II 2.2 Gaita de nucas
- Qayid – chamou Gaetana, entrando no salão circular do Conselho. Apesar dos inúmeros assentos, apenas duas pessoas estavam ali: Raoul e seu ghaya, um homem de pele tão negra quanto a do Qayid, com um farto cabelo crespo que rodeava a sua cabeça. Era Aberash, o vidente mais experiente da Ilha. Porém, não tão poderoso, pensou Gaetana, lembrando-se da jovem Serena.
Abe se encontrava no chão, as mãos espalmadas no piso de madeira. Seus olhos estavam desfocados e Raoul aguardava pacientemente ao seu lado. Ele olhou em sua direção e fez um sinal para que Gaetana se aproximasse. Ela sabia que Raoul pedia a Abe, com regularidade, que tentasse ver os próximos assuntos do Conselho. Assim, poderia se antecipar. Como era uma consulta muito ampla, raramente rendia resultados. Mas, toda semana, Abe sentia a energia do salão no intuito de descobrir algo.
Bem mais jovem que Raoul, Aberash também era de Hiwot, terra natal dos Yezekael, e seu nome era uma homenagem a um antigo Kral Afia. Dizia-se na Ilha que fora Merab, quando ainda era uma criança, que dissera a Raoul que seu ghaya estava a caminho. Um ghaya tão abençoado por Alim que guiará o caminho do haya mais poderoso da Ilha, ela previra. Quando Aberash nasceu, a Ilha fez uma visita à família, que ficara imensamente surpresa com a previsão, mas concordara que ele seria treinado pelos ghayas da Ilha. E ele não decepcionara a previsão de Merab.
Mesmo não tendo uma visão tão clara quanto a de Serena, a experiência de Aberash o tornava capaz de separar, sem erros, as interferências em suas visões, interpretando corretamente qualquer indício enviado por Vïc Alim. Gaetana observou o homem forte ajoelhado à sua frente. Suas mãos começaram a tremer, assim como suas pálpebras e ela soube que ele retornaria em breve.
De repente, respirando fundo como alguém que estivesse há minutos sem ar, ele voltou, piscando. Apoiou as mãos no chão e, com esforço, se levantou. Sua testa estava suada e ele arfava, mas abriu um largo sorriso branco.
- Gaetana – cumprimentou. – Temos muito o que conversar.
- Venham – chamou Raoul, caminhando pelo salão até a extremidade oposta da entrada principal. Ele percorreu um comprido corredor até chegar a uma saleta escura, cheia de livros antigos, empilhados a esmo no chão. Raoul atravessou também essa saleta, contornando os livros e encontrando uma segunda porta.
A segunda porta deu em um outro corredor, menor e abafado, que tinha apenas uma outra porta, que estava fechada. Raoul tirou uma pesada corrente do bolso e, nela, procurou uma pequena chave. Depois que destrancou, ele pediu que Gaetana e Abe entrassem.
- Cuidado com os degraus – orientou.
Os dois obedeceram, se equilibrando para descer os curtos degraus e se viram em um ambiente escuro e úmido. Raoul fechou a porta atrás de si, levando toda a luz. Ficaram no breu por alguns momentos, até que Raoul soprou em sua mão direita e dezenas de tochas de acenderam por uma longa galeria de pedra. Suas paredes estavam cobertas por espadas, arcos, lanças e machados. Eram armas e armas a perder de vista.
- O que estamos fazendo aqui, Qayid? – perguntou Gaetana.
- Precisamos de uma arma. Pequena, discreta, mas letal. Algo que ela possa levar.
- Mani? Mas ela não deveria estar aqui? Para isso?
- Sim, ela vai escolher. Mas preciso de uma arma que lhe dê coragem, Gaetana. Um objeto que tenha história, que a faça se lembrar de quem ela é. E, principalmente, que a lembre por que precisa se defender.
- Entendo...
- Você a conhece bem e Abe pode sentir o objeto. Por isso estamos aqui. Mas também tenho outro motivo.
Gaetana aguardou, observando o rosto severo do Qayid, contra a luz das tochas. Suas rugas ficavam cada vez mais profundas e, a cada ano, mais cabelos brancos compunham sua longa trança. Como se lesse seus pensamentos, ele disse: - Não vou viver para sempre, Gaetana.
- Não diga isso, Qayid.
- Com a deserção de Luc, não teremos um outro Qayid tão cedo.
- Damien... – começou Gaetana.
- Damien não é páreo para Luc – cortou Raoul. – Além disso, o ama como a um irmão. Temos um problema com a traição de Luc. Todos os nossos hayas são muito ligados a ele. Além disso, precisamos dele.
- Mas ele é um khayin, Raoul. Ele não trouxe a lâmina para nós. Ele traiu Damien, o abandonou a sua própria sorte!
- Eu sei. Aberash, por favor – pediu Raoul.
- Gaetana, eu vejo Luc aqui na Ilha. No futuro. Eu vejo Luc entre nós.
- Mas... Isso é impossível. Ele nos abandonou. Ninguém sabe onde está.
- Precisamos falar sobre a estaca e o que ela afetou. A lâmina dos taús – disse Aberash.
- Gaetana, pedi a Abe que contasse a você tudo o que sabemos sobre os passos de Yan. E sobre Luc. Tudo, está bem? Assim, caso algo aconteça, caso Luc retorne, você terá todas as informações. Mas posso dizer agora que, baseado nas visões de Abe, não vou iniciar uma caçada a Luc.
- Abe... – chamou Gaetana, começando a ficar nervosa. – O que você viu?
- Vou começar do início – anunciou ele. – Antes de enviarmos as quatro para Shailaja, previmos um ataque ao herdeiro. Até aquele momento ainda não sabíamos o motivo do ataque. Hoje, com as informações que temos, podemos assumir que Yan errou. Sabemos que Yan não tem certeza sobre qual seria o herdeiro primogênito destinado a Hannah Maël. Segundo a lenda dos Maël, o portal seria aberto por amor. Yan acredita que, ameaçando o herdeiro, Mani o protegeria a tal ponto que liberaria sua energia, abrindo o portal. Ela o faria por amor, para salvar o homem que ama. Então, Yan precisa garantir duas coisas antes de atacar: a primeira é que Mani reconhece esse homem e o ama. A segunda é que ele seja ameaçado em sua presença. Mas ele não sabe que homem é esse.
- Aí entra a estaca dos taús – disse Raoul.
- Sim, a estaca marcou a pele de Noa Rariff, o candidato número um a ser o predestinado. Todos sabiam como as famílias eram unidas quando Merab teve a previsão de que Mani participaria da Cerimônia. Quem sabe como as visões funcionam logo pode imaginar que houve um encontro entre eles. E o mais provável é que esse encontro tenha sido com um Rariff, dado à proximidade das famílias. Mas isso não descarta os outros herdeiros. No entanto, atacar um Rariff é uma missão arriscada até mesmo para Yan. Por isso, assim que soube que Noa havia sido marcado pela estaca, ele correu atrás desse objeto. Através do toque do objeto, seu ghaya veria o destino de Rariff.
- No entanto, isso não funcionou. Como sabe, existem inúmeras lendas sobre objetos deixados pelos deuses – lembrou Raoul. – Mas nem todas as lendas são apenas lendas.
- E a estaca é um desses objetos?
- Sim. – Uma voz rouca viajou do fundo da galeria. Gaetana não conseguia ver quem estava lá, mas ouviu o tintilar de várias pulseiras e soube imediatamente de quem se tratava.
- Prossiga, Aberash – ordenou o Qayid.
- Acreditamos que a estaca é um objeto deixado pelos deuses. No lugar de oferecer o destino dos homens que marcaram sua pele, a lâmina dos taús ofereceu uma profecia.
- "Marcado pela minha dor, herdeiro virou guerreiro. Mate o filho da lua branca ou o portal jamais se abrirá para você" – repetiu Gaetana. – Eu li a carta com a visão de Serena.
- Isso mesmo. Yan interpretou essa profecia como uma confirmação de que o herdeiro é Noa Rariff. E de que ele precisa matá-lo – explicou Raoul.
- Antes, o ghaya poderia ter dito que era preciso apenas ameaçar, apenas tentar matar ou fazer algo que desencadeasse a fúria da Maël para que o portal fosse aberto. Mas graças a essa estaca, agora Yan pensa que deve matar Rariff – disse Aberash.
- Porém, está errado. Essa profecia não diz respeito a Rariff. E, acredito, nem mesmo a Hannah. É uma profecia sobre Ariel – afirmou Raoul. – E Luc, em vez de trazer essa estaca para nós, ele a trouxe para ela.
- Sim – confirmou a voz rouca, e uma gargalhada ecoou pela galeria. – Pelo jeito, andou perdendo mais aliados, Raoul! – riu a velha.
- Cale-se, Yollanda! – rugiu Raoul, irritado.
Ela se calou, mas Gaetana ouviu o tintilar das pulseiras como um chocalho e seus pés se arrastando no chão. O barulho foi ficando cada vez mais próximo, até que ela pôde distinguir seus longos cabelos prateados e suas pupilas opacas. Se sentiu apreensiva diante da rara visão da velha Yollanda, a mais antiga ghaya da Ilha. Dizia-se que, apesar da idade avançada, jamais morreria. Sabia tanto sobre os segredos dos deuses que nem eles a queriam por perto. Yollanda era, sem dúvidas, mais experiente que Aberash e tinha uma visão mais ampla e clara que a de Serena, mas há anos havia rompido com o Qayid, recusando-se a cumprir suas ordens.
- Alguns homens nasceram para serem khayins, malditos traidores! – ela cuspiu. – Já outros, nasceram para serem traídos...
- Já chega, Yollanda, ou vou arrancar sua língua – berrou Raoul, caminhando a passos largos até ela. – Me dê a estaca. Agora!
- Luc não levou a lâmina? – perguntou Gaetana, surpresa.
- Oh, não, querida Gaetana. Posso ser uma pobre velha, mas ainda tenho meus truques. Esse não é um objeto para ficar nas mãos de jovens enciumados...
- Yollanda... – começou Raoul, seu tom de advertência tornando quase palpável o perigo em sua voz.
- ... me pergunto se já posso colocá-lo em outra categoria, Raoul... Ou talvez agora devesse dizer que é apenas um velho enciumado...
- Me dê isso, sua maldita!
Diante dessa ordem, a velha riu sonoramente, fazendo as pulseiras pularem como fileiras de pequenos sinos.
- Há um preço, Raoul – anunciou a velha, sua voz assumindo um tom sério. - Quando a hora chegar, vou chamar a menina. E você não a impedirá de me ver.
- Não, Yollanda. Nem pensar, está me ouvindo? – repetiu Raoul, furioso.
- Merab confiava em mim, Raoul. Ammiel confiava em mim – cantarolou Yollanda. - Afinal, você quer a estaca ou não?
Os minutos se arrastaram, silenciosos, enquanto os dois se encaravam na escuridão. Gaetana se perguntou que embate era aquele, o que Yollanda fizera para irritá-lo a esse ponto e o que Raoul fizera em troca para que ela o abandonasse como Qyaid. Gaetana permaneceu ali, quieta, até ser pega pela lembrança incômoda de que Yollanda era tão poderosa que dizia-se ser capaz até de ler os pensamentos ao seu redor. Que ela não leia os meus, pensou Gaetana, constrangida por, mesmo depois de tantos anos, ainda ter medo daquela velha.
- Quero – admitiu Raoul, por fim. – Me dê.
- Tome aqui, Qayid – disse ela, fazendo uma falsa reverência sobre a sua bengala e arrastando os cabelos no chão. Depois, ergueu a estaca na mão livre e a passou para Raoul, que a pegou com raiva.
Ela se virou e começou, lentamente, a refazer a sua marcha para o final da galeria. Iria para a sua caverna, pensou Gaetana. Raoul murmurou algumas coisas para si mesmo, enquanto alisava a estaca, analisando-a entre seus dedos. Depois, logo a passou para Aberash.
- Abe, faça o que conseguir com isso, mas acredito que toda informação que poderia nos dar já foi extraída. Agora, vamos escolher uma arma. Lembrem-se: pequena, discreta, letal.
Eles iam começar a analisar as armas penduradas nas paredes, quando o som de algo rolando começou a percorrer a galeria até encontrar os pés de Raoul. Um pequeno tubo negro todo trabalhado com inscrições douradas bateu contra as suas botas e quicou na pedra.
A voz de Yollanda retumbou contra as pedras: - Uma gaita de nucas. Ammiel era um mestre quando a usava.
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