I 1.7 Ghayas de sombras
Acordou com um tremor. Estava seca, não havia frio, apenas dor. Apenas a dor no peito, imensa e constante. Sua mão sentiu a maciez de um lençol, tão gostoso quanto ela se lembrava... Tentou piscar, tentou levantar um dedo, tentou fazer qualquer movimento. Sentiu uma mão contra a sua. Era grande e áspera, os dedos eram quentes, longos, calejados. Ela se esforçou para mexer os próprios dedos e sentiu, naquela mão que a acolhia, um anel, grande e antigo como o seu anel, como o anel de seu pai. O dono da mão disse algo, mas ela não conseguiu ouvir, havia um zumbido no seu ouvido, um zumbido horrível na sua cabeça, sua testa doía, seu corpo doía, sua perna...
Ela soluçou e aquela mão segurou a sua com mais firmeza. Ela gostou do calor daquela mão, do apoio daquela mão, pensou que sabia quem era, pensou que parecia certo, pensou que queria acordar para vê-lo.
Preciso acordar, preciso acordar. Mas o cansaço a levou novamente.
***
- Meu Kaal, uma visita. A Srta. Hyancinthe – anunciou Ker Elijah, no final da tarde. Noa afastou as cartas que lia em seu escritório e fez sinal para que entrasse.
Dessa vez, Serena não estava acompanhada de Damien e Noa se perguntou se ela lhe mostraria mais um fragmento roubado do seu futuro.
- Hannah acordará em breve – anunciou a rani. As palavras inflaram seu peito de alívio. – Mas há certas precauções que precisamos tomar para o seu... reencontro.
- Sei que estará frágil e ainda precisará de tempo para se recuperar...
Serena balançou suas tranças douradas: - Não se trata disso, Meu Raj.
Ela se sentou à sua frente na mesa do escritório como tinha feito há poucas noites. Hesitou antes de pegar uma folha e o tinteiro, mas Noa indicou com um gesto que ela ficasse à vontade. Sentia-se, mais uma vez, como uma criança a quem um adulto explica algo simples. Serena fez desenhos de fases da lua no papel, o olho de Bhaskar ganhando os contornos de suas transições: lua branca, lua de sombras, lua negra, lua de sonhos...
- Poucos conhecem essas particularidades... Há vários tipos de ghayas. Essas categorias são separadas por fases do olho de Bhakar. Eu sou o que alguns chamariam de uma ghaya de sonhos. Assim como a lua de sonhos, que nasce para se tornar a lua branca, os vislumbres que eu vejo podem frutificar, crescer, se tornar realidade. Eu atuo buscando intenções, desejos e consequências para aqueles que estão na minha proteção. Por isso, sei tanto sobre Hannah. Consigo ver melhor os impactos na vida daqueles que são meu foco. Mas há outros tipos de atuação. A que mais nos preocupa agora é a atuação nas sombras.
- Ghayas de sombras? – questionou Noa, perguntando-se se aquele seria o termo correto.
- Sim. A Ilha tem ghayas de sombras, assim como Yan. São pessoas com o mesmo dom que eu... Mas elas não conhecem intimamente ninguém para conseguir prever o seu futuro. Pelo contrário, enquanto a minha atuação necessita que eu tenha um conhecimento profundo da pessoa que estou guiando, essa outra função pede um afastamento completo.
- O que eles buscam? Como encontram previsões assim?
- Eles buscam sussurros. Acontecimentos específicos, frases específicas e há muito esperadas.
- Como assim?
- Desde a visão de Merab, sabe-se que Hannah se apaixonaria por um herdeiro de um dos clãs. A partir dessa visão, começou a corrida para encontrá-lo, para saber antes de todos quem seria o escolhido. Essa informação conferiria poder e a chance de se adiantar diante de uma escolha que mudaria o rumo de Adij Alim.
- O nosso casamento.
- Sim – admitiu Serena. – Assim que a visão se formou, os ghayas de sombras começaram a atuar. Eles buscam por frases específicas que seriam bem óbvias de serem ditas.
- Como?
- "Eu pleiteio a rani Hannah Agnus Maël". Quando Bradford disse essas palavras durante a Cerimônia, todos os ghayas de sombras receberam o mesmo vislumbre. Por isso, Ariel chegou tão rápido. Ele só estava esperando essa confirmação. Mas isso não importa agora... Há outras frases proibidas... – Ela suspirou, ajeitando mechas soltas atrás da orelha. - Como se sente por Hannah? Não precisa responder.
- Não entendo...
- Jamais diga nada óbvio, nenhuma frase específica. Esses ghayas não conseguem vislumbrar variações. Quando o senhor disse, em Shailaja, "vou me casar com você", não era o que os ghayas estavam treinados para buscar. Eles esperam frases como: "eu amo você", "gostaria de se casar comigo?", "aceitaria minha proposta na Cerimônia?" e até "participe da Cerimônia". São frases óbvias que o senhor diria caso o caminho não tivesse sido mudado... Mas a posição em que Hannah foi colocada e o modo como Ür a obrigou a participar da Cerimônia fizeram alterações sutis... O senhor expressou o seu desejo de uma forma inesperada. Vocês passaram despercebidos. Mas, se quando ela acordar, o senhor resolver declarar seu amor com alguma dessas frases, eles o verão.
- Está dizendo que não posso dizer como eu me sinto? A ninguém?
- Não pode dizer a ela. Como eu disse, os ghayas de sombras buscam frases específicas. Quase não conseguem vislumbrar ações, pois estão muito focados nos sussurros. São treinados para ficarem dias inteiros no escuro, os olhos bem fechados, apenas ouvindo. Seus sentidos são atraídos para as frases que buscam. Quantas declarações de amor e pedidos de casamento acontecem em Adij Alim todos os dias? Eles ouvem todos... Mas estão em busca das palavras certas para as pessoas certas. Não conseguem guardar tudo o que ouvem. Uma vez que escutam um camponês se declarando para a sua amada, no instante seguinte aquilo já foi descartado de sua mente. As frases proibidas de Hannah não são as únicas que buscam, é claro. Por isso, é uma técnica muito delicada e falha. Alguns acreditam que não faz sentido colocar ghayas nesse tipo de treinamento e, por muitos anos, a Ilha não teve qualquer ghaya de sombras... Mas, atualmente, temos alguns... Justamente por causa de Yan. Sabemos que Yan tem um ghaya de sombras.
- Então... Está dizendo que eu se eu disser algo errado a Hannah, eu posso nos expor? Ainda mais?
- Sim, Meu Raj... Seus pais e os pais de Hannah sabiam disso. Posso mostrar algo ao senhor?
- É claro – concordou Noa, já oferecendo os pulsos para Serena.
Antes de pegá-los, ela fez uma observação: - Desde que o senhor era apenas um menino, Merab sabia que seu coração pertenceria a Hannah. Mesmo se não tivessem sido atacados, a sua união teria acontecido com muita cautela. Merab sabia que, a partir do momento em que percebessem a ligação de Hannah com o senhor, os outros clãs ficariam na defensiva. Se tivessem superado a ameaça dos filhos de Babakur, haveria ainda uma ameaça dos próprios clãs.
Serena pegou seus pulsos com delicadeza e, logo, Noa se viu novamente em Palacianos, nos jardins que contornavam o Palácio. Ao lado do irmão e da irmã, ele plantava a sua muda de laranjeira.
Estamos no dia de Bahija, percebeu.
Assim que se ergueu, com as mãos sujas de terra, avistou a menina que caminhava na praia, batendo as mãos no vestido branco. Seus olhares se cruzaram por um momento e ela lhe ofereceu um aceno discreto, quase tímido.
Foi assim durante todo o verão, ele se ouviu pensar. Hannah parecia mais quieta, mais reservada. Ele a pegava olhando na sua direção, mas logo abaixava o rosto, como se pudesse esconder que o observava.
Parecia constrangida, como alguém que tenta guardar um segredo. Noa sentiu a sua própria intenção de ir até ela. Queria saber qual era o segredo, o que ela tentava esconder dele e, talvez... Insistir mais uma vez para que fosse para Shailaja, para que não passasse tantos meses sem vê-la... A cada ano que voltava para o verão em Palacianos, ele a encontrava mais crescida, mais bonita. Era inegavelmente uma mulher agora, apesar da baixa estatura e das curvas delicadas. Havia se tornado a mulher mais linda que conhecia e ele não queria se afastar mais uma vez... Mas Naomi correu na direção da água, puxando-a pela saia e logo as duas entravam no mar, molhando as vestes, os cabelos e as joias de ranis que usavam.
- Naomi! Agora, você vai ter que tomar outro banho antes do almoço – gritou sua mãe, irritada.
O coração de Noa deu um salto diante da visão da sua mãe, uma versão mais velha que ele jamais tinha visto... Buscou por seu pai e o encontrou no final da praia em uma discussão acalorada com Ammiel.
- Noa – chamou uma voz rouca e doce. Ele se virou. A Rana Merab o aguardava. – Caminhe comigo, por gentileza.
Ele caminhou ao seu lado, aguardando o que aquela mulher tão misteriosa diria, mas ela permaneceu em silêncio durante todo o trajeto de volta para o Palácio. Quando seus pés descalços tocaram o chão frio, ele percebeu que todos os outros estavam logo atrás deles.
- Naomi e Niall, já pro banho, vamos almoçar em breve! A família inteira estará nos aguardando, pelos deuses! – ralhou Agnes.
- Também preciso de um banho – murmurou Hannah, seguindo os outros. Então, ela hesitou por um momento e se virou para ele, o rosto corado pelos raios do dia: - O senhor também vai subir?
Noa percebeu que estava pronto para dizer que sim, que a acompanharia até o segundo andar, mas a mão de Azarias pousou no seu ombro: - Não, Mani. Como pode notar, Noa não entrou na água como vocês...
- Ah... Certo. – Ela se virou, subindo a escadaria clara com passos apressados.
- Precisamos conversar, meu filho – anunciou Azarias, a barba grisalha falhando em esconder as rugas de preocupação em volta dos seus lábios crispados.
Os quatro soberanos olhavam para ele, atentos, e Noa se sentiu em uma emboscada enquanto era guiado para um escritório claro e amplo, com uma vista deslumbrante para a praia. Quando o pai fechou a porta, ele questionou: - Do que se trata isso?
Merab foi a primeira a falar: - Mani me procurou ontem. Como sabe, ela já tem 17 anos, perdeu dois anos de Shailaja, porque não quis atender...
- Ela já deixou bem claro que não precisa atender, é uma Maël – disse Noa, repetindo as palavras que Hannah jogara para ele tantas vezes.
- Ela mudou de ideia, agora. Partirá para Shailaja em algumas semanas.
- O quê? – Noa sentiu que seu coração se acelerava, seus lábios se abriam em um sorriso, que logo conteve, constrangido por expressar seus sentimentos tão claramente. – É uma excelente notícia.
Ele aguardou por alguns instantes, esperando alguma orientação ou ao menos uma continuação da conversa, mas como nem seus pais, nem os Maël falaram nada, apenas completou: - Cuidarei para que seja bem-recebida.
- Meu filho – Agnes se aproximou, os olhos azuis bondosos e aflitos. – Sabemos sobre o seu sentimento.
- É o ano da Cerimônia – completou seu pai.
Noa olhou de um para o outro, incerto. Ele era tão óbvio assim?
Mas então, seu olhar encontrou o de Merab e seus maiores temores se confirmaram.
É claro que eles sabem.
Merab sabe de tudo.
Pelos deuses, seria muito pedir o mínimo de privacidade?
Afrouxou o primeiro botão do seu colete, o calor de Palacianos o atingindo em cheio pela primeira vez naquele dia.
- Há quanto tempo sabem? – questionou Noa, se perguntando quando teria se entregado.
Seria por causa dos seus pedidos, nos últimos dois anos, de que Hannah frequentasse Shailaja? Seria por causa dos inúmeros convites – a maioria recusada por ela – de que dançasse com ele nos bailes? Seria pelas vezes em que, por mais que já fosse uma mulher de 17 anos, ele a levava para o quarto quando adormecia no salão? Seria pelas tâmaras que comprava pra ela sempre que ia ao vilarejo? Seria somente pelo modo como a olhava?
- Sabemos há 17 anos – revelou Merab, casualmente.
Ele os observou em choque por alguns instantes, até que todos riram.
- Dezessete anos? Hannah tem 17 anos...
- Sabemos desde que ela nasceu, Noa. Desde que você a visitou pela primeira vez... – explicou Merab, docemente.
Ele se apoiou no parapeito da janela, sem entender. O que estavam dizendo? Ele sempre amara Hannah. A proximidade dos pais, a amizade desde a infância, mas... Somente há dois anos ele percebera que era algo mais, algo que ele não sentia por mais ninguém. Então, como eles poderiam saber há mais tempo?
Antes mesmo dele?
A confusão dominava seus pensamentos, mas a tensão no olhar de Ammiel o despertou. Engoliu em seco diante do semblante sisudo do Raj, algo incomum em um homem tão descontraído.
- Me perdoem. Estou... Um pouco confuso. Não esperava ter que falar sobre isso tão cedo... – ele respirou profundamente, tomando coragem para dizer a verdade. Afinal, ele seria um kral. E Hannah seria a rana de Palacianos. E ali bem à sua frente estavam as quatro pessoas mais poderosas de toda Adij Alim. O peso de suas coroas e suas responsabilidades eram sufocantes naquele escritório encalorado, mas eram pessoas que sempre o amaram e confiavam no seu julgamento. Resolveu que seria sincero. – Pai, sei que tenho um compromisso com a Cerimônia. Não pretendo fugir das minhas obrigações. Sei também que ela... Sei também que vocês não compreendem o casamento dessa forma – completou, virando-se para os Maël. - E, Ammiel, Merab, eu jamais... Hannah não me vê dessa forma. Cuidarei dela em Shailaja. Admito que tenho um sentimento forte por ela. Mas sei que não sou uma opção na sua cabeça e...
- Noa, meu filho, pare – interveio Agnes, levantando a mão e colocando sob o seu peito. – Pelos deuses, Merab, olhe como você o assustou.
Azarias soltou uma gargalhada e foi acompanhado por Ammiel.
- Pelo jeito, não fomos muito sutis – concluiu Merab, com um olhar ameaçador para o marido, que logo fechou a cara. – Perdoe a gravidade como trouxemos esse assunto, Noa. Ninguém está aqui para ameaçá-lo ou podá-lo. Não se trata disso. Apenas precisamos que você entenda o perigo dessa situação. Hannah é muito jovem ainda, não entende os próprios sentimentos... Está começando a compreendê-los melhor. No entanto, quando ela reconhecer o que sente... Estaremos todos ameaçados. E há certas coisas que não podem ser ditas. Não em voz alta.
- O que Merab está dizendo, meu filho, é que você tem a nossa benção para agir como quiser – continuou Azarias. – Estamos aguardando esse momento há muitos anos, Noa.
- Mas... A Cerimônia... Hannah não pode...
- Pode, sim – cortou Azarias. – Ela pode e irá participar. Há centenas de anos, os clãs tentam engajar um Maël na Cerimônia... No entanto, vocês precisam ser muito sutis. Sabe quantos kaals e rajas desejam se casar com a rani Maël? O seu sentimento é sincero, mas o deles não é. Hannah será a joia mais cobiçada de Shailaja a partir do momento em que pisar na fortaleza. Esses poucos meses até a Cerimônia serão uma corrida pela sua mão.
- Mani é meu bem mais precioso, Noa – começou Ammiel, dando um passo à frente, os pés descalços sobre o tapete colorido. – Quando ela me disse que não gostaria de ir para Shailaja, eu me senti aliviado... No entanto, percebi que nos últimos anos ela se sentia sozinha aqui e na Ilha... Não me surpreendi quando ela expressou o desejo de ir. Idealmente, seria melhor se ela não fosse em um ano de Cerimônia, mas... Não tive coragem de segurá-la por mais um ano. Nós poderíamos chamá-la e alertá-la como estamos fazendo com você, mas... Não queremos interferir nos sentimentos que ela ainda está descobrindo...
- Descobrindo? Sentimentos por...? – questionou Noa, buscando o rosto de Merab.
- Hannah compreende que você será um Kral, Noa. Ela entende o seu compromisso com a Cerimônia. Ela sempre viu Shailaja como uma corte cheia de mulheres disputando a sua atenção. Por isso, nunca quis atender... Não queria se sentir como uma dessas mulheres, mas, agora, algo mudou...
- Algo mudou em relação a mim? A nós? – insistiu Noa, mas o sorriso discreto de Merab indicou que ela não diria mais nada. Uma fagulha de esperança dançou no seu estômago.
Hannah não foi a Shailaja antes, porque não queria ver outras mulheres disputando por mim... Seria por ciúmes?
- Você tem uma escolha a fazer, filho – anunciou Azarias. – Verá Hannah todos os dias, mas preciso que compreenda que não poderá, de forma alguma, expressar seu sentimento de forma explícita. Ninguém deve perceber. Se os outros clãs anteciparem essa união, podemos ser atacados antes que ela aconteça. Consegue compreender isso?
- Sim, mas... Faltam sete meses para a Cerimônia. Hannah não me vê dessa forma ainda, eu...
- Você pode tentar. Se ela quiser participar da Cerimônia, Noa, terá nossos corações em acordo – confirmou Ammiel, pousando seus olhos claros como os raios de Amandeep sobre ele. Ali estava o Raj daquelas terras e ele lhe oferecia, oficialmente, a sua benção. Noa afrouxou mais um botão do colete. Deveria se sentir aliviado, feliz, mas o peso daquela responsabilidade tirou seu ar.
- Estão dizendo que... Aprovam? Eu poderia cortejar Hannah? Estão me dando carta branca?
- Discretamente, sim – concordou Ammiel.
- Discretamente, como? – questionou Noa, percebendo pela tensão entre seus pais que havia mais a ser dito.
- Merab, meu amor... Acho que seria melhor se você explicasse... – pediu o Raj.
- Sabe como usamos ghayas de sombras para espionar nossos inimigos, Noa. Acreditamos que eles usam o mesmo artifício para nos espionar. Eles procuram por frases específicas. Há coisas que, se você disser a Hannah, seus sussurros serão levados pelos ventos até os ouvidos mais experientes.
- O que não posso dizer? – perguntou Noa, prático.
De fora da visão, ele pode compreender que aquele Noa que ele assistia conhecia muito bem o papel de um ghaya de sombras, assim como os dons de Merab. Não era um ignorante como ele fora por tantos anos.
- Jamais declare seu amor. Não peça a sua mão diretamente, não peça que ela participe da Cerimônia – orientou Merab, de forma prática.
- Como posso cortejá-la dessa forma? Devo surpreendê-la com meu pleito no dia da Cerimônia? Eu jamais a encurralaria...
- Você precisa se assegurar de que ela o ama, sem dizer o que sente, meu filho – explicou Agnes. – Quando fizer a proposta, ela vai aceitá-lo, está no seu Destino.
- Isso me parece... – ele passou as mãos pelos cabelos, exasperado. – Uma loucura.
- Há outro caminho também... – admitiu Merab, inclinando a cabeça para o lado. – Mas vai contar com muito autocontrole.
- Qual a alternativa?
- São sete meses até a Cerimônia... Você poderia tratá-la com indiferença até lá, se afastar o quanto conseguir, se manter no seu papel de irmão do seu melhor amigo... Assim, ganharíamos tempo. Ganharíamos dois anos até a próxima Cerimônia... Você teria mais tempo para cortejá-la sem pressa...
Noa tentou organizar as informações.
- Tenho duas opções. Ou garanto sua mão em sete meses sem expressar meus sentimentos ou a trato com indiferença por sete meses e ganho dois anos.
- Sinto muito que tenha que ser dessa forma, mas... Entenda que estamos em risco. Com certeza, você conhece a profecia do maior de todos os clãs – observou Merab.
- Sim, já ouvi, é claro, mas... Vocês sempre negaram. Sempre afirmaram que não passava de um devaneio bobo e que Hannah se casaria com um jardineiro, ou um padeiro, ou um outro palaciano de sua escolha...
- Então, meu caro Noa... – Ammiel abriu os braços e um sorriso: - essa é a hora em que admitimos que mentimos... Talvez um pouquinho... Apenas com a intenção de protegê-lo, isso com certeza. Esses velhos colocaram muitos empecilhos na sua vida agora, não foi mesmo, meu jovem? Ah, Azarias, passe o licor! Essa é uma ocasião para se comemorar!
- É verdade, meu amigo – concordou seu pai, servindo uma dose de licor de laranjeira em cada copinho pequeno. – O Raj está lhe dando a sua benção, meu filho. É uma grande honra, apesar de ele ser um senhor pequeno!
- Azarias! – ralhou Agnes.
- E enquanto os jovens se divertem em Shailaja, os velhos podem... Fazer apostas? – questionou o Kral.
- Ora, não abuse, Azarias, Mani é minha filha!
- Eu aposto em quatro meses! – declarou Merab, pegando o seu copo de licor. – Acho que em quatro meses, ela estará pronta.
- Ah, Merab, já conversamos sobre isso, meu amor – reclamou Ammiel, contrariado. – Você não pode sair apostando primeiro, ninguém vai contra o seu palpite...
- Eu pego cinco meses! – declarou Agnes.
- Três! Confio no meu garoto – disse Azarias, batendo o copo na janela.
- Ah, vocês não prestam, estão apenas pegando os meses mais próximos do palpite de Merab... Bem, eu vou dar a Hannah os sete meses... Acho que você, Noa, só vai saber se conseguiu na véspera da Cerimônia...
- E se eu falhar? Ela se casará com outro?
- Ora, você não pode esperar que eu lhe dê todas as respostas, não é mesmo, Noa? Qual a graça nisso? – questionou Merab.
- Basta dizer que, se você falhar... Se os clãs suspeitarem do seu envolvimento e a proposta não for selada nessa Cerimônia, então teremos dois anos muito conturbados à nossa frente... – declarou seu pai, olhando-o com seriedade. Depois, virou o licor de uma só vez e encheu novamente a pequena taça. Ofereceu uma segunda a ele, que Noa pegou com desconfiança.
- Um brinde à nossa família – declarou Ammiel. – Que Noa tenha a coragem de Bahadur e a sensibilidade de Ayman nessa caminhada. Que Bahija acompanhe seus passos e que, em alguns meses, nós estejamos de volta aqui, comemorando essa união.
- Ammiel, você está deixando Noa encabulado – resmungou Merab.
- É bom ele ir se acostumando, Merab, é bom ele ir se acostumando... Sempre sonhei em ter um filho e estou ansioso por chamá-lo assim, Noa. Se o seu pai me permitir, é claro.
- Com prazer! – declarou Azarias, feliz, enquanto todos brindavam e bebiam.
Alguns instantes depois, Naomi bateu à porta para informar que a família já aguardava no salão principal para o almoço do dia de Bahija. Ela olhou para eles desconfiada, antes de sair correndo. Os mais velhos a seguiram e Noa parou por um instante, se apoiando no parapeito para respirar.
Sem que esperasse, recebera a benção do pai da mulher que amava. Mas a sua tarefa que antes parecia impossível, agora parecia ainda mais difícil. Como fazer Hannah enxergá-lo como um potencial marido sem poder expressar seus sentimentos? Sem poder pedi-la em casamento?
Sua cabeça ainda girava com a confusão de orientações, felicitações e abraços quando saiu do escritório. O gosto doce do licor incomodava em sua garganta e ele decidiu que precisava de uma água, antes de encarar a tropa de familiares que estavam em Palacianos para o dia de Bahija. Assim que entrou nas cozinhas, encontrou Dona Zezé, saindo com uma travessa cheia de batatas douradas.
- Meu raja, que bom vê-lo! Se também está aqui para roubar quitutes, saiba que a outra ladra está lá no final...
Com a correria para o serviço do almoço na sala de preparação, a cozinha estava vazia e Noa logo avistou Hannah, ao lado de uma bandeja cheia de tâmaras recheadas. Ela engoliu apressadamente, os olhos levemente arregalados por vê-lo ali. Noa se serviu de um copo de água e foi até ela.
- O que faz aqui?
Ela mordeu o lábio e olhou para baixo, visivelmente constrangida por ser pega no flagra.
- Estava faminta... E ainda temos que cumprimentar todos os parentes antes de comer...
Os cabelos ainda estavam molhados e ela usava um leve vestido branco, com bordados azuis que desciam pela saia fluída. Ela se apoiou na grande mesa cheia de travessas e Noa se aproximou um pouco mais, com a desculpa de apoiar o copo ao seu lado.
- Então... Ouvi dizer que a senhorita tem uma novidade...
- Ah – Hannah revirou os olhos. – Meus pais são uns fofoqueiros. Estava pensando que, talvez, eu pudesse ir esse ano...
- Talvez? Por que talvez?
- Caso não seja um incômodo... Sei que tem todos os quartos planejados e, bem, vocês partirão em alguns dias e eu não avisei com antecedência...
- Você não precisa de antecedência. Tenho um quarto separado para você desde que fez 15 anos.
- O quê? – sussurrou Hannah, erguendo os olhos para ele. Mas logo balançou o rosto, como se não acreditasse em suas palavras. – Certo... Bem, então nos veremos em algumas semanas, Sr. Rariff.
- Semanas? Por que tanto tempo?
- Eu... Tenho alguns compromissos para atender na Ilha e também aqui... É claro que concordei com eles antes de tomar essa decisão... Agora não posso voltar atrás, mas estarei livre para ir em algumas semanas.
- Ouvi dizer que aguarda a visita do Kaal Zagorski... – comentou Noa, engolindo o ressentimento. – É por causa dele que me deixará esperando?
- Esperando? – Hannah riu, desconsiderando essa provocação. – O Kral Zagorski vem visitar meu pai e, enfim... Confirmei a Aadan que estaria aqui...
- "Aadan"? São íntimos, então?
Ela ergueu o queixo, indignada.
- O que está insinuando?
- Acaba de chamá-lo de Aadan, faz promessas a ele...
- Não se trata de intimidade... Apenas não estou acostumada aos tratamentos formais da sua corte...
- Ah, sei... Não está acostumada a tratamentos formais, mas... Não falha em me chamar de Sr. Rariff, enquanto chama Zagorski pelo primeiro nome...
- É claro, o senhor não dá a chance para que ninguém se esqueça da sua importância, não é mesmo, Grande Kaal?
- Está me chamando de...
- Pomposo. Abusado. Arrogante. Devo continuar?
- Ora, esqueça o que eu disse mais cedo. Farei questão de garantir aposentos mais adequados para a sua estadia conosco... – disse Noa, adotando um tom ameaçador. Ele apoiou as mãos na mesa, encurralando-a.
Ela gargalhou, pegando uma tâmara entre os dedos. Mordeu metade depois de perguntar: - Vai me colocar em uma masmorra, Grande Kaal?
- Praticamente – sussurrou Noa, roubando a outra metade da tâmara que ela comia e colocando de uma vez na boca.
- Ei! – protestou Hannah. – O que quis dizer com isso?
- Como é uma pequena ladra, precisa ser adequadamente vigiada...
- Não pode estar falando sério sobre as masmorras!
- É claro que não... Eu mesmo a vigiarei, bem de perto – declarou ele, se aproximando o suficiente para sentir a fragrância doce e suave que emanava dos seus cabelos. Ele se inclinou um pouco para completar, como se contasse um segredo: - Estará no quarto bem ao lado do meu... E saberei se um certo kaal Aadan ou qualquer outro ousar visitá-la sob as minhas vistas...
- Ora, mas isso me parece muito injusto... O senhor pode receber visitas, mas eu devo permanecer sem nenhuma?
- Acha que recebo visitas? – perguntou Noa, abandonando o tom de brincadeira. Pegando seu queixo com delicadeza, ele ergueu o rosto dela, de forma que ela não pudesse desviar o olhar.
- Não me interessa o que faz nos seus aposentos, na sua fortaleza... – sussurrou Mani, mas seus olhos ardiam em um misto de medo e apreensão.
- Vai descobrir que não recebo – decretou Noa. Ela piscou como se tentasse desvendar alguma verdade no seu rosto. – Não recebo visitas, Mani. Não verá um entra e sai do meu quarto... Caso seja isso o que a preocupa.
- O que o senhor faz não é da minha conta... – rebateu a menina, orgulhosa.
- Também não me verá cortejando ninguém – garantiu, achando que isso iria confortá-la, mas ela soltou uma risada nervosa.
- É claro que não...
- O que isso quer dizer?
- Sei bem que não precisa fazê-lo. Não sou cega.
- Do que está falando?
- Dos bailes, recepções, jantares... Há uma horda de mulheres que o perseguem.
- Isso a incomoda?
- Não vejo por que eu teria qualquer coisa a ver com isso...
- Curioso... – Noa se inclinou um pouco pra frente, pegando uma outra tâmara logo atrás dela. Estavam tão próximos que ele sentia a respiração de Mani contra o seu peito. – Eu diria que a senhorita parece um pouco incomodada...
- Apenas não acho que o senhor precise de mais incentivo para o seu ego...
- Eu discordo – sussurrou Noa, mordendo a tâmara. – Vai descobrir que falta um último incentivo para o meu ego, Mani. O único que importa. Posso retribuir o que roubei?
- O que roub...
Ele pressionou a fruta escura contra os lábios rosados e ela os entreabriu com uma expressão divertida. Noa ouviu o assobio de Dona Zezé no fundo do corredor.
Preciso me afastar dela.
- Posso acompanhá-la até o almoço? – perguntou oferecendo a mão a ela, o copo d'água esquecido na mesa.
Dona Zezé entrou no momento em que Hannah aceitou sua mão e ele envolveu seus dedos macios entre os seus. O certo seria colocar a mão dela sobre o seu braço, como um verdadeiro nobre que guia uma dama, mas ele não quis saber disso. Entrelaçou seus dedos aos dela e os dois caminharam lado a lado pelo corredor que saía das cozinhas, até o amplo salão principal. Quando chegaram em frente ao salão onde acontecia o almoço, Hannah olhou para baixo, arrumando o vestido, e sorriu.
- Perdeu os sapatos, Sr. Rariff?
Noa encarou os pés descalços por um breve instante. Entre ser encurralado no escritório pelos seus pais e encontrar Hannah na cozinha, não havia sobrado tempo para subir até o seu quarto.
- Seu pai está descalço – observou Noa. – E, se não me engano... Grande parte dos seus tios e até sua prima... – ele estreitou os olhos, mirando a multidão de Maëls que se cumprimentava animada.
- Ora, mas o senhor não é um palaciano... Muito menos um Maël...
Ele ergueu uma sobrancelha, oferecendo a ela um sorriso enviesado: - Mas estou acompanhado de uma, o que me deixa livre para agir como um filho de Anandi... Não concorda?
- Ora, o senhor não está me acompanhando!
- Ah, não? Então, como estamos entrando juntos? – questionou Noa, o que fez com que ela puxasse a mão imediatamente. Ele sorriu, se divertindo por ter feito Hannah corar. Uma tia portando uma bengala com a cabeça de Aamadu na ponta já se aproximava, os olhos miúdos brilhando diante da rani Maël. Noa percebeu que era o momento de se afastar para cumprimentar seus próprios familiares. Por isso, se aproximou do ouvido dela e apenas disse: - Estou ansioso para acompanhá-la em outros eventos, em Shailaja. Não me deixe esperando muito.
Em seu quarto em Adij Rariff, Serena soltou seus pulsos e Noa se viu de volta, o cheiro de Hannah ainda na sua memória, assim como o gosto da tâmara que acabara de experimentar.
- Pelo jeito, não seria fácil de qualquer forma... – comentou, pensando nas orientações e pedidos de Merab.
Serena assentiu, levantando-se. Ela cambaleou por um instante, precisando se segurar na cadeira, o que fez Noa se erguer imediatamente, confirmando se ela estava bem.
- Ah, sim, apenas me levantei muito rápido...
- Gastou muita energia para me mostrar isso – constatou.
- Queria que o senhor entendesse que não é um capricho meu... É uma precaução que seria tomada pelos seus pais e pelos pais de Hannah... E confesso que, sabendo que o senhor a encontraria em seguida, eu não tive coragem de interromper a visão mais cedo. Achei que o senhor gostaria de ver...
- Eu gostei – admitiu Noa. – Obrigado. E... Não usarei nenhuma frase proibida. Tem minha palavra.
Olhos azuis o encararam e Noa percebeu que Serena balançava a cabeça levemente, desconfiada. Achou que ela dividiria algo com ele, alguma visão em que ele era flagrado berrando todas as frases proibidas para quem quisesse ouvir, mas ela se contentou em fazer uma reverência e sair, deixando-o sozinho no escritório para se recordar daquelas memórias novas e impossíveis, onde ele e Hannah teriam pouco tempo, mas ainda assim, mais tempo do que agora.
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