Ilha, 1123 - Prólogo
Nenhum guarda esperava à porta de Raoul. Diante de tamanho poder, qual a necessidade, afinal? Quem ousaria entrar? Gaetana bateu à porta. Não houve resposta. O que estou fazendo?, pensou. Sua respiração comprimia seu peito, rápida e pesada. Deu um passo para trás. Sentia aquela euforia de quem acaba de descobrir algo, mas, ao mesmo tempo, estava lá a insegurança de uma novata. Ele já deve saber... Hesitante, virou de costas e estava prestes a ir embora, quando ouviu uma voz rouca ainda de dentro do quarto:
- Não vai entrar?
Raoul abriu a porta e Gaetana precisou olhar para cima para encarar seus olhos cansados, cercados pelas recentes rugas em sua pele negra. Em apenas um dia, ele parecia ter envelhecido dez anos. Fez um gesto para que ela entrasse. Já estava com sua roupa de dormir, uma veste longa e simples, acompanhada de um roupão. Gaetana se sentiu constrangida ao vê-lo em um momento tão íntimo. Lembrou-se de que era somente uma iniciante, uma qualquer. Ele, o Qayid, o líder e o homem mais poderoso da Ilha.
Apreensiva, deu seus primeiros passos nos aposentos pessoais do Qayid. Como a maioria dos cômodos da Ilha, as paredes eram brancas e combinavam com as cortinas claras e o chão de madeira lustrosa e aconchegante. Apesar da sala para reuniões ser bem próxima, ali também havia uma pesada mesa de mogno cercada de cadeiras para convidados. Perguntou-se quem seria importante o bastante para ser recebido ali. Uma porta dupla de madeira escura e entalhada levava para o quarto. Ela estava entreaberta e Gaetana pôde ver uma grande cama de dossel com lençóis desarrumados, antigos livros na estante e dezenas de documentos espalhados por uma segunda mesa, menor e bagunçada. Com um movimento rápido, Raoul fechou a porta do quarto e caminhou até a varanda. Ela o seguiu.
Da sacada, se teria a bela vista da Ilha à noite, porém era a época da lua negra e nada se via. O mar chegava suavemente à areia e o som do vai e vem das ondas dava a impressão de que se vivia um momento de paz. Ele se sentou em uma poltrona branca e confortável e ela fez o mesmo.
- Me espanta a sua visita a essa hora - disse ele. - Tivemos um dia agitado. Fiz longas reuniões. Em nenhum momento veio falar comigo.
O que dizer? Como justificar as minhas ações?, pensou Gaetana. Devo admitir que tive medo? Que não sabia se estava certa? Como pude ser tão negligente?, questionou-se. Passou as mãos suadas pelas pregas da saia, tentando se acalmar.
- Garota, sou um homem curioso. Senti que se não lhe chamasse logo, desistiria do que veio me contar. Você já fez a parte mais difícil, sabia? Bater à minha porta a essa hora da madrugada, ainda mais depois de um dia como esse, sinceramente... – Raoul soltou um riso abrupto e esfregou as têmporas. Ela o observara à distância durante todo o dia, distribuindo ordens, o semblante grave, a voz retumbante, a postura ereta. Mas agora, à sua frente, estava um homem curvado sobre os joelhos, os dedos compridos sustentando a testa. Ele ria de alguma piada secreta, algo que ela não entendia, ou poderia ser só a exaustão. Mesmo assim, o sorriso inesperado a encorajou.
- Qayid... Precisava falar sobre a menina – anunciou.
Ele suspirou e Gaetana achou, por um momento, que seus lábios cheios estavam trêmulos. Todos na Ilha sabiam o quanto Merab havia sido a favorita de Raoul e, principalmente, como ele tentara proteger a menina. Sem aviso, ele se levantou e foi até um grande bar de mármore branco. Enquanto se servia de uma dose de malte cor de fogo, perguntou:
- O que tem a menina?
- Eu a vi em um sonho.
Com o indicador e o polegar da mão esquerda, Raoul apertou os olhos com força, enquanto sua mão direita levantava o copo cheio. Mesmo de longe, Gaetana pôde sentir a intensidade de seu pesar. Percebendo que havia causado a impressão errada, apressou-se em dizer:
- Acho... Ela está viva.
Raoul se virou para encará-la, sua longa trança balançando com o movimento brusco.
- Por que diz isso, garota?
- Ela falou comigo. Em um sonho.
- Você sonhou com a menina?
- Sim, mas não foi um sonho apenas...
- Descreva o que viu – ordenou Raoul e seu tom era sério e firme. Não havia mais indício de tremor em suas maneiras e ele se sentou à sua frente, o copo ainda cheio entre os dedos.
- Eu senti a presença dela no meu sonho. O meu sonho foi como... Como uma intervenção. Ela queria se comunicar comigo. Sei que parece bobagem, eu nem sei por que acreditei nisso...
De repente, se sentiu tola por estar ali. Por que a menina falaria logo com ela? O que estava pensando? Acordar Raoul a essa hora para falar de um sonho! Só poderia estar louca!
- Continue.
A ordem a pegou de surpresa. Tentou reformular os pensamentos, respirou fundo e começou novamente.
- Eu estava dormindo na hora do ataque. No mesmo momento em que acontecia, eu sonhei com o incêndio. Vi os homens entrando pelos jardins, os guardas tentando conter o fogo e sendo esfaqueados. Vi quando os assassinos entraram no quarto do Raj. Vi quando eles o levaram até Ür... Eles desceram pelas escadas e chegaram a um corredor escuro, e depois havia uma gruta. Uma caverna.
- Continue.
- O Kral Ür mandou que todos se afastassem. Dentro dessa caverna, eles entraram na beira de um lago, estava bem escuro, mas estou certa de que vi um lago. Era raso, como uma poça, mas depois da água, havia um enorme portal, parecia de ferro... Era todo marcado por milhares de inscrições minúsculas e rebuscadas... Ür mandou que seus homens abrissem o portal imediatamente. Isso durou algum tempo. Eles empurraram, tentaram com enormes vigas de madeira e até usaram cordas, mas, enfim, todas suas tentativas foram em vão. O Raj Maël não disse uma palavra. Por mais que Ür o questionasse, ele se recusava a abrir o portal e estava cada vez mais fraco por causa dos seus ferimentos. Além disso, estava amarrado e vendado... Os oficiais trouxeram um sacerdote do Raj... O homem estava terrivelmente machucado... Ele resistiu, mas por fim disse que apenas a realeza palaciana poderia abrir o portal. Ür informou que ele era o novo raj palaciano e perguntou como o Raj Maël fazia para abrir o portal. O sacerdote... Bem, ele cuspiu na cara de Ür. E depois berrou que nenhum raj palaciano jamais abriria o portal. Eles viviam apenas para guardá-lo.
Gaetana parou por um instante. Seus pensamentos estavam confusos. Afinal, um sonho era um sonho. Como se lembrar de cada detalhe?
- Qayid, essas são as imagens que vi em meu sonho... Mas tive a impressão de que, se esse portal realmente existe, os palacianos nunca o abriram, nem mesmo sabiam o que havia atrás dele... É possível?
Raoul a encarou pensativo. Depois, desviou o olhar para a escuridão da Ilha. Gaetana observou suas feições sérias enquanto seus olhos negros vagavam de um lado para o outro, como se houvesse algo mais a ser visto além do breu. Sentindo-se boba, procurou o que quer que fosse no horizonte. Por fim, ele respondeu:
- Os Maël sempre foram muito reservados sobre o portal... Era um segredo dos palacianos, mas nunca imaginei que poderiam não saber o que significava.... É difícil acreditar. Mas, sim, é possível. Conte-me o resto.
- Sim, Qayid. O sacerdote disse que, segundo a lenda, apenas os descendentes da realeza poderiam abri-lo. Apesar de não saberem como ou em qual ocasião, apenas os palacianos descendentes da linhagem real poderiam abrir o portal.
- E, por isso, Ür poupou a vida da rani. Já sabemos o que fez ao Raj – concluiu Raoul, seu olhar novamente perdido no mar. Passou os dedos finos pela testa. - Por que sente que não foi apenas um sonho?
A pergunta a deixou confusa. Não sabia explicar.
- Não costumo guardar os sonhos com tanta clareza... – De repente, se lembrou que dominá-los era uma importante arte na Ilha. Constrangida, tentou se justificar: - Sei que é um grande dom, senhor, mas como aprendiz é algo que preciso trabalhar ainda...
Raoul fez um sinal com a mão para que continuasse.
- Senti que não era meu sonho. Era como se alguém estivesse colocando aquilo para que eu visse. Como uma história em um livro. Quando acordei, pensei que era um sonho estranho. Tão vivo... Quando soube do ataque, fiquei horrorizada. Era tudo que eu já sabia. Mas, no sonho, era diferente, porque era como se eu fosse a menina. Era como se eu estivesse assistindo. Sei que isso seria impossível. Ela não poderia ter visto todos esses acontecimentos, o fogo no jardim, o assassinato dos pais, sei que ela não viu... Mas era como se o meu olhar fosse o dela... Eu me senti como ela, eram os meus pais, era o meu palácio, era a minha vida.
Gaetana terminou o relato. Seu coração batia forte. Estava abalada com tudo o que vira, mas lutava para não demonstrar. Queria com todas as suas forças que Raoul acreditasse nela. Precisava que soubessem sobre a menina. Algo dentro dela dizia que isso era fundamental. Durante o sonho, experimentara todos os sentimentos que, mesmo sem entender como, ela sabia: eram os sentimentos da menina. Ela sentiu o seu sofrimento, o seu medo, o seu terror. Precisava ajudá-la, mas não podia deixar que Raoul a achasse uma boba, uma fraca. Ou pior: uma aprendiz querendo chamar atenção. E se ele interpretasse mal o fato de ter batido à sua porta a essa hora? E se fosse tudo um delírio?
- Mas neste sonho, você não viu a menina. Você era a menina. O que a fez acreditar que ela ainda está viva?
- Qayid... Sei o quanto isso vai parecer estranho. Mas estou certa. Ela está viva. A todo o instante eu ouvi os batimentos de seu coração. Posso ouvi-los ainda, se fechar os olhos, pulsando insistentemente em meus ouvidos.
Gaetana ficou em silêncio. A cada minuto que passava, a cada barulho da noite, sua tensão aumentava. Ele não ia dizer nada? Se lembrou de quando chegara à Ilha. Fazia mais de dez anos. Não tinha família, não tinha casa, não tinha nada. Agora, colocava tudo a perder em um momento de loucura. Fora no meio da madrugada falar com Raoul, em seus aposentos pessoais, por causa de um sonho. Por que não procurara a sua mestra antes? Por que não pedira para um ghaya interpretar seu sonho? O que a levara até ali, tão impulsivamente? O que estava pensando?
- Precisamos resgatá-la.
Gaetana saiu de seu devaneio, assustada. Ele acreditou.
- Merab era uma mulher muito poderosa. Você, talvez, não a conhecesse tão bem... Ela não podia estar sempre aqui na Ilha. Precisava estar ao lado do Raj. Essa arte que você não domina tão bem... – Gaetana sentiu seu rosto queimar. – Tudo bem, não precisa se culpar, todos temos nossos talentos... Merab dominava os sonhos, podia ler o inconsciente e sabia usá-lo. Foi ela quem enviou essa mensagem. Através da menina, é claro. A menina é uma de nós. Temos que buscá-la.
Gaetana sentiu que era hora de ir.
- Obrigada por ter me recebido, Qayid. Desculpe por incomodá-lo a essa hora.
- Me fará um favor se vier sempre que tiver sonhos como esse.
Sentindo-se aliviada, Gaetana apressou-se para deixá-lo. Quando já estava no corredor, ouviu sua voz rouca ecoando pelas paredes frias:
- Garota, Rana Merab a escolheu para receber essa mensagem. Espero que entenda o tamanho da responsabilidade.
- Sim, Qayid.
Ele bateu a porta, deixando-a sozinha e assustada, ouvindo agora apenas os próprios batimentos.
~*~
Glossário desse capítulo:
* Qayid: líder da Ilha, uma organização escondida.
* Raj: Rei do Sul
* Rana: Rainha do Sul
Dúvidas:
* Quem é a menina? A menina que sobreviveu a esse ataque é Hannah.
* Quem é Merab? A mãe de Hannah.
* Como se pronuncia Qayid, Raoul e Gaetana? "Caíd" e "Raúl". Gaetana é igual Caetana, só que com G.
Se tiverem mais dúvidas, é só perguntar aqui! Vou adorar responder! 🖤
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