I 1.9 O ataque
Já dava para ver o litoral de Shailaja. A costa era bela, mas mesmo dentro do navio fazia frio. O clima era bem diferente do calor suave da Ilha. A orla era seca, cheia de pedras, e o mar era azul escuro. Uma floresta de pinheiros se seguia à areia negra. O navio chegou a uma península. Shailaja ficava no pé de uma pedreira, mas a antiga fortaleza era até mais alta que a própria rocha, subindo em torno dela, com suas longas torres de pedra escura, com cumes pontudos como montanhas cobertas por neve.
O navio não conseguia aportar tão perto da orla. Lentamente, os passageiros começaram a sair em barcos menores que levavam até oito pessoas. Marinheiros pegaram as suas malas e desceram, mostrando o caminho. Elas entraram em uma fila com o restante dos nobres. Em um barco já quase na praia, Chris avistou o grupo da noite anterior.
- Vocês três estão juntas, certo? Podem vir nesse, deixe que pego sua mala, senhorita - pediu o ajudante do navio.
Outras jovens já estavam no barco. Elas se calaram assim que Bia, Chris e Serena entraram. Bia chegou a dar "boa noite", mas ninguém respondeu. Dois homens começaram a remar. Ficou um silêncio desconfortável, enquanto os marinheiros faziam o barco avançar pela água escura. As outras já vestiam belas roupas de frio. Uma delas usava um casaco de peles tão felpudo que ocupava o lugar de duas pessoas. Depois de um tempo, ela falou.
- São novas por aqui? Sou Adaeze Afia. Estas são Méline e Zaila.
- Sim, prazer. Sou Christine. Estas são Serena e Bryanna – respondeu, apontando.
- Sejam bem-vindas - disse Zaila – Ouvi dizer que teremos muitas companhias novas este ano...
Mas Adaeze já perdera o interesse e voltara à conversa anterior, que fora interrompida.
- Enfim, só acho estranho ele não ter me procurado. Afinal, ele sabia muito bem que eu estava no navio. Não é assim todos os anos?
- Deve ter chegado cansado...
- Ah, não tente me poupar, Méline. É um desastre tudo isso.
- É só explicar para ele que você não teve nada a ver com aquela nota...
Chris não tinha ideia do que elas estavam falando e nem ligava. O tempo estava nublado e ela sentia um gostoso cheiro de maresia e grama molhada. Pensou que ali o clima era mais parecido com Adij Rariff, sua casa. Já não visitava há tantos anos... Fechou os olhos e aspirou o ar noturno, tentando se lembrar de sua mãe, seu irmão e dos poucos momentos felizes que vivera naquela terra, mas logo a sombra de seu pai cobriu suas lembranças como o voo de uma graúna com enormes asas que tudo escureciam.
***
A carruagem avançava lentamente. Hannah já estava irritada. Aquele ritmo constante, os buracos na terra, o barulho dos cascos contra o cascalho... Nunca viajava de carruagem, odiava a sensação de ficar trancada em uma caixa, enquanto poderia estar em cima de um cavalo. Enzo Yezekael não tentara mais puxar assunto. Havia falado o necessário. Já estavam na estrada há um bom tempo, quando Hannah ouviu o barulho de outros cascos batendo violentamente contra o chão. Verificou a sua adaga por baixo do vestido, alerta. Uma pedra entrou estraçalhando o vidro da janela da carruagem.
- O que é isso? - gritou Enzo.
Os cavaleiros que guiavam a carruagem apressaram os cavalos. Hannah puxou a lâmina que carregava entre as vestes na cintura. Com o punho, terminou de quebrar o vidro e olhou para fora: três homens os perseguiam, montados em grandes cavalos negros. Usavam máscaras prateadas que cobriam todo o rosto, deixando apenas um espaço para os olhos. Estavam todos vestidos de preto: calças, blusas, sapatos, luvas. Hannah pensou o mais rápido que pode. Máscara: não queriam ser reconhecidos. Luvas: a cor da pele poderia ser um indicativo de sua origem...
Um deles estava armado com um arco... Hannah tirou o rosto da janela no momento em que uma flecha passou voando e atingiu um dos cavaleiros.
- Cuidado! – berrou Enzo.
Eles se aproximavam cada vez mais. Poderia matá-los a qualquer momento, ela sabia. Mas quem eram? Quem mais estaria observando? Qual o objetivo deste ataque? Seria destinado a Yezekael? Ou estaria destinado a desmascará-la? Ela precisava tomar uma decisão rapidamente.
De repente, a carruagem fez uma virada brusca. O segundo cavaleiro foi atingido. Os cavalos corriam em alta velocidade e sem rumo. Hannah se concentrou. Precisavam fugir. Não havia como lutar. Um velho e uma menina? Quais chances teriam? Ela não podia arriscar se expor ali, no meio de uma rota conhecida.
- Vamos pegar os cavalos. Eu vou na frente. Depois, puxo o senhor. Entendeu? - perguntou Hannah a Yezekael. Ela não deu tempo para que ele respondesse.
Com movimentos rápidos, terminou de quebrar o vidro e se esgueirou pelo buraco da janela, alcançando o banco onde estavam os cavaleiros, já mortos. Sem pensar duas vezes, empurrou os corpos e se abaixou, evitando mais uma flecha que passou voando. Pegou as rédeas dos cavalos e os açoitou para que corressem ainda mais. Quando olhou para trás, Yezekael já estava tentando sair, a porta da carruagem aberta batendo violentamente contra o seu corpo. Deu a mão para que ele se apressasse, mas uma flecha o atingiu na coxa. Ela o puxou para o assento. Sem piedade, arrancou a flecha de sua perna.
- Vá para o cavalo. O segundo - gritou, apontando.
Hannah puxou a rédea para que o segundo cavalo ficasse mais atrás e Yezekael montou. Com habilidade, ela deu mais um puxão e montou na frente dele. Com uma mão, açoitou o primeiro cavalo, para que ele fizesse meia volta, e rapidamente cortou as rédeas e toda a selarias do segundo cavalo, abandonando a carruagem.
Os três homens vinham bem atrás. Hannah ouviu o barulho quando eles foram atingidos pela carruagem, mas não se virou para ver o resultado.
- Se segure em mim! - gritou.
Hannah agarrou o pescoço do cavalo. Concentrada, fez com que ele corresse ainda mais. Ela acelerou até alcançar a velocidade mais rápida que o cavalo poderia aguentar. Não sabia se outros mascarados estariam escondidos. Com a perna sangrando devido ao rasgo feito pela flecha, Yezekael não aguentaria muito tempo e ainda faltavam horas de estrada até Shailaja.
Já estavam cavalgando há mais de uma hora quando ela começou a sentir as mãos envolta de sua cintura mais frouxas. Preocupada, olhou ao redor, atenta a qualquer sinal dos atacantes, e avaliou que seria seguro parar. Saindo da estrada, avançou dentro da mata e apurou os ouvidos. Distante, conseguiu perceber o barulho fluido de água. Entre duas grandes pedras, encontrou um riacho. Hannah ajudou Yezekael a descer do cavalo. Acomodou-o encostado em uma das pedras. Ele estava pálido e fraco. Pobre velho, esperei tempo demais, pensou. Ele havia perdido muito sangue.
Sem cerimônia, Hannah usou a adaga para cortar suas vestes no local onde ele fora atingido. Um ferimento profundo rasgava a perna esquerda e o sangue escorria continuamente. Com as mãos, ela pegou água do riacho e jogou sobre a ferida, avaliando sua gravidade.
- Obrigado - disse Yezekael com a voz fraca. – Mas acho que não há muito o que fazer... Você foi impressionante, realmente... Por favor, cuide do meu menino...
Ela o olhou espantada. Depois, ficou indignada.
- O que é isso? Acha que vou deixá-lo morrer?
- Por favor, um pouco d'água...
- Vamos resolver essa perna e depois você pega por si mesmo.
Yezekael a olhou surpreso. Ele estava sangrado abundantemente há mais de uma hora. Balançara a perna ferida em um cavalo em altíssima velocidade. Nunca vira um cavalo tão rápido... Estava fraco, seus pensamentos começavam a ficar confusos. Não haveria volta para ele. Por que ela estava lavando esse ferimento?
- O senhor pode olhar se quiser...
Hannah pegou a faca e fez um corte profundo no próprio braço. Confuso, Yezekael observou enquanto o sangue dela escorria. Não era apenas vermelho como o dele. Podia ver que seu sangue era ainda mais escuro e brilhante. As palavras vieram ao seu consciente: sangue de Amadum. Quando a primeira gota caiu em sua perna, ele sentiu uma pequena queimadura. Depois, uma segunda, terceira... Incrédulo, viu o rasgo em sua perna diminuir até se tornar uma pequena cicatriz. Ele não se sentia mais fraco, não estava tonto.
- Como...? Você me curou. Você me curou com o seu sangue?
- Não pode contar para ninguém, entendeu? – disse ela, apontando a faca ensanguentada para o seu nariz. Quando ele assentiu, ela completou: - Nem para Raoul. Prometa.
Era uma ordem clara. Apesar de sua pouca idade e tamanho, estava ali a autoridade dos Maël, a determinação de Ammiel. Ele assentiu mais uma vez e viu a preocupação em seus olhos.
- Venha aqui, beba um pouco de água – disse ela: - Temos ainda uma longa viagem até Shailaja.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro