Um cogumelo muito louco
Dias atuais
— Lisa Manoban.
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Jisoo fitou o quadro negro com o cenho franzido. Os óculos estava tão engordurado que mesmo na pouca luz do quarto, consegui ver as marcas de dedos na lente. O moletom era salpicado de manchas de catchup e precisava de uma lavagem urgente. Ela desenrolou o barbante vermelho e pregou em um novo ponto do quadro: Pista de Boliche.
— Ao que parece, essa foi a última vez que Rosé foi vista — disse ela.
Maneei a cabeça em concordância, chutando algumas roupas jogadas no chão do quarto. Jisoo parecia um detetive que foi expulso da polícia por não saber a hora de parar de investigar um caso, e agora sobrevivia a base de auxílio emergencial e miojo de galinha da Turma da Mônica.
Jennie se aproximou do quadro negro com o cenho franzido.
— Momo disse que viu Rosé depois disso, não foi?
Parei perto de Jisoo e nós três tombamos a cabeça para o lado, fitando o quadro cheio de ramificações em barbante vermelho e fotografias impressas em preto e branco.
Jisoo levantou a mão, pronta para pregar mais um barbante na foto de Momo, mas eu a interrompi.
— Vocês querem mesmo confiar em algo que saiu da boca da Sininho maconheira? — perguntei. — Lembram o que aconteceu da última vez?
Jisoo levantou os óculos com o dedo mindinho.
— Momo está sóbria há duas horas, Lisa.
— É um recorde — Jennie acrescentou.
Cruzei os braços, incrédula.
— Momo disse que Rosé está presa no mundo dos anjos! — rebati. — Vocês piraram de vez?
— Rosé não gostaria de ver você destratando a Momo assim. — Jisoo me olhou com censura. — Além do mais, ela está ajudando no que pode.
— Qual é? — Abri os braços. — Mandar DM's no Instagram da Xuxa não é ajudar!
Jennie nos empurrou para trás, apartando a discussão.
— Brigar não vai adiantar nada! — Ela nos fitou alternadamente, parando o olhar em mim. — E toda informação é bem vinda, Lalisa... até da Momo.
Jisoo pareceu satisfeita com a resposta de Jennie, pegou a ponta do barbante e colou em cima da foto de Momo. Aquilo era tão irreal que parecia piada, eu não sabia que estávamos desesperadas assim. Dei alguns passos para trás, ainda em choque.
— Vocês estão mesmo defendendo ela? A Momo? Estamos falando da mesma pessoa? Quer dizer, vocês se lembram do que aconteceu na última vez que Rosé confiou nela?
Jisoo e Jennie se entreolharam.
— Teoricamente, foi a avó dela a culpada por tudo — Jisoo sussurrou.
✐ ✎ ✐. . .
(Um mês antes do desaparecimento de Park Rosé)
— Confiem em mim — Rosé suplicou. — Tudo vai sair como o planejado.
Ela nos lançou um sorriso de incentivo, aquele sorriso que precede situações constrangedoras.
— A gente não conhece metade dessa festa, Rosé — Jennie rebateu, se aproximando da Park. Trocamos cochichos no corredor escuro dos alojamentos,
— Não é bem uma festa... é uma... uma reuniãozinha! — Rosé batucou os dedos uns nos outros, como uma vilã de filme infantil. — Vamos beber, colocar o papo em dia, vai ser como as nossas festas do pijama!
— Na festa do pijama não tinha tantos desconhecidos. — Cruzei os braços. — Era só nós três e nada mais, quer dizer, depois veio a Jisoo. Era só nós quatro.
Rosé bateu os pés no chão, emburrada, e o vestido de babados seguiu o movimento.
— Esse é o momento perfeito para vocês conhecerem meus novos amigos! — ela respondeu rapidamente. — Eles são legais, são super... vibes.
Franzi o cenho.
— Vibes? — Jennie e eu perguntamos em uníssono.
Rosé rolou os olhos.
— Só quero que socializem, vai ser uma reuniãozinha, não vai ter nada de mais. — Ela olhou para mim e Jennie. — Quando eu pisei na bola antes...? Por favor, não respondam!
Um leve bate-estaca e um zumbido de conversa saíam pela porta do quarto de Rosé, além da luz vermelha que escapava pelas beiradas. Fora isso, os quartos ao lado pareciam silenciosos. Massageei as têmporas, cansada.
— Tudo bem — Jennie disse por mim. — Vamos participar dessa reuniãozinha e...
Rosé soltou um gritinho afogado e a agarrou, dando beijinhos pelas bochechas de Jennie.
— Tá, tá! — Minha namorada tentou se desvencilhar do aperto. — Não vamos ficar por muito tempo, Rosé!
— Tuuudo bem! — Rosé se afastou, dando palminhas. — Sejam bem vindas ao Room Party!
Ela abriu a porta do quarto e nos empurrou para dentro.
Travei por alguns segundos, momentaneamente zonza pela luz vermelha que transformou o cômodo em uma versão mais pobre de uma casa de swing. Momo e suas roupas largas estavam na frente de uma mesinha de lanches (que, na verdade, era uma mesinha de estudos com livros usados como apoio). Ela balançava suavemente, acompanhando a batida de uma música que só tocava em sua cabeça, e quando me comprimentou em um "olá" lento demais, as diversas miçangas se mexeram junto.
Sehun estava jogado em um puff, bebendo em goladas algo fluorescente. Sana, ao contrário de Momo, se remexia loucamente, os cabelos loiros voavam para todos os lados.
Rosé arrastou Jennie na direção de três garotos sentados na cama enquanto alguns rostos conhecidos me lançaram um cumprimento tímido: Jihyo, Jeongyeon e a namorada, Nayeon. Jisoo era a DJ da festa, em frente a um notebook com diversos adesivos colados na tampa.
Me aproximei dela, observando o quarto avermelhado com um semblante confuso.
— Não ia ser uma reuniãozinha? — perguntei no ouvido de Jisoo.
Ela tirou os headfones.
— O quê!?
— Não ia ser uma reuniãozinha!? — perguntei mais alto.
— Aah! — Jisoo maneou a cabeça. — Você sabe como é a Rosé!
— Ô se eu sei... — sussurrei. Rosé ria descontroladamente agora, dando tapinhas fortes demais nas costas de Jennie. — Como anda esse lance de Plano J parte 2?
— Ela está pegando leve, nada de planos malucos... até agora, e nada de colocá-los na frente do nosso relacionamento... até agora. — Jisoo respondeu. — Acho que Rosé aprendeu da primeira vez.
— Tá, e quem são eles...? — Apontei com a cabeça para o trio onde Jennie foi arrastada. Agora, Rosé contava uma história, ela gesticulava intensamente com as mãos.
— Taehyung é o novo mascote gay. Sehun era só meio gay, mas Taehyung é super gay, então Rosé o substituiu. — Jisoo disse, no meu ouvido. — Dá pra ver Sehun morrendo de ciúmes bem ali. — Ela apontou para o ex-namorado de Jennie no seu terceiro copo fluorescente. — Taehyung é o garoto mais burro que eu já vi na vida, sentei do lado dele em metodologia ano passado e ele me perguntou como se escrevia laranja.
Jisoo arregalou os olhos, como se dissesse "dá para acreditar?" Depois, ela apontou para o segundo garoto, o mais alto dos três. Ele era musculoso e vestia preto dos pés à cabeça.
— Aquele ali é o Jungkook, é endinheirado porque o pai inventou a camisinha sabor torresmo.
Fiz cara de nojo.
— Torresmo?
— Torresmo. — Jisoo confirmou.
Okay, eu precisava de uma bebida. Peguei o copo dela e dei um longo gole.
— Aquele é o Jimin... — Jisoo prosseguiu, apontando para o garoto loiro mais baixo. Ele jogava o cabelo para trás a todo momento e as unhas estavam pintadas de vermelho. — Ele é o mal em figura de gente.
Franzi o cenho, observando-o. Ele usava roupas caras, além de estar impecavelmente maquiado. Deveria cursar moda, era a única razão para imaginá-lo pisando em uma universidade pública.
— Ele parece normal pra mim — poderei. — Talvez arrumado demais para uma reunião em um quarto de alojamento, mas normal.
— Não se engane... — Jisoo retrucou. — Ele parece um garotinho egoísta, traiçoeiro e descarado...
Maneei a cabeça, confusa.
— Eu acabei de falar que ele não parec...
Jisoo tapou a minha boca.
— Mas ele é muito, muito mais do que isso. Ele é a abelha rainha...
De repente, Nayeon e Jeongyeon apareceram do meu lado.
— Ele tem duas bolsas de pele e um carro importado prateado. — Nayeon disse, baixinho.
— Ele faz comerciais de carro. — Jeongyeon acrescentou. — Em Curitiba.
Jisoo concordou animadamente.
— Ele até conheceu a Ivete Sangalo no avião e ela disse que ele era lindo.
Olhei para as três, assustada.
— Eu já vi... já vi isso em algum lugar...
Nayeon enfiou a bandeja de salgadinhos na minha frente, sorrindo com os dentinhos avantajados.
— Come um pouquinho, você tá muuito estressada!
As três riram, mas riram de um jeito muito estranho, meio... abobalhado. Através da luz avermelhada que tomava conta do quarto, observei Sehun quieto demais e Sana dançando com uma agressividade que me assustava. Momo estava parada no mesmo lugar, conversando com a parede. Semicerrei os olhos, alguma coisa estranha estava acontecendo.
Comi um petisco, desconfiada.
— O que é isso? — perguntei.
— Receita da Rosé! — Jisoo sorriu largo, empurrando mais um petisco na minha boca. Nayeon se aproximou, sorrindo fixamente.
— Não é bom!? — ela perguntou, sem piscar.
— Hm... então... — Tossi. — Um pouco salgado...
— Come mais! — Jeongyeon me empurrou mais um. As três fecharam uma roda em torno de mim, me fitando com um sorriso maníaco.
O que estava acontecendo?
— Gente! Gente! — Rosé chamou. Respirei fundo quando as três se afastaram. — Vamos jogar verdade ou desafio!
Droga, era melhor continuar na imitação de Mean Girls.
. . .
Me sentei de pernas cruzadas no chão. No canto do quarto, as duas camas foram amontoadas uma em cima da outra para dar espaço à roda. A luz vermelha começava a fazer minha cabeça doer e todo mundo parecia meio pirado também, rindo alto demais, falando alto demais ou, no caso de Sehun e Momo, não falando nada com nada. Olhei para o copo com a bebida fluorescente na minha frente, intocável.
— Ei, amor... — chamei Jennie com um cutucão. Ela estava sentada do meu lado e conversava animadamente com Sana. — Me diz que você não tomou nada brilhante.
Ela franziu o cenho.
— Brilhante?
— É, tipo isso aqui. — Levantei o meu copo cheio da bebida verde fluorescente.
— Ah, não, não bebi! — Jennie maneou a cabeça rápido demais.
Sana se escorou nos ombros dela, estava tão suada que o rosto brilhava na luz vermelha.
— Bebemos só água! — Sana falou. — Não é demais, Jennie?
— ÉÉÉÉÉÉ! — Jennie concordou, gritando.
As duas começaram a rir.
— Já comeu essa coisinha aqui, Laaaalisa!? — Ela pegou um petisco que Nayeon estava distribuindo. — É uma deliiiicia!
Dei uma mordida no petisco, olhando alternadamente para ele e para Jennie. As pupilas dela estavam tão grandes que os olhos pareciam duas bolotas pretas.
— Por que você está prolongando as vogais? — perguntei.
— Eu não seeei — ela respondeu, rindo.
Afastei o meu copo.
— Só não tome nada brilhante, tem alguma coisa estranha na bebida — disse de boca cheia.
Os petiscos eram mesmo uma delícia.
Jennie balançou a cabeça em afirmação, como uma criança obediente, e fez um biquinho fofo. Dei um selinho rápido em seus lábios e voltamos a prestar atenção em Rosé. Ela se ajoelhou no meio da roda, segurando uma garrafa vazia de Skol Beats.
— Shiiiiu! — Rosé bateu o indicador nos próprios lábios, mas acertou o nariz. Ela riu abobalhada. — A brincadeira é o seguinte! Ô... Ô Jimin! presta atenção aqui! Retocou o loiro, Sana? O quê? Eu não preciso retocar o meu, querida... Genética, já ouviu falar? Onde eu estava? Hahaha gente! Quero mandar um beijo pro meu pai, pras minhas duas melhores amigas, Lisa e Jennie, e pra minha namorada, Jisoo, esse... esse pedaço de mal caminho aqui... — Ela caminhou de joelhos até Jisoo e lhe deu um beijo molhado. Um seio ameaçou sair do decote, mas Rosé puxou o vestido para cima com o riso.
Não era só ela que estava doida.
Balancei as mãos na frente do rosto e vi vinte dedos ao invés de dez.
Fudeu.
— Onde eu estava...? — Rosé perguntou, gargalhando.
— AH BRINCADEEEIRA DEIRA DEIRA! — Jennie berrou do meu lado.
— A brincadeira deira deira! — E todos repetiram, como papagaios.
Rosé apaziguou o falatório.
— Prestem atenção nas regras! A bundinha da garrafa é quem pergunta e a boquinha da garrafa...
— É o Tchan! — Taehyung gritou.
— Um beijo pra Sheila Cavalo, a loira do Tchan! — Rosé soltou um beijo no ar.
— Carvalho! — Alguém da roda corrigiu.
Passei as mãos pelo rosto, os vinte dedos se arrastaram pela minha pele.
— Mas que merda tá acontecendo...? — murmurei, confusa. — Eu só bebi um gole da bebida...
Nayeon passou com mais uma leva de petiscos, todos encheram a boca. Jennie comeu uns seis deles e sobrou apenas um para mim. Mastiguei calmamente, observando a primeira rodada do jogo com os olhos semicerrados... que sono, bocejei, mexendo os dedos adicionais. Não seria ruim ter mais dez dedos, agora eu poderia colocar anéis de coco em todos eles... vinte anéis de coco... sorri. Jennie vai gostar dos dedos adicionais, dois anelares e dois indicadores... sorri maliciosa. Interessante...
Olhei para cima, vários pares de olhos me fitavam.
— O que foi? — perguntei.
— Verdade ou desafio, Lisa? — Sehun indagou. A boquinha da garrafa estava apontada para mim e a bundinha para ele.
Pisquei algumas vezes, tentando enxergá-lo melhor.
— Desafio — balbuciei.
— Desafio você a sete minutos no paraíso... — Ele levou a língua ao céu da boca. — Com a Rosé.
Demorei alguns segundos para entender as implicações do desafio, mas quando entendi, meu queixo caiu. Sehun sorriu triunfante para Rosé. Jennie parecia uma estátua de cera. Jisoo catava piolho nos cabelos de Momo, ela sequer ouviu o que Sehun disse.
— Não vale! — Jennie gritou.
— Não vale mesmo! — Rosé confirmou. — Escolhe outro desafio, Sehun!
— Porquê? — O tal do Jimin perguntou. — Não tem nada de mais nesse desafio...
— São só sete minutos! — Nayeon protestou.
— Vão lá! É só uma brincadeira! — Alguém me deu batidinhas nas costas, me erguendo. — Andem logo!
Segurei a ânsia de vômito. Como eu ia explicar que não era "só uma brincadeira"? Essa brincadeira me custou anos de retaliações e Jennie acreditando que eu era secretamente apaixonada por Rosé. O Sete Minutos no Paraíso não era só uma brincadeira, era um carma, uma maldição na minha vida.
Meus vinte dedos tremeram.
— É só uma brincadeira — Jennie disse. Fitei-a com os olhos arregalados, mas ela deu de ombros. — O que foi? Eu confio em vocês, é só uma brincadeira, certo?
Jisoo continuava catando piolho no cabelo de Momo.
— Tudo bem, é rapidinho. — Me levantei, tropeçando no ar ao caminhar até o banheiro.
Jennie me deu um joinha, parecia tranquila, o que era estranho por si só. Ela estava mesmo tranquila ou queria que eu achasse que ela estava tranquila? Iria me atormentar pelos próximos oito anos das nossas vidas ou teria transcendido e não ligava para isso? Entrei no banheiro, um pequeno cubículo que mal cabia uma pessoa, com um box de duas polegadas de comprimento e um vaso sanitário versão mini. Rosé veio logo atrás.
A porta foi fechada atrás de nós.
— Okay... — Me escorei no azulejo frio, feliz por ver outra paleta de cores que não fosse o vermelho do quarto. A luz estava apagada, mas Rosé era visível, a cabeça baixa e os cabelos claros tampando seu rosto. — Ei, tá tudo bem aí...?
Ela levantou a cabeça de supetão, assustada.
— Eu estou no meio de um flashback... e não é nada-
Rosé se dobrou ao meio, soltando uns tremeliques, e vomitou no meu pé.
Fechei os olhos com força.
— Eu não acredito! — gritei.
— Shhiuuu! — Ela tapou a minha boca com a mão suja de vomito. — Eles podem ouvir!
Abri os olhos, alarmada.
— Eles quem, Rosé?
Senti meu estômago se remexer, enojado, e virei a cabeça para o lado. O cheiro de bile e suco gástrico começou a impregnar-se no banheiro e a leve umidade da mão suja de Rosé na minha boca me fez prender a respiração. Estávamos perto demais, essa era outra questão, e agora fedíamos a vômito e suor.
Rosé olhou fixamente para a parede atrás de mim.
— Você não está vendo? — ela perguntou, baixinho. — Eles estão aqui.
Minha respiração era rápida, ecoava pelos azulejos. Fechei os olhos novamente, entrelaçando os dedos. Tudo estava silencioso demais, apenas uma gota de água pingava na pia em um baque constante.
— Merda... merda, merda... — balbuciei. — Qual é aquela música do Padre Marcelo Rossi? Argh, merda... o mundo pode até... pode até fazer você chorar, mas Deus te quer... ele te quer...
— Cala a boca, Lisa!
— Cala a boca você, Rosé! — retruquei.
Ela jogou o bafo fedorento em mim.
— Acho que entrei em pane. Não tem ninguém além de nós e o meu vômito... — Rosé arrotou. — Eu juro!
Olhei para baixo, meu vans estava coberto por uma gosma esbranquiçada.
— Eu vomitei só um pouquinho... — Ela acrescentou.
— Rosé, porra! Não foi pouquinho, não! — lamuriei.
— Foi pouquinho sim! — ela insistiu.
— É porque não foi no seu pé! — respondi raivosa.
Rosé estalou a língua no céu da boca, como se eu estivesse fazendo drama, e levantou a minha blusa.
— Eu vou te limpar.
Dei um tapa na mão dela.
— Você pirou?
— O que foi? Não sujou a blusa? — Rosé se ajoelhou na minha frente. — Foi a calça?
Eu a puxei para cima novamente.
— Nada de posições estranhas, okay? Tudo que acontecer aqui pode e será usado contra nós duas. Nada de tirar a minha roupa, nada de frases em duplo sentido. Quando sairmos daqui, eu me limpo.
Rosé maneou a cabeça em afirmação, passando a mão na boca. Ela estava péssima, a maquiagem escorria pelas bochechas e os lábios estavam manchados de vermelho. Se isso aqui fosse Euphoria, Rosé seria a Rue. Estiquei o pescoço até me ver no espelho, eu não usava maquiagem, portanto não havia nada escorrendo, mas o suor fazia o meu rosto brilhar e bolsas enegrecidas rodeavam os meus olhos.
— Desculpa, acho que comi demais... — Rose murmurou, apertando a barriga. — Eu não queria estragar as coisas... porque eu vivo estragando as coisas?
Suspirei.
— Ei, tudo bem, você não estragou nada... ainda.
Rosé se sustentou nos meus ombros.
— Acho que foi os petiscos... — Ela arrotou na minha cara. — Receita da avó da Momo. Ela é uma velhinha legal, meio doida igual a neta, e tem um quintal enorme, tem muita babosa. É bom pro cabelo, quer ver? — Rosé enfiou uma mecha de cabelo na minha cara.
Dei outro tapa na mão dela.
— O que tinha nesses petiscos? — perguntei.
Rosé fez um biquinho.
— Cogumelo... acho.
— Cogumelo? — perguntei.
— É... cogumelo da horta da avó de Momo. — Rosé explicou. — Ela é uma senhorinha tão gente boa... me deu muuuita babosa. Meu cabelo tá brilhando, olha só!
O ar saiu de uma só vez das minhas narinas.
Rosé se endireitou, confusa.
— O que foi? Meu cabelo tá feio?
De repente a lucidez voltou, e eu consegui perceber o que estava acontecendo.
— Rosé, você drogou todo mundo da festa com cogumelo alucinógeno! — Bati os pés no chão, sentindo os respingos de vômito atingir a minha perna. — Esse tempo todo eu achei que alguém tivesse batizado as bebidas, quando na verdade era o maldito petisco! — Balancei as mãos na frente de Rosé. — É por isso que eu tenho 20 dedos!
Ela tapou a boca com as mãos, achei que fosse vomitar nos meus pés de novo, mas era apenas choque. Rosé deu um passo para trás, batendo com as costas na porta do banheiro.
— Lisa, não são vinte dedos... São trinta.
— O quê...? — Balancei os dedos de novo.
Meus dedos nasciam como galhos retorcidos, um em cima do outro. Minha visão ficou turva, meio trêmula.
— AAAAAH! — berrei.
— AAAAAAAH! — Rosé berrou de volta. — A gente vai morrer! — Ela começou a esmurrar a porta. — A gente vai morrer! Alguém me tira daqui! Já deu sete minutos! A gente vai morreeer!
— Rosé! — Tentei agarrá-la por trás, mas ela estava gritando e se debatendo, batendo na porta e se estapeando loucamente. — Rosé, a gente vai viver! Se acalme! Dá pra fazer muita coisa com trinta dedos!
Ela se virou para mim no momento em que a porta se abriu.
Rosé caiu para fora do banheiro e me levou junto. Não houve dor na queda, porque eu caí em um lugar macio demais, no meio dos peitos dela para ser precisa. Levantei a cabeça em um arqueijo, procurando ar.
— O que...? — Jennie deu alguns passos para trás, em choque.
A roda inteira nos encarava e minha namorada estava no centro.
Embaixo de mim, Rosé estava desacordada (ou fingindo estar desacordada). Os cabelos esparramados ao redor pareciam fitas loiras para os lados e os braços estavam abertos como o Cristo Redentor. Voltei a fitar as pupilas dilatadas de Jennie, à minha frente.
— Amor... — Engoli o seco. — Não é isso que você está pensando.
— A gente vai morrer...? — Momo perguntou atrás de Jennie.
— Não, a gente só tá muito chapado — respondi, saindo de cima de Rosé.
. . .
Limpei mais uma leva de lágrimas de Jennie com um lenço de papel.
— O leãozinho tá tããão chateado com-com-com-comigo. — Ela soluçava. — P-p-proerd é... é a s-s-solução....
— Jennie, não tem leão nenhum aqui — falei, calmamente.
— E se e-e-e-e-eu for presa? — ela perguntou em um biquinho. — O ar-artigo dezesseis do có-có-código penal diz...
Enrolei a toalha em volta dos seus ombros, apertando-a contra mim.
— Você não vai ser presa, amor. Tá tudo bem. — Dei um beijo na testa dela. — O efeito vai passar logo logo, ok?
Ela balançou a cabeça para cima e para baixo, soluçando, e voltou a me abraçar. Um vento frio e bem vindo farfalhou os meus cabelos. O corredor do quarto de Rosé estava calmo para uma quinta à noite, piso de concreto queimado, paredes descascando e avisos em murais verdes. Todos no quarto pegaram bad trip.
Pelo menos voltei a ter dez dedos nas mãos.
A porta do quarto abriu e um garoto saiu de lá, pela descrição de Jisoo, era Jungkook. Ele parou na nossa frente, meio sem jeito, e me deu um copo com um liquido branco. Cheirei a borda.
— É leite com açúcar, corta a onda do cogumelo — ele disse.
Tomei um gole, era mesmo leite com açúcar. Sentei Jennie no chão e pedi que tomasse tudo. Ela tomou em goladas e me entregou o copo com um bigode de leite.
— É n-n-normal ficar com sooono? — perguntou, bocejando.
Olhei para Jungkook, esperando uma resposta.
— É sim, o leite corta o efeito e dá muito sono — ele respondeu com um sorriso de incentivo. Jennie sorriu também, já com os olhos fechados, e em menos de um minuto depois um leve ressonar encheu o corredor. Ela já estava dormindo.
— Isso não corta efeito nenhum, não é? — perguntei, devolvendo-lhe o copo.
Jungkook riu, coçando a cabeleira castanha.
— Não, é só placebo — respondeu ele. — Mas funciona, lá dentro todo mundo dormiu. Aliás, prazer, Jungkook.
— Prazer, sou a...
— Lisa — completou ele. — Eu sei. Rosé me falou de vocês... me falou muito de vocês, na verdade.
Nos encaramos sem jeito.
— Obrigada pela ajuda, mas acho melhor irmos. — Pigarreei. — Jennie precisa dormir em uma cama, ela deve acordar mal amanhã.
Jungkook enfiou as mãos no bolso da jaqueta.
— Também estou indo embora e... só um minuto. — Ele abriu a porta do quarto e entrou.
Enquanto isso, levantei Jennie da melhor maneira que pude e passei o seu braço ao redor dos meus ombros, segurando-a pela cintura. Jungkook voltou logo depois, também carregando alguém. Era o menino loiro que Jisoo disse ser o Jimin.
— Vamos. — Ele me chamou com um menear de cabeça, com o menino pendurado em si. — Precisa de ajuda aí?
— Não, dá pra levar — respondi.
— Okay.
Andamos lado a lado em um silêncio confortável. Jennie não pesava tanto, mas os pés dela se embolavam hora ou outra. Jungkook era mais rápido que eu, mas me esperava pacientemente. O menino loiro babava em seus ombros.
— Seu namorado parece legal — disse.
O barulho do tênis de Jungkook freando no chão preencheu o corredor. Segurei um riso.
— Ele não é meu namorado! — A voz dele ficou fina no fim da sentença.
Óbvio que não era, mas foi engraçado vê-lo negar com tanta rapidez. Entendi porque era divertido quando Rosé fazia isso comigo e Jennie.
— Oh, não é? — Fingi surpresa.
Ele maneou veementemente com a cabeça.
— Não somos nem amigos, talvez conhecidos, inimigos com certeza, mas nada de amigos... nem de.... namorados. — Ele fez uma cara de nojo ao dizer a última palavra. — Eu sou hetero, gosto de mulher, então não rolaria nada entre mim e o loiro de farmácia nem em mil anos, nem se eu gostasse de homem, o que obviamente eu não gosto ainda...
— Ainda? — perguntei, fingindo confusão.
Ele se engasgou.
— Quis dizer... nunca.
— Ah, sim. — Sorri.
Voltamos a andar. Jungkook parecia mais atrapalhado agora, dava alguns tropeções no meio do caminho. O corredor terminou em uma escadaria de duas vias, o corrimão no meio nos ajudaria a descer com as nossas duas bagagens humanas. Ele desceu primeiro.
— Eu não entendi uma coisa... — Voltei ao assunto, vendo-o carregar o menino como se fosse uma mochila leve demais. — Ele é o seu inimigo, você pode deixá-lo dormir no corredor, não precisa levá-lo até o quarto. Seria uma boa vingança.
Jimin escorreu pelas costas de Jungkook como sabão e caiu no meio da escada, todo desconjuntado, um braço em cima da cabeça e as pernas entrelaçadas.
— Ah merda... — Jungkook resmungou. — Seria muito... — Ele fez força e, no fim, conseguiu colocar o garoto sobre os ombros novamente. — Seria muito pior, Jimin é do tipo vingativo. Cortei uma mecha do cabelo dele e no dia seguinte ele colocou pasta de dente no meu shampoo, meu cabelo caiu inteiro. Fiquei careca. Se eu o deixasse no corredor, ele provavelmente cortaria uma das minhas bolas e transformaria em souvenir.
Gargalhei, descendo as escadas com Jennie.
— Isso me lembrou de quando coloquei um acionador no bolo de aniversário de Jennie, explodiu bem na cara dela.... foi hilário. O ruim é que eu não sabia que ela era alérgica a coco.
Jungkook riu. Ele já estava no fim das escadarias, me esperando.
— Eu escrevi cem cartas pro "De volta para a minha terra", e a equipe do Gugu apareceu na porta do Jimin, achando que ele queria voltar para Itaquaquecetuba.
Segurei Jennie mais firmemente, com medo da risada me deixar sem forças para segurá-la.
— Eu tenho um conselho ótimo: pegue algo que ele use muito, esconda e veja a mágica acontecer! — exclamei, alcançando-o no fim das escadas.
— Wow! — Jungkook me fitou como se eu fosse o Mestre dos Magos. — Eu nunca pensei nisso!
Sorri em incentivo.
— Quando eu escondi a escova de dentes de Jennie, ela pensou que tinham invadido o nosso quarto e roubado a escova para coletar dados pro Governo Bolsonaro. Foi hilário.
Ele gargalhou.
— E quanto aos apelidos?
— Bom, tenho uma lista deles. — admiti. — Hoje eu não os uso mais, mas se quiser...
— Eu quero! — Ele respondeu rápido. — Quero muito!
Sorrimos, cúmplices.
— Okay, vou pedir a Rosé para te entregar.
Parei em frente a porta do meu quarto e tirei a chave do bolso. Alguns alunos estavam no pátio, estudando, conversando, deitados na grama tomando banho de Lua ou enrolando um fumo suspeito. Jungkook entendeu silenciosamente que aquela era uma despedida.
— Até mais e.... — Ele coçou a cabeça, ou tentou, já que precisava manter as duas mãos ocupadas. — Quanto a Rosé, eu não quero parecer chato ou nada do tipo...
Franzi o cenho.
— Aconteceu alguma coisa com ela?
— Não, nada! É só que... bom, ela sente falta de vocês — confessou Jungkook. — Ela está feliz porque finalmente estão juntas e tudo mais, mas ela se sente excluída. Vocês meio que se esqueceram dela.
A chave caiu no chão em um tilintar baixo, pisquei algumas vezes, processando a informação. Eu estava pronta para negar, afinal, Jennie e eu víamos Rosé com frequência, mas ao fazer esforço para me lembrar dessas ocasiões, não consegui. Havia tempo que Jennie e eu não conversávamos com Rosé, conversar de verdade, sentar e perguntar como ela estava.
— Eu... eu não tinha percebido... — admiti, envergonhada. — Obrigada, Jungkook.
Ele me deu um sorriso.
— Não precisa agradecer.
Observei-o ir embora enquanto a culpa crescia no meu peito.
✐ ✎ ✐. . .
Jennie me fitou, em choque.
— Espera... Jungkook disse com todas as letras que Rosé estava se sentindo excluída e você não me contou!?
Abri e fechei a boca, sem saber o que responder.
— Eu esqueci, sei lá!
Jennie jogou os cabelos para trás em um bufar impaciente e cambaleou até a cama desforrada. Jisoo ficou parada na frente do quadro de investigações como uma estátua, o óculos havia escorrido até a ponta do nariz, mas ela não os levantou. Na verdade, Jisoo demorou a desprender os olhos do chão para me fitar.
— Acho que não foi só vocês que a excluíram — ela sussurrou, baixinho.
No mesmo momento, a porta se abriu em um clique e uma garota parou no batente. Ela segurava dois copos de café e um jaleco jogado em seus ombros.
Jisoo passou a palma suada na calça, nervosa.
— Meninas, essa é a Seulgi, minha... — Ela pigarreou. — Minha ex namorada.
Seulgi sorriu, fechando a porta do quarto com o pé.
— E sua nova colega de quarto!
Jennie e eu nos encaramos, surpresa.
Muita coisa aconteceu nesse último mês.
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