II 2.4 Uma pista
Era mais um dia nublado em Adij Rariff. A luz que entrava pelas frestas da biblioteca do templo era fraca e, mesmo àquela hora da manhã, ele precisou acender velas. Toda vez que o fazia, pensava que gostaria de ser como os outros. Um sopro em uma das mãos e pronto, fazia-se a luz.
Mas ele era comum, ordinário.
Não podia oferecer segurança, nem impressionar a todos com contos de feitos de batalha. Não podia conjurar um animal, nem que fosse uma pequena mosca para voar pelos ares e bisbilhotar conversas, nem poderia lançar sua visão ao passado, muito menos ao futuro.
Os deuses sabem que, em momentos de desespero, ele desejara imensamente aquilo.
Ser alguém especial, alguém que pudesse fazer mais do que um homem manco e fraco.
Mas ele não era.
E, por isso, a ele, restavam os livros.
Todos os dias, Joshua Blake subia até a biblioteca do templo e se enfurnava ali, rodeado de registros antigos. Se queria ser um bom regente para Adij Rariff, precisava ao menos recuperar os longos anos de ignorância em que Ür mantivera a nobreza. Nos últimos cinco anos, ele estudara como ninguém. Repassara seu conhecimento para Noa, resgatara parte da cultura dos clãs que havia sido perdida.
Seguindo ordens de Blake, nobres fizeram buscas em suas casas por livros perdidos ou até mesmo escondidos. Guardas sob seus comandos reviraram ruínas de templos destruídos e encontraram pedaços da história rasgados ou queimados.
Tudo era levado para o regente e Joshua se debruçava sobre cada peça daquele quebra-cabeça.
Ninguém sabia o que ele buscava, à exceção de Rael, seu companheiro fiel de manhãs perdidas na biblioteca, espirrando lufada após lufada por causa da poeira que saía das páginas encardidas.
Há cinco anos, após a queda da Torre do Arzhel, Blake descobrira uma nova força dentro de si. Ele não tinha poder algum, porém era o único que conseguia ao menos falar com Noa Rariff. Fora ele quem obrigara o bom senso a retornar àquela mente perdida no luto. Fora ele quem dissera que não, os corpos não seriam encontrados, mas que sim, não passariam de corpos.
Amadum fizera seu voo e levara Hannah.
Joshua Blake não podia hesitar, nem fraquejar. Noa Rariff era seu melhor amigo e precisava dele. E o Raj e o Kral precisava se reerguer.
Além de Noa Rariff, havia outra pessoa que não saía de seus pensamentos e, assim que Noa foi capaz de sair do quarto e encarar seus súditos, Joshua voltara para Adij Rariff.
Ele a encontrara de pé, diante de um povo que não era dela, cumprindo uma responsabilidade que, jamais, imaginou que seria sua.
Mesmo assim, sentava-se no trono do Arzhel todos os dias e ouvia lamentações que não eram nem um pouco justas.
Postado ali, atrás do trono, ele tinha vontade de gritar com a multidão.
Vocês não vêem que ela usa o negro?!
Vocês não vêem que está grávida e infeliz?!
Mas os suplicantes não passavam de covardes que só conseguiam olhar para o próprio umbigo.
Serena estava exausta, pálida, esquálida, apesar da barriga que teimava em crescer.
Nove meses se passaram até que ele conseguisse ver um sorriso no seu rosto.
E, neste dia, Joshua soube que faria de tudo para mantê-lo ali.
Continuou ao seu lado, dia após dia. Não esperava nada em troca, sabia o quanto Serena sofria pela falta de Damien. Sabia o quanto a morte de Hannah pesava em seus ombros. Ela se culpava tanto que ele temia o que poderia ter acontecido se não tivesse engravidado. A filha de Damien salvara a vida da mulher que ele amava e, por isso, ele seria eternamente grato a ele.
No entanto, havia uma esperança que ardia em seu peito. Era a esperança daquela visão que ela mesma compartilhara com ele antes da guerra. Ela o convidara a entrar em sua mente, a testemunhar o vislumbre de um futuro em que ela estava grávida novamente.
Mas Serena não acreditava mais naquela visão.
Não acreditava em nada que tivesse sonhado para o futuro.
Era assim que ela chamava suas visões agora: sonhos. Devaneios. Alucinações.
Flertava com a ideia de que era, afinal, uma doida, como muitos imaginavam. Nada do que dissera se concretizara. Sua mente não era afiada, seus olhos não eram abertos por Vïc Alim. Ela não passava de uma maluca.
Mas Joshua Blake não acreditava.
Não podia aceitar aquilo.
Ele conhecia a mente de Serena. Ele via o quanto era lúcida, como conseguia ser racional e forte diante do inimaginável. Por Noa Rariff, por sua dívida com Hannah, ela acordava todos os dias e enfrentava uma multidão. Tomava decisões, dava ordens, ignorava sussurros de que não era bem-vinda em Adij Rariff. Por sua filha, ela se levantava no meio da madrugada, passava noites em claro, dava o peito enquanto lia cartas complexas de articulações da nobreza.
Era uma mulher de aparência frágil, porém com a mente mais forte e genial que conhecia. E, apesar de todas as perdas, se a convidasse para uma partida de cartas, precisava ficar atento, pois, a qualquer erro, ela ganharia.
Então, por mais que tivesse dito a Noa que não havia esperança, e que tivesse consolado Serena enquanto ela chorava por Damien, ele não acreditava.
Sabia que aquela mulher que se deitava ao seu lado não falhava.
Não cometeria um erro tão grotesco.
Algo estava errado.
Algo estava faltando.
Uma carta havia sido retirada do baralho e aquele não era um jogo justo.
Ele queria devolver a confiança a Serena. Queria que ela entendesse o que tinha acontecido. Porém, também temia cada vez mais o que poderia encontrar.
Afinal, agora ela era sua.
Ainda estava ferida, perdera qualquer convicção naquilo que era seu maior dom, mas era sua esposa, mãe de seus gêmeos lindos, mãe do seu próximo filho.
Não escapara a Joshua que a visão de Serena sobre o próprio futuro estava correta, afinal. Ali estavam os gêmeos e a gravidez do quarto filho dela. A filha de Damien correria pelas areias de Palacianos em poucas semanas, quando eles fossem visitar Rariff.
A visão seria verdadeira. Mas Serena intuíra que aquela visão era sobre Hannah e não sobre ela mesma.
Por quê?
Só havia uma peça faltando naquela visão e encontrá-la era algo que assombrava Blake.
Mesmo assim, ele ia todos os dias à biblioteca e mexia no vespeiro.
Procurava qualquer pista, enviava cartas, fazia inquisições.
Naquela manhã, ele aguardava o retorno de Rael sobre um boato específico que ouvira, algo sobre o qual ele havia alertado sua intrincada teia de espiões por toda Adij Alim. Se alguém com essas características aparecesse nas terras dos doze clãs, seus espiões avisariam a Rael. Toda a sua correspondência passava pelo quarto de Serena e, apesar da decisão da sua mulher de manter a visão fechada para Alim, ele temia que somente a presença do papel no mesmo ambiente que ela seria o suficiente para que a informação encontrasse o caminho até a sua mente.
Por isso, escolhera Rael para ser o chefe dos espiões e, principalmente, liderar aquela investigação específica. Até Rael, que era o único que concordava que algo estava errado na queda da Torre do Arzhel, o chamara de maluco.
Mas à noite, quando seus filhos finalmente dormiam, era aquela peça que voltava à sua mente.
Os gêmeos correriam pela praia.
A barriga de Serena cresceria.
A filha de Damien tropeçaria e chamaria a atenção da mãe...
E um gato branco, de olhos violetas, passaria pelas pernas de Serena, correndo atrás da menina.
Vivo.
E, se o gato estivesse vivo, então Serena não errara, afinal.
Aquela visão não era sobre ele, ela ou seus filhos. Era sobre Hannah, pois o gato só caminharia sobre essas terras se ela também vivesse.
Então, por mais que dissesse a Rariff e a Serena que Amadum abrira suas asas e levara Hannah e Damien, ele mesmo desconfiava de suas palavras. Não seria irresponsável a ponto de criar esperanças, mas fazia isso ao lado do único em quem confiava para tal.
Rael era como ele: um estudioso, um homem que preferia a racionalidade dos livros. Apesar de seu espírito livre, alegre e da sua disposição infinita para festas, era nos fatos que encontrava certezas.
Naquela manhã, quando o haya subiu as escadas do templo tão rapidamente que chegou à biblioteca sem fôlego, Blake sentiu a adrenalina de quem está prestes a ganhar uma partida de brahumin.
Rael apoiou um braço na parede de pedra, enquanto tentava respirar.
– Vim o mais rápido que pude – ofegou, colocando uma mecha do cabelo cor de mel atrás da orelha. – Recebi uma pista ontem à noite, em Hiwot.
– Hiwot... Perto do campo de lírios de Amadam – adivinhou Joshua.
– Ele foi visto – sussurrou Rael, como se não acreditasse nas próprias palavras. – Poderia ser qualquer filho de Bahija... Mas havia o gato, como você disse.
– O gato branco...
– ... de olhos violetas – completou o haya.
Os dois se encararam por um instante. Rael sabia o que aquilo significava. Havia esperança, mas os desdobramentos eram impensáveis, absurdos.
– Estive pensando... Nos grilhões – comentou Rael.
Após a queda da Torre do Arzhel, Rael havia revelado sobre o plano de Luc de aprisionar Yan e enfraquecê-lo com os grilhões que Raoul mantinha em segredo na Ilha. A ideia havia morrido junto com o desastre que levara todos aqueles que estavam no topo da torre, porém as peças nunca haviam sido encontradas.
– Com a ajuda de Ariel, Luc iria aprisionar o poder de Yan, separando-o do próprio dono. Aquele que o fizesse, o comandaria. O verdadeiro dono seria aquele que portasse os grilhões – recapitulou, andando de um lado para o outro enquanto prendia os cabelos em um coque.
– Algo deu errado antes que ele conseguisse – determinou Joshua. – O embate entre Hannah e Yan foi forte demais para a Torre. Muitas testemunhas viram o raio que rasgou o céu com tanta energia que partiu a torre ao meio...
– Sim, mas o raio não é uma característica de Hannah. É claro que ela conseguiria fazê-lo e, por causa da intensidade do poder, sempre pensamos que teria sido causado por sua força bruta. Mas e se o raio foi conjurado por Damien?
Joshua se lembrou de quando assistira a um Jogo de Sombras, na Ilha. Fora Damien quem invocara um raio que caíra no meio da arena.
– Era algo que ele costumava fazer, quando treinávamos – lembrou Rael. – Eu não sabia que ele poderia ser tão poderoso, mas e se fosse? E se, em um momento de desespero, Damien superou suas próprias habilidades?
– Mas por que ele partiria a torre ao meio?
– Por desespero? Para evitar ser aprisionado?
– O que você está sugerindo?
– Acho que fomos traídos... E se Ariel enganou Luc e pegou os grilhões? Ele também nunca mais foi visto. Ou então...
– Luc traiu Hannah – sussurrou Joshua.
– Eu sei que não faz sentido. Noa obrigou Luc a fazer a promessa de que a protegeria. Ele não poderia traí-la. Se o fizesse, pagaria as consequências do pacto.
– E Luc está morto. Se nos traiu, então ele teve o que merecia no alto da Torre.
– Não, porque esse é um pacto de morte dupla – Rael foi até a seção de Amadum na biblioteca do templo, pegou um antigo livro na prateleira empoeirada e vasculhou no índice até encontrar o capítulo que desejava. Ele apontou um parágrafo para Joshua: – Veja. Quem pede a promessa também paga pela confiança depositada. "Tratado de morte, traçado à própria sorte. Unidos por Amadum, jamais restará um". Se Luc tivesse quebrado a promessa, ele morreria. Mas Rariff também. O que quer que tenha acontecido na Torre do Arzhel, Luc não quebrou a sua palavra ou, então, Rariff também teria perecido.
– Então, a vida de Rariff prova que Luc não é um traidor.
– Para ser mais específico, a vida de Rariff prova que Luc não quebrou o tratado. O que Rariff pediu a Luc? Quais foram suas palavras exatas?
– Eu não sei... Ele levou apenas Damien consigo. Sei que foi um pedido de proteção. Mesmo assim, o fato de que Rariff está vivo significa que Luc não quebrou o tratado. Ou seja, tentou proteger Hannah. Se Damien está vivo, então Hannah não pode estar morta. Isso me lembra algo que Serena sempre questionou... A morte de Enzo Yezekael. Por que ele morreu?
– Ele era o regente de Adij Rariff. Estava em uma posição perigosa no meio de uma guerra...
– E se a morte dele não passou de uma necessidade? E se fomos enganados?
– Não entendo...
– Enzo estava ligado a Hannah pelo sangue de Amadum. Ele poderia ser a prova de que... – Os pensamentos de Joshua corriam soltos, mas ele se deteve nas próximas palavras. Até mesmo ali, naquele lugar isolado de Adij Rariff, elas lhe pareciam traiçoeiras, perigosas. Rael percebeu a hesitação no seu olhar. – Precisamos ter certeza. Rariff está a ponto de aceitar seu Destino na Cerimônia. Qualquer fiapo de esperança o destroçaria. Ele é o Raj e o Kral, Adij Alim depende de sua liderança.
– Não podemos esconder isso dele, Blake. Ele vai fazer um compromisso em breve!
– Então, precisamos ser mais rápidos.
***
Quem já tinha percebido esse detalhe na visão de Serena?
Ela sempre disse que achou que a visão era sobre Hannah, mas nunca tinha pensado nessa alternativa.
E Joshua acaba de encontrar pistas do marido da sua esposa...Eita! Será que ele vai ter coragem de dividir isso com Serena? O que vai acontecer com o relacionamento deles?
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