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Lambança de tiros

O palhaço só contava a verdade. Contava sobre a verdadeira forma do ser humano, não o nojento ou mesmo o endeusado, a forma menos sublime e impactante de seu ser. Não aquele que à muitas eras achava-se centro daquele mundo pequeno, tão pequeno que nem tão pouco fazia diferença ao amigo sol. E nem mesmo daquele decrépito combalido, entregue às larvas de um Brasil perdido.

O palhaço esbravejou uma careta risonha naquele imenso palco, às crianças apertavam seu nariz felizes, sem saber que a expressão do palhaço era de assombra autenticidade. O semblante de espanto era tirado de amigos antigos, maioria estudantes comuns, que não lambiam os pés regime. Logo, para o estado, inimigos.

Com os dedos juntos e tremidos, o homem maquilhado apontou para si, fazendo um barulho gutural. O que imitava com sua voz? Era um estampido de escopeta?

— Poxa! Será que está morto? — perguntou um menor rapaz na humilde platéia, observava atento a peça caricata do homem. Não o conhecia, e tão pouco queria. Só sabia que o grupo de crianças presentes precisavam ver, atentas, a aquele espetáculo.
O palhaço sofrido, chorava baixo no chão, atuando uma peça escrita de ponto a ponto por ele mesmo. Outro homem, meio velho igual ao palhaço apareceu ao palco. O mesmo ajudou o outro a se levantar daquele chão. Ouve-se palmas e um silêncio se alastrou. Forá um minuto longo de remanso, que dentro daquele pobre intérprete parecia uma algazarra.

— A atuação forá tão intensa que afetou os participantes! — pensou alto um deles.

Um dos bancos, vazio e triste, encostava-se na parede. Coberto com uma faixa vermelha - assim como vários outros ao fundo da platéia - as letras diziam em legível enxergar, "não iremos nos esquecer."

A garotada saiu às avessas quando o teatro Acabou. Todos os adultos estarrecidos e agraciados com a peça, sorriram de leve, já haviam plantado a mensagem para a próxima geração.

Sozinho o palhaço, sentou-se na cadeira com a faixa vermelha. Se chamava Juliano o bom homem, não tinha mais aonde morar e nem como se sustentar. Vivia quase como um mendigo na rua, mas não se entregava totalmente a fatalidade da situação.

Havia tido três filhos em sua vida, um era estudante, foi para Portugal quando bem novo. Outro engraxate. E o seu mais novo, fazia cânticos no cemitério. Pequeno e morto não teve chance, a bala da polícia lhe atravessou o crânio.

Choroso, Juliano passou os dedos entre a madeira da antiga cadeira do seu filho. Não iria demorar muito para o palhaço ir visitá-lo, ele sabia. Fora ensinado a não ser impaciente pela mulher, que uma vez a dois anos atrás o fez companhia numa manifestação. Antes de ser levada aos porões de um Brasil aos pedaços.

O efêmero homem, então saiu a passos longos de sua cadeira. A porta maior que si não evidenciava quem estava do outro lado. Ao abrir, um pequeno grupo de crianças entrou sem pedir licença, todas brilhantes com cor de marfim apertavam a mão do senhorzinho.

— Estamos te esperando seu Juliano!
O rosto era idêntico ao de seu filho perdido. Sem pensar o abraçou, mesmo sabendo que a ilusão não duraria muito mais.

Minutos depois a viagem ao outro mundo chegou, como era esperado, apesar de demorada.

De mãos atadas com um camundongo estressado, algumas horas no porão sendo eletrocutado, e uma bela surra até seu corpo não aguentar mais, foram suficientes. Ao fim sangrava, sua roupa branca estava tingida com a cor do nariz que usava em suas peças. Estava totalmente quebrado, mas apesar do mesmo estivesse acontecendo com o Brasil, o velho homem ainda acreditava.
Ele era o mundo, e no mundo não havia regras para ele.

Fechou os olhos, para nunca mais abrir. E quando sua alma resplandeceu no paraíso, os sonidos angelicais de milhares de crianças ecoaram aos ventos, como pequenas cartas de despedidas ao sol.

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