I 1.3 Bahijista
Tirando o cheiro de mato queimado que dominava a fortaleza, o Salão Mavi não parecia muito diferente, avaliou Serena, do alto da escadaria. Lá embaixo, ela viu Joshua e Liam, perto do bar. Os dois estavam próximos, definitivamente um na companhia do outro, mas não conversavam, nem mesmo se olhavam. O clima entre os dois não melhorara. Do outro lado do salão, Daria e Mabel cochichavam. Elas eram umas das poucas pessoas em Shailaja que não acreditaram no conto absurdo de que Hannah havia tentado dizimar o exército de Rariff. Pelo contrário, elas a idolatravam, mas Serena confiava que eram espertas o bastante para jamais transparecerem isso.
Ela ouviu passos vindos do corredor e se surpreendeu ao ver o Kaal Emeka Afia deixando os aposentos de Christine.
- Srta. Hyanchinthe – ele cumprimentou, enquanto passava por ela.
- Kaal – ela respondeu.
O Kaal Afia era um homem alto, elegante e um grande guerreiro. Desde a batalha, muitos foram os relatos sobre seus feitos no campo contra os taús. Mas, como Rariff, Emeka não era dado a bajulações. Por isso, no Salão Mavi, o maior herói havia sido Liam Roparzh, que não cansava de descrever todos os lances, golpes e mortes que protagonizara durante a luta. Serena estava prestes a descer os degraus quando Damien entrou no salão acompanhado de Rariff. Ela observou enquanto os dois cumprimentavam Liam e Joshua e se sentavam em sua companhia.
Era estranho ter Damien ali, tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante. Ela sentiu a mágoa fazendo sua garganta doer quando se lembrou de seu último encontro. Ela sentira tanto a sua falta, ansiava tanto pelo seu abraço, pelo seu beijo... Mas Damien se recusava a tocá-la. De repente, seus olhos violetas vagaram pelo salão e encontraram os dela. Ela o encarou, ressentida, pensando em como ele conseguia ficar ali, ouvindo aqueles absurdos de Liam, enquanto ela o queria em sua cama.
Revoltada, desistiu de descer e se dirigiu ao quarto de Christine.
- Precisa me ajudar, Chris – disse ela, entrando num rompante e fechando a porta atrás de si.
- Ora, ora, a grande Serena precisa de ajuda? – ironizou a outra, jogando um penhoar roxo por cima dos ombros nus.
- Sim, me ajude ou vou assassinar Damien – declarou Serena, irritada, enquanto se servia de uma taça de vinho.
- Serena, tenha paciência – disse Chris, sentando-se à mesa com ela.
- Ah! Isso é fácil falar, quando se está satisfeita! Emeka acaba de sair daqui e você tem a coragem de me pedir paciência.
- Serena, sua tarada! Está bisbilhotando minha vida?
- Ora, claro que não, Christine! Eu cruzei com ele no corredor.
- Ah bem, você me assustou!
- Mas se eu continuar nessa situação, quem sabe vou recorrer a esse artifício...
- Bom, eu admiro a sua boa vontade, mas sabe que Damien não trairá os costumes de seu povo.
- O que me revolta é que Damien não vive com seu povo há anos! Não faz o menor sentido esse zelo em relação ao casamento.
- Sabe que ele não o faz para impressionar seu povo, ele segue esse costume, porque é o que acredita, Serena. Pense nas horas que ele dorme por noite. Não vive com os bahijistas há mais de uma década, mas não consegue dormir mais do que quatro horas. Estou errada?
Serena refletiu sobre aquilo, enquanto bebia um gole de vinho. Damien nascera em uma comunidade bahijista, uma seita que foi proibida assim como todos os cultos a um deus único. Não é que ele não fosse um fiel à tríade, como todos nas terras dos 12 clãs, porém aquelas crenças que cultuavam um deus acima de outros começaram a ser banidas antes mesmo da ascensão de Ür ao trono. Elas eram consideradas perigosas, pois desequilibravam a ordem perfeita dos deuses.
Os taús cultuavam Vïc Babakur acima de tudo e, pela sua devoção a esse deus, infligiam dor em suas vítimas e até neles mesmos. Alimnistas radicais, determinados a colher toda a informação deixada por Vïc Alim, se perdiam de suas próprias vidas, esquecendo-se da família e até de comer ou beber. Os brahumistas acreditavam que nada lhes poderia ser negado e tomavam tudo à força, sem se importar com as consequências. Quando todas as crenças eram permitidas, esses pensamentos radicais eram frequentes causadores de desordem, mortes, estupros e atos de violência. Aos poucos, as crenças que elevavam um deus acima dos outros foram sendo amenizadas, desacreditas e proibidas. Com a ascensão de Ür, essas crenças foram tachadas de ocultismo e seus fiéis foram combatidos. Principalmente, os mais fervorosos entre eles, os aymanistas.
Damien havia sido criado com os pais, bahijistas, devotos de Vashï Bahija, em uma comunidade de colhedores de lírios de Amadam. A exposição prolongada à flor fazia com que todos nesse povo dormissem sob o seu efeito sonífero. Por isso, quando estava fora do campo do lírio de Amadam, Damien mal dormia, já que seu corpo se acostumara com o poder intoxicante do lírio.
Entre os bahijistas, a família era a maior de todas as graças. Não era o poder, nem a vitória em uma batalha, nem o desejo, nem mesmo o amor. Um bahijista vivia para construir uma família que honrasse a Vashï Bahija, um lar cheio e alegre. Mas os bahijistas acreditavam que uma nova família só poderia ser construída a partir de outra família e, por isso, os pais deveriam autorizar o casamento entre seus filhos.
- Isso tudo é muito contraditório, Christine. Damien diz que a Ilha é minha família, que não devo me importar com o descaso de meus pais. Ao mesmo tempo, insiste que só pode se casar comigo com a autorização deles. Não faz o menor sentido!
- Quem sabe ele deveria pedir sua mão à Raoul – riu Chris.
- E eu nem faço questão desse casamento! Eu só quero estar com ele – bufou Serena, cada vez mais irritada.
- Bom, sabe que ele não vai se render facilmente. Sabe como Damien é cabeça dura. Mas acredito que você consiga convencê-lo. Com jeitinho...
- Não sou você para ter jeitinho, Chris. Me sinto ridícula, como uma garota boba implorando por amor.
- Ora, não pense assim, sabe que ele te ama.
- Ah, eu sei, mas não consigo explicar...
- Bem, eu consigo. Te entendo perfeitamente. Sei que é seu homem, mas não sou cega. Eu lamberia aquela barriga branquela na primeira oportunidade que ele me desse...
- Christine!
- ... Mas já que ele não vai tomar a iniciativa, vamos cuidar para que você resolva isso. Termine essa taça de vinho.
- Mas está cheia...
- Isso mesmo, pode virar. Vou te ensinar uns truques – disse Chris, determinada.
***
- Acho que nunca vi uma pessoa tão estabanada – reclamou Leila, enquanto pegava mais uma caneca da água leitosa e jogava nas costas de Hannah.
- Ai – reclamou Mani, se encolhendo na banheira.
- Agora não adianta reclamar, está toda arranhada. Pelos deuses!
- Como ousa dizer que sou estabanada?
- Ora, faz muito bonito nosbailes da Ilha, mas olha aqui esse desastre! Veio se arrastando de Shailaja até aqui?
- Enfrentei algumas dificuldades, só isso... – disse Hannah, descansando a cabeça nos joelhos nus.
Gaetana entrou com uma toalha e sentou-se em um banquinho.
- E então?
- É um desastre completo. Está toda ferida. Está fraca...
- Eu me sinto bem...
- Está fraca, sim. Quase não sinto sua energia! Chegou aqui exausta, encharcada, coberta de sangue... Vou logo dizendo que não garanto que esses arranhões não vão ficar marcados. Vou fazer o meu melhor...
- Tenho certeza de que vai conseguir... – disse Mani.
- Já dei a ela o antídoto do disfarce, Gaetana. Não vai poder usar outro por um tempo.
- O quê? – perguntou Hannah. – Mas Leila! Preciso voltar! Preciso de outro disfarce.
- A senhorita deveria ter pensado nisso antes. Não conseguiria manter outro disfarce. Já disse: está muito fraca. Usou sua energia toda. Sabe que precisa estar forte para segurar um disfarce.
- Mas sou forte!
- Mani, não insista. Para se defender e manter o disfarce, quase morreu chegando aqui. Precisa de toda a sua energia e não vou te dar outro – determinou Leila, puxando os cabelos de Mani para trás. – Deixe-me ver a barriga.
Resignada, Hannah se deitou na banheira, apoiando a cabeça, enquanto Leila passava uma toalha úmida nas suas feridas.
- Não sei se voltar é uma boa ideia, Mani – disse Gaetana. Hannah olhou para a mestra, sentada ao lado da janela. Do lado de fora, se via a praia da Ilha, um cavalo solto pastando calmamente no início da grama. Uma senhora de cabelos brancos presos em um coque passava com uma cesta cheia de roupas, conversando alegremente com uma jovem de vestido leve. O clima na Ilha era de paz e Hannah sentiu uma vontade imensa de concordar. Poderia ficar ali, ver suas pupilas, ensinar às crianças os primeiros passos de dança. Mas era impossível.
- Ele está em perigo, Gaetana.
- Christine e Damien estão lá.
- Ele precisa de mim. Sabe disso.
- Eu não sei... O que Serena disse?
- Nada... Não achei que fosse ter que desertar Shailaja dessa forma, achei que teríamos tempo para pensar.
- Bem, devemos aguardar a orientação de um ghaya.
- Não preciso de um ghaya para me dizer que devo proteger meu herdeiro.
Todas ficaram caladas, e Hannah fechou os olhos. A toalha que Leila passava em sua barriga produzia uma ardência leve nas feridas abertas contra a rocha. No queixo, um grande curativo tampava um corte profundo que Leila precisara costurar para fechar. Hannah ainda estava sob o efeito do disfarce, mas esperava acordar no dia seguinte na sua forma normal. Mesmo assim, essas feridas permaneceriam com ela.
- Por favor, me respondam. Onde ele está? – pediu Mani, sem coragem de abrir os olhos.
- Não faço ideia – respondeu Gaetana. – Não treina os seus homens há dias. Não se reporta a Raoul há dias. Também não sinto sua presença na Ilha.
- Eu o vi poucas vezes. Assim que chegou da primeira vez e descobriu que não estavam aqui... – Leila suspirou. – Ficou furioso e, sabe como ele é, eu me assustei. Depois, ficou uns dias sumido, mas retomou os treinamentos com Damien. Sua energia estava tão pesada, Mani. Eu tentei me aproximar, mas ele só queria ficar recluso. Logo depois, os dois partiram para Hiwot e, então, não o vi mais.
- Sei que ele voltou, porque senti sua presença na Ilha há poucos dias – confessou Gaetana.
- E Raoul? – Mani perguntou, se erguendo e encarando a mestra.
- Raoul não me conta essas coisas, Mani. Sabe muito bem.
- Ele sabe.
- Se eu senti a presença de Luc, então Raoul também sentiu. Você conhece as regras.
- Pronto, Mani. Pode se secar. Depois, vamos passar um unguento de crisântemo de Hiwot. Enquanto você estiver dormindo, vai fazer efeito. Amanhã, estará melhor – afirmou Leila, pegando a toalha com Gaetana e ajudando Hannah a se erguer.
Mani se levantou com esforço e achou por um momento que ia escorregar no fundo liso da banheira, mas as mãos de Leila a seguravam com firmeza pelos braços. Ela passou um pé por cima de um lado e depois o outro, se equilibrando como podia. Gaetana a ajudou a se secar, enquanto Leila torcia seus cabelos. Depois, já na cama, ela passou o unguento em suas feridas ardidas e as enrolou com um pano fino.
- Volto amanhã cedo para refazer tudo – anunciou Leila, antes de deixar o quarto.
Gaetana passou uma camisola leve por cima de sua cabeça. Quando estava saindo, pegou o vestido molhado e sujo que estava jogado em cima de uma cadeira. O cinto de couro caiu no chão, revelando o enorme broche de topázio âmbar, que quicou no assoalho.
- Ora, o que temos aqui? – perguntou a mestra, abaixando-se. – Que bela joia – comentou, erguendo apenas uma sobrancelha e encarando-a com um olhar curioso.
- Foi um presente – admitiu Hannah.
- Um presente... Posso perguntar de quem?
- De um homem...
- Um homem? Calma aí com essa avalanche de detalhes!
Hannah revirou os olhos, mas depois sorriu. Gaetana se aproximou e colocou o broche na sua mão.
- Quer ficar com ele? – perguntou.
- Quero sim, por favor – Hannah sentiu os olhos úmidos.
- É um belo presente – Gaetana beijou sua testa. – Agora, descanse – completou ela, atravessando o quarto e fechando a porta trás de si.
Hannah se enrolou nas cobertas, segurando o broche e sentindo a superfície lisa e perfeita do topázio entre seus dedos. Achou que fosse chorar, mas estava exausta demais até para isso.
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