II. 2.1 Vashirï
Era o segundo dia de Amadum, no mês de Amadum, e os filhos estavam em festa.
Não todos eles, mas os recém-chegados. Os novatos eram misteriosos e reservados, mas tinham olhos sonhadores e cabelos em chamas que combinavam com as imagens retratadas nas paredes úmidas. Ela sentia que eles estavam retornando para casa e que aquela terra os acolhia de bom grado. E, assim como os outros, eles gostavam de vê-la dançar.
Já era noite e faltavam poucos minutos para a apresentação. Ela sabia que seria requisitada e, caso não comparecesse, conhecia as consequências. Elas estavam marcadas inúmeras vezes na sua pele por anos de desobediência e revolta. Contra o quê ela tentava lutar, não sabia.
Colocou os pés descalços no lago que entrecortava todos os salões do Palácio Afogado. A água estava morna, como uma sopa esquecida à mesa. O cheiro era suave, convidativo como um banho de rosas. No entanto, quando o cheiro permanecia no corpo ou nos cabelos, ela o achava enjoativo, tóxico.
– Ele não vai gostar se você estiver toda molhada – resmungou a menina, escondida entre as pilastras. À essa altura, já estava acostumada à presença dela, como uma sombra que a perseguia aonde quer que fosse.
– Ele não disse nada sobre como devo estar. Me mandou ir e irei. É o bastante – sentou-se na beirada e, com um impulso, caiu para dentro, esticando os braços para frente. Com um movimento preguiçoso, deitou a cabeça para trás, deixando os cabelos se encharcarem. Quando os ouvidos ficaram encobertos, ela aproveitou uns segundos daquele silêncio proporcionado pela água. Apesar de tão tarde, a música da festa não diminuía. Ela ouvia os tambores, os gritos e as risadas desde cedo, fazendo a angústia crescer em seu peito.
Eles a esperavam, era a atração principal do baile.
Ele dizia que ela gostava de bailes, que era festeira como eles e, que se ao menos se esforçasse, descobriria isso. Mas sempre que se via em meio à festa, com os olhares sobre ela e, principalmente, dos novos moradores que não paravam de chegar, sentia-se mais e mais deslocada. Ninguém lhe dirigia a palavra, todos a miravam como se fosse algo de outro mundo.
E ela se sentia assim, fora da realidade, desgarrada de qualquer laço.
"Você ama bailes".
"Você ama dançar".
"Então, dance para nós".
Ela odiava como ele sempre parecia conhecê-la mais do que ela mesma. Odiava como, quase sempre, ele tinha razão. Por causa dele, ela descobriu que sim, sabia dançar. E, sim, ela amava dançar. Mas ainda não estivera em um baile que amasse. Muito menos em um em que amasse dançar.
Ela boiou na água por mais uns segundos, observando o sorriso fino da lua de Bhaskar, que quase nada iluminava. Às vezes, sentia que a lua tinha um humor irônico, como se risse dela. As lágrimas de Amadam estavam encobertas pelas nuvens, o que deixava o palácio ainda mais escuro.
Ela se endireitou e os pés roçaram nas pedrinhas no fundo do lago. Não se importou, apesar de muitos dizerem que não eram pedras, mas ossos de todo um povo que havia sido dizimado.
Talvez fosse por isso que a criança não entrava naquela água, muito menos os filhos.
Mas a menina, assim como ela, não era filha da dor, nem da morte. Ela sabia que tanto ela quanto a menina eram alguma outra coisa. Só não sabia o quê.
– Me faça companhia – ela pediu, mas a garotinha abraçou os próprios braços, encolhendo-se.
– Não posso nadar no fundo.
– Quem disse?
– Meu pai...
– Não estou vendo seu pai aqui – caçoou. Ela sabia que a garota era tão solitária quanto ela. Ela falava sobre pais e até sobre um antigo amigo, um traidor, mas, quem quer que fossem, a haviam abandonado há muito tempo. – Além do mais, acho que você dá pé.
– Os filhos dizem que esse lago é amaldiçoado – contou a menina. – Foi através dele que vieram os lírios de Amadam. O odor das flores adormeceu todo o povo e, enquanto dormiam, foram empurrados para dentro da água.
– Uma história terrível, mas o lago me parece inocente. A natureza não tem culpa da crueldade dos homens – ela mergulhou, adiantando-se na direção da música. Todas as luzes vinham de velas penduradas entre as ruínas de um salão que, um dia, ostentara todo o esplendor dos clãs de Adij Alim. Porém, hoje, parte do teto havia cedido, a hera tomava as paredes, encobrindo quadros e espelhos rachados, e flores cresciam entre os azulejos no chão. As velas eram roxas e boiavam dentro de pequenos vidros cheios de um líquido âmbar. Sempre que uma delas chegava ao fim e o pavio entrava em contato com o líquido, o fogo se espalhava, fazendo o vidro explodir em milhares de cacos pelo salão. Isso acontecia de hora em hora, deixando o salão cada vez mais escuro. Nessas ocasiões, os filhos gritavam e alguns se precipitavam para mais perto de onde a explosão acontecera. Sobre os cacos afiados, os filhos dançavam, deixando um rastro de sangue no chão.
Ela já sabia que eles encontravam prazer na dor.
Via isso em cada uma das relações à sua volta: os beijos eram mordidos, os abraços eram prisões, os cabelos eram puxados e os apertos deixavam marcas.
Mais de uma vez, ele tentara abraçá-la. Mais de uma vez, ela havia deixado. Menos vezes, ele havia tentado beijá-la, mas, apesar de não saber nada sobre beijos, ela se sentira errada. Imediatamente, seu corpo o repelira. Ela o empurrara antes mesmo que pudesse se dar conta do que fazia. Aquilo o irritara. Muito. Era quando ele estava mais irritado que ela entendia por que, por mais que ele dissesse que a amava, que aquele amor não era o que ela desejava.
Ele a sufocava.
Quanto mais perto chegasse, quanto mais insistisse em tocá-la.
Ele fazia com que ela ardesse.
Mas não era o ardor de uma paixão.
Era de raiva, de mágoa.
A criança também o ressentia.
Ela pedia à menina: "me conte".
"Você o odeia, o que ele fez?"
"Por favor, me conte".
Mas a menina nada revelava.
"Ele é o nosso único amigo", era tudo o que dizia. "Sem ele, não temos ninguém".
Mas ela sabia que isso era mentira. Ela havia conhecido dois amigos. Um deles, ele expulsara dali. O outro ainda permanecia.
– Saia da água e se seque antes que ele a veja. Por favor – pediu a menina, que tinha corrido pela margem do lago e agora estava escondida atrás de um vaso rachado. – Por favor, chegar neste estado vai irritá-lo.
– Me conte por que você o teme. Me conte por que você o odeia.
A menina apertou as mãos contra o rosto.
– Não posso odiá-lo. Ele é nosso único amigo.
– Se não me contar, sairei dessa água direto para a presença dele.
– Por favor...
– Me conte! – ela bateu as mãos contra a água, molhando a menina e o entorno do lago. A água escorreu entre os azulejos quebrados e ela pôde ver enquanto o rastro frio afastava os filhos. Eles começaram a se virar, como sonâmbulos que despertavam de um sonho. Os corpos que antes dançavam, agora estavam paralisados, encarando-a. Ela sentia o medo emanando deles. Sabia que era temida, só não entendia o motivo. Mas a menina sabia.
– Por que eles têm medo?
– Não sei... – choramingou a garota, fitando-a com olhos confusos. – Eu não faço por mal... Eu juro...
– O que você fez?
– Eu não sei! – a criança gritou, erguendo-se também. As mãozinhas puxavam a camisola esfarrapada, os olhos eram úmidos e sofridos, mas brilhavam como as poucas velas ainda acesas.
– Eu lhe dei uma escolha, garota estúpida – xingou. – E você escolheu essa. Se não vai me contar nada, farei o que bem entender – com dois passos, ela subiu à margem, o vestido negro colou-se ao corpo de modo indecente. O chão à frente estava cheio de estilhaços e ela sabia que a menina não a seguiria. Odiava ferir os pés. Já ela não se importava. Estava acostumada a se machucar.
No final do salão, ela o viu, sentado em meio ao trono rodeado de espinhos. As roseiras haviam tomado todo o salão, espalhando-se pelo púlpito, onde um grande trono se erguia. Era comprido e todo feito de obsidiana negra, a cor dos cabelos de Amadum. O encosto subia como o véu da deusa, que protegeria aquele que se sentasse no assento. Ao redor do véu, os galhos da roseira se enroscavam, cheios de espinhos afiados, que espetavam a pele daquele que ousava se sentar no trono de um clã dizimado.
Lá estava ele, os cabelos tão escuros quanto os de Amadum caíam sobre a testa, os lábios finos estavam crispados e os olhos negros já a fitavam. Ela caminhou até ele, sem desviar o olhar. Conseguia sentir a insegurança da menina crescendo às suas costas e o medo que exalava dos poros dos novos moradores. Ultimamente, sempre via novos rostos na multidão.
No entanto, dessa vez, um deles chamou a atenção dela. Era novo, desconhecido para ela, e, ao mesmo tempo, velho, castigado pelo tempo.
O velho a fitava com olhos surpresos e ela identificou o espanto que sempre causava, porém havia ali algo que ela raramente sentia: compreensão, como se o velho a enxergasse como a última peça de um quebra-cabeça.
A música parou e o salão caiu no silêncio.
– Veio dançar para nós, vashirï? – perguntou ele, com a costumeira voz baixa. Os olhos percorreram o corpo dela de modo que ela soube que o vestido estava transparente. Havia satisfação em vê-la e também a vontade de exibi-la para todos.
– Não foi este o seu comando?
– Não pedi que viesse nadando.
– Você não especificou como gostaria que eu viesse. Mandou que eu dançasse e assim farei.
A rapsódia começou a tocar, mas os músicos estavam inseguros.
Ela deu uma primeira volta e a água se espalhou, respingando nos filhos, que se sobressaltaram, assustados.
Ela sabia que eles temiam aquela água amaldiçoada e usaria isso a seu favor. Ele dizia que ela amava bailes no passado, mas ultimamente tinha se tornado especialista em acabar com eles.
Os músicos pararam, afastando-se, quando uma nova volta fez mais pingos voarem sobre os presentes.
– Toquem! – ordenou ele aos músicos.
Os cabelos dela, longos e castanhos, estavam encharcados, assim como a saia do vestido e, a cada movimento, ela abria um espaço cada vez maior no meio do salão. Os filhos, apesar de atraídos pelo encanto de vê-la dançar, temiam demais a água e se afastaram, fugindo dos pingos e do rastro de água que corria pelo chão.
Ela dançou e rodopiou sob as notas da rapsódia até que não restasse mais ninguém no salão. Somente ela, ele e o velho.
Em uma coisa, ele estava certo: ela amava dançar. E, mesmo com o ódio e aquela pequena vingança no seu coração, ela se perdeu para a música. Dançou e imitou passos que ela nem sabia onde tinha aprendido. Cantou e acompanhou a música, sentindo o ritmo que ditava cada movimento. E, quando, finalmente, os músicos estavam tão distantes e assustados que ela mal ouvia a melodia, ela se viu ansiando por mais. Mais música, mais dança, mais daquele sentimento que fazia com que ela se sentisse em casa, viva, mesmo que estivesse cercada de morte e dor.
Por fim, exausta, ela ofegou, mirando-o. Sentia os pés em carne viva, os cacos de vidro haviam traçado cortes entre os dedos e na sola dos pés, mas ela pouco se importava. A última das velas chegou ao fim e o líquido se espalhou, explodindo sobre a água que ela jogara no piso. Lama e sangue se misturaram.
Uma bengala ecoou contra o chão, quando o velho, que parecia sábio o bastante para não temer respingos de água pútrida, se aproximou dela. Os passos eram incertos, os olhos tão cansados que as pálpebras quase caíam sobre as pupilas, a pele parecia ter se descolado do peito magro e ossudo. Mesmo assim, ele andava com orgulho e ostentava mais prata do que ela jamais tinha visto. Quando o velho estava próximo o bastante para acreditar nos próprios olhos, ele sussurrou: - Pelos deuses, Luc, o que você fez?
~*~
Por que Luc fez isso?
Ele traiu Hannah?
E o pacto que ele fez com Rariff? Lembram dele?
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