I 1.11 Salão Mavi
Enzo Yezekael avistou a montanha onde ficava Shailaja. Finalmente, pensou. Seu ferimento fora completamente curado, mas se sentia cansado. Era um homem velho, cavalgando há horas e já anoitecera. Depois que Hannah fechou o rasgo em sua perna, um outro cavalo surgiu. Eles se dividiram e recomeçaram a viagem. Na hora, ele pensou que era uma grande sorte achar um cavalo assim, perdido na floresta. Agora, reparava que eles eram muito parecidos. Talvez parecidos demais. Estava imaginando coisas? Além disso, o cavalo não estava selado. Hannah havia cortado todas as amarras do primeiro... Ele nunca montara um cavalo sem selas. É possível que estivesse conseguindo com tanta destreza?
Apesar de ter convivido com um deles desde a infância, Enzo Yezekael nunca entendera completamente os poderes do seu irmão. Era proibido falar sobre isso em sua casa. Ele sabia mais do que a maioria das pessoas, com certeza. Sabia que sem eles não havia chances de proteger seu menino. Mas... Ela poderia curá-lo? Com seu sangue? Ela poderia criar outro cavalo?
- Que sorte aparecer um cavalo assim, não é mesmo? – comentou.
Hannah sorriu, mas não respondeu. Resolveu tratar de algo mais importante no momento.
- Precisamos de uma história.
- Sim... O ataque, você imagina quem poderia ter tentado ferir a senhorita?
Ela o olhou surpresa.
- O ataque não foi para mim. Com certeza, não sabiam que eu estava com você.
- Você acha que foi para mim?
- Não há dúvidas.
Enzo possuía inimigos, era verdade. Além disso, era a pessoa mais próxima de Noa e sabia os mais novos esquemas de segurança de Shailaja... Com certeza, tentaram pegá-lo antes de chegar à fortaleza... Isso explicaria também a flechada na perna. Poderiam ter tentado acertá-lo em algum órgão vital ou até mesmo mais vezes, mas se contiveram.
Seu irmão sabia. Enzo acabara de se dar conta.
- Foi por isso. Por isso que Raoul mandou a senhorita comigo. Para me proteger.
Hannah também chegara a essa conclusão. Raoul nunca fazia algo sem motivo. Precisavam de uma história urgentemente. Já estavam cruzando a praia da fortaleza de Shailaja - sujos de sangue, terra e relevantemente atrasados. Além disso, perderam dois homens e teriam que mandar buscar os corpos.
- Diremos a todos que o ataque foi para mim - determinou Hannah.
Enzo pensou por uns instantes e acrescentou:
- Reforça a teoria de que veio para Shailaja para ficar mais protegida.
- O senhor foi me buscar com o intuito de garantir minha segurança. Se feriu tentando proteger-me.
- Com certeza, essa é uma história que terei mais prazer em contar - riu Enzo passando a mão pela longa barba.
Não era absurdo. Apesar da idade, Enzo Yezekael ainda era um homem forte e era experiente em batalhas. No mínimo, seria mais crível que contar a verdade.
***
O jantar foi mais silencioso que o normal. Todos estavam comentando a presença de Serena e Bryanna, mas aos cochichos.
- Judicaël? Eles não foram exterminados? - questionou Joshua.
- Totalmente bizarro - completou Matéo, enquanto se ocupava em dar uma boa garfada em seu cordeiro.
- Sybilla não parece muito interessada em conversar com a irmã - comentou Liam.
Noa estava surpreso como todos, mas, ao mesmo tempo, aliviado. Hannah Maël não fora apresentada. Não fizera o juramento. Era apenas um boato. Procurou Sybilla com os olhos. Estava sentada à mesa com Adaeze, Méline e Zaila. Enquanto as meninas conversavam, Sybilla comia em silêncio.
Agora, Noa pensava nos rumores de guerra. Todas aquelas famílias se deram ao trabalho de mandar seus filhos para Shailaja. Diziam que era o lugar mais seguro. Por que Hannah Maël não viria? Ele ouviu comentários de que ela não poderia pagar, mas não achava que era por isso. Ouviu também que ela não tinha terras ou herança, portanto, quem iria querer algo com ela? Mas Noa sabia que não era bem assim. Ela tinha o sangue real palaciano. Era a herdeira legítima. Deveria estar protegida também... Onde estaria o Sr. Yezekael?
Já terminavam o jantar, quando o tutor Alfred Theirn se levantou e anunciou que os pertences de todos já tinham sido levados aos novos aposentos. Após muitas doses de malte, poucos ainda comiam quando os cinco deixaram o salão. Rariff fez um sinal para Ker Elijah Jarg, um senhor alto e grisalho, que era o seu mais fiel guarda pessoal. Ker Elijah informou que Matéo e Baldric ficariam no Salão Giel. Já Liam, Joshua e Noa ficariam no Mavi.
- Estamos separados - apontou Joshua, surpreso.
Noa estranhou a mudança. Seus amigos mais próximos geralmente ficavam com ele no aposento. Pensando bem, ele mesmo não conhecia o Salão Mavi.
- Acho que criaram esse Mavi só para você, Rariff - comentou Baldric.
- Roparzh e Blake também estão nele.
Os três caminharam com Matéo e Baldric até o Salão Giel, que tinha uma grande porta dupla de ferro, com adornos prateados. Era lá que Noa se hospedara nos últimos anos. O salão era amplo e os quartos aconchegantes.
- Já que Meu Kaal não estará entre nós, faço questão de pegar seu antigo quarto e dormirei como um membro da realeza – disse Baldric, com uma mesura exagerada, arrancando uma gargalhada de Noa.
Matéo e Baldric entraram, enquanto os outros continuaram pelo corredor, seguindo Ker Elijah, que ia à frente, enquanto mais dois guardas vinham atrás. Era sempre assim quando se andava com o herdeiro. Em Shailaja, mesmo dentro da fortaleza, as paredes eram de pedra e os corredores frios. A caminhada os levou até um outro corredor. Eles conheciam esse lugar. A única sala que havia era o armário do vestiário masculino. Ao lado, estavam a saída para o jardim, o salão de jogos, a sala do senhor Winoc...
- Vão colocar o kaal no armário de lanças? - perguntou Liam, rindo.
- Por aqui, Meu Kaal – orientou Ker Elijah. Ele apontou para um pequeno portão de ferro, guardado por dois homens do exército nortenho. Por trás do portão gradeado, uma escada fina subia em espiral. Noa olhou pelos arcos na pedra e viu que a escadaria tanto subia quanto descia em círculos. Lá embaixo, o que seria um poço era, na verdade, um chafariz ricamente adornado que deixava sua água jorrar em um pequeno lago verde.
- Que lugar é esse? – questionou Liam, espantado.
Eles subiram um lance de escadas e chegaram a outro portão de ferro. Quando um dos guardas abriu o portão, os três se viram em um salão muito parecido com o Salão Giel. Havia confortáveis sofás de couro, cobertos por peles de animais. No lado direito, mesas de jogos e um bar. Atrás das cortinas, podia-se ver uma ampla sacada. O chão era de mármore escuro e subia pela escadaria, que ficava à esquerda. Noa percebeu uma pilha de malas ao lado da escada. A sua estava entre elas.
- Meu Kaal - chamou um dos criados de Shailaja, que aguardava ao lado da porta. - Peço, por gentileza, que os senhores aguardem no salão. Em breve, serão orientados sobre seus quartos. Com licença - disse o homem, que logo se retirou e trancou a porta.
- Que estranho, sempre escolhemos nossos quartos. Ainda pediu para o kaal ficar esperando e saiu apressado! – reclamou Liam, mais incomodado do que o próprio Noa.
Os três avançaram e se sentaram nas poltronas ao lado de uma mesa de jogos. Uma lareira ardia próxima ao bar. Estavam exaustos da viagem e agora teriam que esperar mais. Liam continuava reclamando das mudanças quando um barulho veio da entrada. Alguém abria a fechadura. Quando a porta se abriu, três jovens passaram por ela. Eles as viram no navio, depois na apresentação e agora estavam no mesmo aposento.
A morena foi a primeira a falar, avançando desinibida até eles.
- Boa noite, Meu Kaal. Sou a srta. Gwenaël e estas são as senhoritas Yahia e Hyanchinthe - disse ela com naturalidade. As outras duas apenas acenaram e fizeram uma mesura em respeito a Rariff.
- Chris, não se lembra de mim? - perguntou Liam: – Seu primo Liam?
Agora Noa estava espantado. Há tempos não viam Liam encabulado. Ele apreciou a cena à sua frente com prazer. Era incrível ver Liam tão constrangido. A morena abriu um belo sorriso. Seus lábios pintados de vermelho ressaltavam ainda mais seus dentes brancos. O vestido preto era justo e ela usava um casaco felpudo e botas de viagem.
- Liam! Claro que lembro! Como você mudou! – Ela caminhou até ele.
- Você também... - disse Liam, embaraçado. Não via Christine desde que eram crianças. Os cabelos negros e lisos ainda eram cortados na altura da nuca e usava uma franja como quando eram pequenos... Mas agora estava tão diferente. Jamais a teria reconhecido, não fosse pela cerimônia de apresentação. – Este é o Sr. Joshua Barrett Blake e, é claro, o Kaal Noa Nolwenn Rariff.
- É claro, um prazer conhecê-los. Meu Kaal - repetiu Chris, fazendo uma reverência educada diante de Noa. Atrás de Chris, Serena e Bia repetiram a reverência, mas nada disseram.
Chris andou pelo salão e se dirigiu às malas. Serena e Bia iam seguindo, quando Joshua interrompeu.
- Err, com licença, temos que esperar as instruções sobre os quartos... Por isso estamos aqui. Um criado nos avisou.
- Ah, claro. Obrigada.
As três se olharam e se sentaram em poltronas perto das malas.
- Então, as senhoritas já se conheciam? - perguntou Liam.
- Ah sim, todas moramos na Ilha - respondeu Chris.
Liam não sabia mais o que perguntar. A situação era estranha. Ele sabia que a única pessoa confortável ali era Noa e, por um momento, o odiou por isso. Liam o conhecia há muito tempo e sabia que estava acostumado a longos silêncios.
Do outro lado do salão, as três cochichavam algo que não dava para ouvir.
- Estou preocupada. Já é quase meia-noite. Ela deveria estar aqui - sussurrou Serena.
- A previsão era chegar logo após o jantar... Ela entraria enquanto todos estavam no salão e já estaria aqui quando chegássemos... - comentou Bia.
De repente, Joshua se levantou.
- Bom, já que estamos aqui, por que não jogamos cartas?
***
Hannah encontrou o portão discreto que dava para o chafariz, como Yezekael havia instruído. Por ali, subiria mais um lance de escadas, mas não precisaria passar pelos guardas. Observou a espiral que levava ao Salão Mavi. A cada lance, havia uma pequena porta que era guardada por um soldado do exército nortenho. Mas ali, no térreo, ela não encontrara nenhum guarda. Provavelmente, Yezekael havia planejado desta forma para que ela pudesse entrar sem ser vista enquanto todos ceavam. Pelo menos essa parte do plano havia sido mantida. Subiu dois lances de escadas e pôde ouvir, além do som constante da água que corria no chafariz, vozes abafadas atrás da porta. Uma dessas vozes seria a de Noa? Por um momento, no escuro, ponderou se poderia ter evitado esse encontro. Não se viam há mais de dez anos. Provavelmente, ele nem se lembrava direito dela. Eram tão pequenos na época...
Sem pensar, empurrou a maçaneta de prata, passou pelo portão e entrou. Todos estavam reunidos em volta de uma mesa baixa e jogavam cartas. Já esperava que a sua presença seria uma surpresa, mas o choque em seus rostos a deixou confusa.
- O que aconteceu com você? - perguntou Chris, visivelmente abalada.
Por um momento, olhou confusa para si mesma. Depois, viu suas vestes manchadas. Estava coberta de sangue. Que estúpida! Como não me preparei para isso?
- Ahn... Fomos atacados... - disse apressadamente: – Ahn... Me chamo Hannah, Hannah Maël.
- Seja bem-vinda, eu sou Christine. Sente-se aqui, deixe-me ver isso... Está machucada? Essas aqui são Serena e Bryanna. Que tal um chá? Vai ser bom para acalmar os ânimos.
- Vou chamar uma criada - Serena apressou-se a dizer.
Ótimo, Chris tomou as rédeas desse desastre. Serena já estava providenciando um chá, vai dar tudo certo. Hannah sabia que havia homens no salão, mas ainda não tivera coragem de encará-los. Eram os três. Noa, Joshua e Liam. Ela os conhecia bem. Conhecia tudo sobre suas vidas. Arriscou um olhar rápido. Um homem alto, magro, de traços finos e longos cabelos loiros, presos em um rabo de cavalo, a observava claramente chocado, sem nem tentar esconder sua expressão. Este é Liam, pensou. Ao seu lado estava um jovem de cabelos castanhos escovados para trás. Uns fios soltos caíam sobre seus óculos e, por trás destes, havia um par de olhos azuis, levemente caídos. Passou uma mão pela espessa barba castanha, parecendo genuinamente preocupado, mas não disse uma palavra. Joshua, registrou Hannah. Os dois esperavam a reação de Noa. Qualquer interação com ela poderia ser considerada uma traição, Hannah já esperava por isso. Mas Noa a observava imóvel. Era mais moreno e mais largo que os outros. Usava um colete de couro comprido e, em sua mão direita, estava o grande anel de safira dos Rariff. O rosto era como ela se lembrava: as feições marcadas como as de Azarias e, por baixo das sobrancelhas espessas, os olhos fundos do pai, mas os lábios eram cheios como os de Agnes. Seu olhar sobre ela era desprovido de emoção, frio como aquela fortaleza. Ela se sentiu aliviada. Pelo menos, ele não lembrava em nada Niall.
Repassou o seu disfarce, concentrando-se, enquanto aguardava o chá. Era uma herdeira, mas criada em uma fazenda, quase uma camponesa. Usava roupas velhas, estava suja de sangue... Percebeu que estava parecendo muito calma. Serena se aproximou.
- Aqui está, pedi aos criados para preparem um chá, mas enquanto isso beba essa água...
Estendeu a mão para pegar o copo e, tremendo deliberadamente, o derrubou no chão.
- Ah, me desculpe! Como sou atrapalhada... Ainda estou nervosa... Deixe que eu pego - disse Hannah, se esforçando ao máximo para manter uma atuação convincente.
- Sem problema algum, fique aí, você precisa descansar, vou pegar mais...
Com um olhar solidário, Bryanna sentou-se ao lado de Hannah.
- O que aconteceu? Quer nos contar?
- Ah, foi tão rápido, uns homens vestidos de preto, estavam mascarados... Tentaram parar a carruagem, dois homens foram mortos... A sorte foi que o senhor Yezekael me protegeu...
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