens.

- Que é isso, gente, batizaram o refri, foi? – tornou Henry, aos risos.

Lizzie encarou o líquido claro sabor limão quando Kelly voltou a rir.

- Com certeza, foi isso, batizaram o refri! – e a garota também caiu na risada.

- Tem alguma coisa errada nessa frase! – retrucou Lúcia, ainda sacudindo-se de rir. – Não me lembro de ser dia da escolha hoje!

- Nossa, já foi expulsa da facção logo no primeiro dia! – Lizzie se dobrava de rir.

- É, cara, batizaram mesmo o refrigerante. – e Henry voltou a rir mais.

Um senhor idoso que observava de longe sorriu ao ver os jovens aos risos, as menininhas também, mesmo não entendendo do que se tratava. O riso coletivo o fez ter saudades de quando também era jovem e se juntava com os amigos, ia para a lanchonete, o cabelo da namorada voando no carro, a poeira da estrada fazendo a pele parecer áspera no fim do dia. Bons tempos aqueles...

- Tá legal! – o namorado de Lizzie abriu uma caixa de pizza, um saquinho rasgado no dente sendo passado para cada um começando por Lúcia, que o encarou, um olhar torto.

- Pra que isso?

- Entra na onda, vai! – Henry começou a rir da amiga. A moça ainda olhava torto até que entendeu a brincadeira, deixando cair uma gota vermelha no fundo da embalagem.

- Franqueza! – Peter berrou, todos começando a fazer bagunça, Briseida e Polly gritando juntas um coro de "eu quero, eu quero! Deixa eu fazer também!"

- Por quê? – Lúcia ria.

- Tua língua enorme não quer dizer nada, não, garota? – Henry também ria, passando o saquinho de Ketchup para a sobrinha.

- Ei, rapaz, me respeita, eu tenho família agora!

- Nossa, falou a Dona Maturidade! Vamos obedecer aí, gente!

E o dia que prometia ser muito animado e feliz termina assim: aquele alegre grupo passou o dia na praia com as crianças, Lúcia ainda brava até os ossos, já planejando a próxima farpa e Kelly rindo a valer, porque ele era feliz por conquistar o que queria, e era grato por tudo que tinha. No fim do dia, todos eles se divertiram, ficando bronzeados e felizes, e o cartão de memória dos respectivos celulares cheio de boas lembranças.

Fim.

Nota: A composição do atual texto foi possível por meio da leitura dos livros Emma, de Jane Austen, 1984, de George Orwell, e Um conto de duas cidades, de Charles Dickens.

Observações:

[1] A música aqui será usada na íntegra, sem alterações.

[2] Referência à Mantis, membro dos Guardiões da Galáxia.

[3] Referência a Vingadores: guerra infinita (2018).

Outras músicas que ajudaram a compor o tom da história:

https://youtu.be/KFbSQEjYAag

https://youtu.be/tIA_vrBDC1g


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