II 2.6 Partidos
Ela o sentia por todos os lados. Não estava enjaulada como ele, mas os dias e noites sob o comando do líder não eram tão diferentes. Ela era um pássaro exótico, preso em uma gaiola.
Quando havia um baile, uma comemoração dos filhos, ele a libertava para que os encantasse.
Depois, só lhe restava retornar a sua vida solitária.
Os filhos da dor não se dirigiam a ela.
Os filhos da morte a temiam.
Mas havia outro prisioneiro dentro do cárcere úmido em que viviam.
Assim como Luc, sua energia era intensa, dominadora.
Porém, ao contrário da energia do líder, que a sufocava, quente e vigorosa, esta era fria, sorrateira, difusa.
Ela demorara anos para entender que conseguia pressentir a presença de algumas pessoas. Especiais. Como ela. Não compreendia os motivos, mas a busca por um semelhante a atraía, apesar do arrepio que sempre sentia quando a presença do prisioneiro se manifestava.
Na maior parte dos dias, ela não o sentia. Ele não era uma ameaça constante como o líder. Mas, no cair da noite, quando o sono a tomava, era ele quem a despertava. Em meio aos sonhos de fogo em um palácio esquecido, rastejava algo viscoso, gelado, pútrido. Ela acordava com um grito e a certeza de que ele estivera por perto, observando-a. Sempre que isso acontecia, ela via a menina ao seu lado, já desperta, os olhos aterrorizados e os lábios trêmulos. Mas, como nesta noite, ela se recusava a contar o que sabia.
— Quem esteve aqui?
— Por favor...
— Me conte!
— Eu não vi nada – a menina tampou os olhos, encolhendo-se nas cobertas.
— Mentirosa! – Ela jogou os próprios cobertores para trás, pulando da cama. Ainda sentia a presença e sabia que, se conseguisse se concentrar, o encontraria.
Deu passos incertos para fora do quarto, ouvindo apenas o sussurro da menina antes de se afastar: — Não estou mentindo. Não é algo para ser visto.
Ela a ignorou e percorreu o corredor escuro. A brisa que passava pelos arcos era fresca. O chão, como de costume, ainda reunia os cacos da última festa dos filhos. Ela tentou evitá-los, enquanto apertava a camisola preta contra o corpo. A cauda era longa e se arrastava no chão molhado. Ela segurou a barra, tentando não estragar mais uma roupa. Sabia que o líder a queria sempre impecável e insistia em ornamentá-la como se fosse algo a ser exibido.
Era o meio da madrugada. O caminho estava silencioso. Ela percorreu os corredores instintivamente, como se seus pés já soubessem exatamente onde encontrá-lo.
A energia a guiava como se a pegasse pela mão. Era tão densa que parecia palpável, na forma de dedos longos pressionando seu pulso.
Ela a seguiu até uma porta pesada e escura, na ala mais erma do Palácio dos Afogados. Era onde, no passado, ficavam os quartos dos servos e dos guardas. As barras de ferro indicavam que, não muito depois, os quartos se tornavam celas. Ela passou pelas celas abandonadas, com hesitação.
O que teria que fazer para que o líder se cansasse dela e decidisse enfiá-la em uma dessas celas?
As grades enferrujadas cederam à pressão do tempo se transformando em barras esburacadas. Ao final de um túnel que, no passado, era o lar dos encarcerados, havia uma porta.
A porta não era comum, com apenas uma fechadura. Dezenas de ferrolhos, trancas de aço e até uma barra estavam à disposição de quem quisesse usá-las, no entanto, elas estavam abertas. A energia pulsava pela porta, tão ameaçadora que desafiava qualquer um que pensasse em abri-la.
Um puxão na tranca de aço e um girar da maçaneta seriam suficientes para revelar o que havia do outro lado.
Era ele, ela intuía.
O outro que era como ela.
Aquele que estivera, de alguma forma, no seu quarto.
Porque mesmo encarcerado, ele era como ela.
Não cabia em si mesmo.
Seu poder extravasava, se derramava, circulando por onde quisesse, transformando-se no que desejasse.
Ela sentia que nada poderia contê-lo.
Que ele era uma força tão poderosa quanto ela.
E mesmo assim, ali estavam eles.
De alguma forma, presos.
De alguma forma, quebrados.
– Partidos – a palavra saiu dos lábios da menina, como se ela lesse seus pensamentos. Percebeu que a criança a seguira até ali, arrastando consigo uma coberta. – Por favor, vamos pra cama.
– Quem é ele?
– Eu imploro – choramingou a menina.
Mas a súplica só despertou ainda mais a curiosidade, despertando aquela ânsia que ela não conseguia mais calar.
Queria saber.
Precisava saber.
Deu um passo à frente, puxando a tranca e empurrando a porta pesada. Apenas escuridão se seguia em um túnel estreito, que descia por uma escadaria de pedra fria. Ela sussurrou e uma chama surgiu na própria mão.
– Por favor... – insistiu a menina.
– Fique aí no escuro, se não quiser vir.
Ela desceu cautelosamente, tentando evitar qualquer barulho. Pensou em apagar a chama, mas não teria como enxergar o que havia lá embaixo. A cada passo a energia se tornava mais pesada, mais fria.
Aguardou que a sensação ao seu redor mudasse, revelando surpresa, ou qualquer sentimento. Mas o dono daquele poder não teve qualquer reação.
Imaginou que, talvez, estivesse dormindo ou, então, ainda muito distante. Ela começou a contar os degraus.
Cinquenta.
Cem.
Duzentos.
Além da energia, o ar ficava cada vez mais espesso. Suas pernas tremiam quando os pés pousaram sobre o chão cavernoso da cela mais escondida do Palácio dos Afogados, um lembrete ingrato de que o líder estava certo. Ela precisava se alimentar. Estava magra demais, fraca e frágil.
Em algum lugar no consciente perdido, havia uma voz distante que dizia para se resguardar, se fortalecer, se preparar... Mas para quê?
Precisava entender.
Sem isso, de que adiantava lutar por qualquer coisa?
Ela tateou a esmo na escuridão, mas a chama iluminava apenas o chão úmido e pegajoso.
Ainda pensava se deveria aumentar o fogo para enxergar melhor quando uma nova chama surgiu, emanando uma luz bruxuleante e arroxeada, como os olhos ametistas do imenso lobo preto que a encarava.
As presas estavam à mostra, os olhos, fixos nela.
Ela deu um passo hesitante para trás e ele avançou, rugindo raivosamente, descontrolado e violento. Ela trombou na menina logo atrás de si, derrubando as duas no chão. A fera foi pra cima delas, a baba escorrendo de sua boca faminta, que se fechou no ar, no momento em que os grilhões se apertaram contra o pescoço, fazendo com que fosse lançada para trás.
O lobo ganiu, irritado. Seu uivo ecoou pelas paredes pedregosas da caverna.
– Rani – cumprimentou uma voz desprovida de emoção.
"Rani".
Ela conhecia aquele tratamento. Sabia que não era seu nome, mas algo que dizia respeito a ela e a outras mulheres. Ela o conhecera nas paredes pintadas do Palácio, onde rajs e ranas haviam sido retratados, detalhando toda a descendência do clã Yahia. Àquela altura, conhecia os contornos das pinturas de cada um dos ancestrais de cabeça, assim como sua última filha, a rani Bryanna Yahia.
Quando ouviu o tratamento sendo direcionado a si mesma pela primeira vez, ela se perguntou se era ali que estava a resposta, naquela parede que detalhava a história de um clã misterioso.
Seria ela a rani daquele reino decadente? Seria ela uma Yahia? Onde estava Bryanna, a herdeira de tudo aquilo? Morta? Há quantos anos?
Porém, ela tinha olhos e sonhos. E seus olhos atestavam que, não... Ela não poderia ser uma Yahia.
Os Yahia tinham cabelos de fogo, olhos verdes e peles sardentas.
Os Yahia tinham a cura nas mãos.
As figuras mostravam ranis bondosas e delicadas, com rostos rosados e mãos sobrepostas diante dos mais graves ferimentos.
Ela não se sentia nem delicada, nem bondosa.
A energia que carregava em si não era aquela que remendava feridas, mas aquela que as causava. Era caótica e brutal, assim como a do homem que a chamava de rani.
E os sonhos...
Ah, seus sonhos mostravam um palácio lindo, colorido, iluminado pelos raios de Amandeep. Um palácio talhado em pedra branca, esmeraldas e fios de ouro, mas que, nos seus pesadelos, sempre pegava fogo.
– Rani do quê? De onde? – ela perguntou, levantando-se.
Às suas costas, a menina segurou a barra da sua camisola, tentando contê-la.
– Até quando pretende testar minha paciência? – a chama crepitava na mão do prisioneiro, sentado em um banco de pedra, atrás de grossas barras de ônix, tomadas por inscrições antigas, cravejadas em relevo. O homem que fazia a pergunta era forte, apesar das roupas esfarrapadas e do lobo magro e instável que, agora, deitava-se a seus pés. Os cabelos eram grisalhos e fartos e, curiosamente, minuciosamente cortados. Os olhos ametistas brilhavam contra a pele clara que trazia as primeiras rugas em um rosto que ainda era bonito. No entanto, a linha da boca era um traço estreito e rígido, sustentado pelo maxilar forte, coberto por uma fina barba, o único sinal de algum desleixo. Ele se levantou, revelando um abdômen definido sob raros pelos grisalhos e braços torneados. Tudo isso era fácil de se ver através da túnica fina e em frangalhos que ele usava. Ele se aproximou e ela teve vontade de dar um passo para trás, assim como fizera com o lobo, mas não o fez.
Não queria que soubesse que a intimidava.
– Duas perguntas e sua paciência já está sendo testada? Não é como se você tivesse muita coisa pra fazer aqui embaixo.
O canto da boca dele se contorceu em um sorriso discreto, então declarou: – Não é a primeira vez que faz essas perguntas.
Ela piscou, sentindo-se confusa.
– Enquanto os grilhões estiverem nela – ele apontou para a criança – tudo o que você sabe pertence a ela. Essa criança escolhe o que você pode saber, em quem acreditar, o que lembrar... Eu posso te contar, mas você se esquecerá novamente.
– Você sabe... coisas – ela sentiu-se tola, mas continuou. – Os seus grilhões estão no lobo e não é ele que fala por você.
– O lobo tem outra coisa que me pertence – ele disse apenas, apoiando o antebraço contra as barras.
– Me conte mesmo assim – ela pediu.
– O que quer saber dessa vez?
Dessa vez...
Por um momento, sentiu que aquela inquisição era inútil e teve vontade de se arrastar de volta para o quarto. Mas já tinha descido mais de 200 degraus e suas pernas não ficariam doloridas à toa.
– Você me chama de rani. Mas não sou rani desse Palácio. Não pertenço a esse lugar.
– Não pertence. Você é de Palacianos, não muito longe daqui. É uma rani Maël.
Assim que ele disse aquele nome, ele lhe pareceu certo, como algo que já tivesse ouvido desde o nascimento.
– Os Maël... Quem são eles? Onde estão?
– "Quem eles eram?" seria a pergunta correta. Estão na cidade dos deuses.
– Mortos – concluiu com amargor. – Por quê?
– Porque eles estavam no meu caminho – respondeu o homem, os olhos mirando-a tão fixamente agora que fizeram um arrepio percorrer seus braços. – Não foi pessoal.
A criança puxou a camisola com mais força, mas não disse nada.
– Você matou minha família – as palavras saíram facilmente, como se ela já soubesse a resposta.
– Cada um deles – admitiu o homem.
– Por quê?
– Eu já disse, rani. Os Maël estavam no meu caminho.
– É por isso que você está preso? Pelo que fez a eles? O líder o prendeu por isso?
Ele soltou uma risada mordaz.
– O líder... Luc não liga a mínima para os seus pais, rani. Ele me mantém aqui, porque sempre quis ser o líder.
– Você é um deles... Um filho da dor. Por que matou meus pais?
– Por amor – ele sussurrou, tão rápido que ela quase não escutou.
– O amor não se regozija na morte – ela rebateu, sem saber de onde vinha aquele conhecimento, só intuía que parecia correto.
– É mesmo? – a pergunta soou irônica. O braço que se apoiava nas grades desceu para o lado do corpo e ele ergueu a cabeça. O lobo se levantou, passando pela frente das barras negras, inquieto. – Há uma profecia que fala sobre um homem que perdeu o amor de sua vida e, por vingança e apenas por isso, vai declarar guerra a uma tribo inteira. Pessoas inocentes, que nunca o conheceram nem fizeram mal algum a ele ou à sua amada, vão morrer. Crianças perderão pais e mães... E tudo isso por vingança, pois a esperança não existe mais nele. O que você diria de uma pessoa assim?
Ela sentia que a pergunta era uma pegadinha. Conseguia perceber a diversão na voz dele, o modo como brincava com as informações que ele sabia que ela não tinha.
– É fácil zombar de quem não sabe nada – foi a resposta dela. – Me dê algum conhecimento, depois pergunte a minha opinião.
– Você seria capaz de amar um homem com tanto sangue nas mãos, rani? O seu amor se regozijaria em uma guerra por vingança?
– Há alguém me procurando – ela adivinhou, a possibilidade fazendo cócegas no seu ventre. – Mas você disse que ele não tem mais esperança.
– Quem conhece o amor de Ayman, não consegue apagar sua chama. Eu e ele somos mais parecidos do que qualquer um imagina. Mas ele vai descobrir isso um dia.
– Quem é ele? – ela deixou escapar num sussurro, querendo saber mais que todas as outras coisas que desejava perguntar. Naquele momento, percebeu que nada mais importava.
Sua família estava morta.
Ela era uma rani perdida.
Estava diante do assassino que tirara tudo dela.
Mas havia alguém, uma esperança.
Ele abriu um sorriso sombrio e, pela primeira vez naquela noite, ela sentiu que seu poder saía do controle, seu sangue inflamava e queimava como as cortinas do palácio dos seus sonhos.
– Quem é ele?! – ela berrou, avançando para frente sem se importar com lobo, agarrando as grades até que as mãos ficassem dormentes, enquanto a menina chorava atrás de si.
– Por que você não me diz? – ele perguntou, estreitando os olhos. Ela percebeu ali um brilho diferente, astúcia e, ao mesmo tempo, ansiedade. Ele não queria demonstrar, mas aquela era uma resposta que ele não tinha.
Algo que ele não sabia.
O puxão na sua camisola ficou ainda mais forte e insistente. Ela se virou para trás, com o intuito de afastar a criança, mas o medo nos olhos da menina a sobressaltou.
Uma outra energia começava a sobrepujar a do homem à sua frente e ela se perguntou, por um momento, como poderia temê-la mais do que a daquele prisioneiro, mesmo depois de tudo o que ele contara.
Aquele homem havia confessado ser o assassino da sua família e, mesmo assim, ela queria fugir dali somente para evitar aquele que vinha, o líder que dizia protegê-la e até amá-la, mas que conseguia despertar uma mágoa ainda maior nas suas entranhas.
– O que ele fez conosco? – ela questionou, de repente. – Por que estamos assim, partidos?
– Pergunte a ele, rani. Mas não será por muito tempo. E, quando estivermos inteiros, eu irei encontrá-la.
~*~
Quem mais não aguenta mais esperar a chegada do homem que vai queimar essa cidade?
Será que Hannah perdoaria Rariff por matar inocentes por vingança?
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