Capítulo VI (Luvell)
É realmente muito perigoso acreditar nas pessoas. Eu não acredito há anos!
Agatha Christie
Luvell estaciona o carro na esquina da Rua Santine, dali consegue ver a casa. Ela sabe que o avião chegará dentro de uma hora, analisou os voos que vêm de Curitiba e um em especial apresenta grande probabilidade de ter sido escolhido por Lokine. Casas geminadas apertam-se por toda rua. Luvell saboreia rosquinhas, influenciada pelas séries policiais que assiste. Adora ficar de tocaia.
O portão da garagem abre-se e um carro popular branco retira-se de lá. O carro passa e Luvell vê que Tatiana e o bebê estavam nele. Reconheceu Tatiana das fotos que viu na internet.
É o momento perfeito.
Ela limpa a boca dos restos do doce e cruza a rua até a frente da casa dos Konis. Observa luzes de televisões brilhando nas janelas das casas, e o vazio da rua. Nuvens densas cobrem o céu antecipando a escuridão noturna. Um final de tarde cinzento. Uma grade alta e o portão da garagem bloqueiam toda a frente do lote, acima encontra-se uma cerca elétrica. Luvell percebe que uma das janelas está aberta, pois o vento atravessa uma discreta fresta e balança a cortina. Só precisa atravessar a grade e terá acesso ao interior da casa. Se houvesse alarme já teria disparado com o movimento da cortina. A tranca do portão na grade é do tipo tetra, mas bem popular. Ela abre sua pequena mochila. Minha cartola mágica. Olha para os lados, está com sorte, ninguém à vista. Seu conjunto de michas está lá, para aquela fechadura ela sempre utiliza uma micha de giro fácil. Já foi cadastrada como chaveiro, fez cursos e destacou-se, seu aprendizado rápido impressionou seus professores. O portão é aberto, ela entra e encosta-o, quer ter facilidade na saída. Abre uma estreita passagem na janela que seu corpo atravessa com facilidade. Adentra a casa.
Pisa num brinquedo pontiagudo. Xinga sussurrando. Coloca uma lanterna de cabeça e luvas. Guarda os estilhaços do brinquedo na mochila, não quer deixar vestígios. A luz da lanterna ajuda a elucidar o ambiente turvo. O som da casa é cheio de pequenos ruídos. Isso sempre acontece. Luvell já invadiu muitas casas, sabe que a tensão nunca muda, todos os sentidos do invasor ficam ampliados. O sofá da sala é marrom, o tecido se mostra desgastado. Fotos de Lokine tocando trompete e de músicos como Louis Armstrong, Miles Davis e Charlie Parker enfeitam uma das paredes. A televisão é 8K. Esse povo gasta tudo que tem com televisão. Perto da escada está um móvel com porta retratos e vasos com suculentas. Lá estão fotos do casal em pontos turísticos de Arborenses e no Havaí. Não devem fazer muitas viagens, essa do Havaí deve ser a mais especial. Provavelmente Lokine tem parentes por lá. Uma das fotos é mais antiga, envelhecida pelo tempo. Nela está Tatiana ao lado de um velho, ao fundo uma cachoeira. A famosa cachoeira de Arborenses que alagaram para fazer um lago de um condomínio fechado. Luvell retira a foto do porta retratos, analisa com cuidado. Acaricia o papel e geme uma melodia indígena.
Nem sempre aquela técnica dá certo. Ela não sabe com exatidão onde aprendeu aquilo. Parece que sempre soube. Sentir alguns objetos, principalmente os mais antigos, cantar para eles, lhe traz algumas intuições. Imagens tremulam correndo por sua mente, são embaralhadas. Ela vê uma floresta em chamas. Corpos indígenas espalhados no solo, sangue misturado a negritude do solo queimado. O rosto de Tatiana esbravejando em uma sala de reuniões. Caminhões carregados de gigantescos troncos. Um velho atirando na própria cabeça, o velho da foto. Luvell devolve a foto no lugar. Respira fundo, tentando se reestabelecer. Ela gosta de Tatiana, sente-se empática, estranhamente lhe vem um queimar maternal pela moça.
Entra no escritório, ainda no térreo. Liga o notebook. A senha de entrada é requerida. Luvell clica na tecla shift várias vezes, o prompt de comando surge na tela. Isso abre as portas para ela reconfigurar a senha. Ela deixa o acesso livre. Provavelmente eles acharão que o notebook ficou maluco, nem perceberão que a senha não está sendo requerida. Instala diversos programas espiões, em breve terá acesso aos e-mails e redes sociais dos suspeitos. Faz um back up de todo conteúdo do aparelho em um HD externo. Desliga o computador.
Luvell estimou o tempo de ida e volta aproximada do aeroporto. O cronômetro do sensophone acusa que faltam trinta e três minutos para o horário limite de saída. Ela parte para instalar microfones e câmeras pelos cômodos. A casa será o novo Big Brother, com certeza um reality melhor que o original. No quarto de casal Luvell coloca as mini câmeras dentro de tomadas e lustres. Terá de programar um dia para retirar aqueles objetos, pois poderão ser descobertos. São aparelhos caros que ela compra com o próprio dinheiro. Nunca teve pudor em espionar as pessoas. Gosta de ver a verdade das coisas. Tem taras por vídeos de seus espionados, adora vê-los na intimidade, no sexo ordinário, real. Nunca espalharia esses vídeos, muito menos utilizaria disso para difamar as pessoas espionadas. Tenho meus princípios éticos e eles não seguem a lei, não concordam com boa parte delas. Gosto de ver a foda dessas pessoas, mas faz parte, não sou santa, e no final tenho de descobrir os crimes, será melhor para todos.
Do armário do quarto ela retira uma caixa de papelão que estava no fundo. Muitos CDs. Cópias do álbum de Lokine: Jazz Tropical. A obra instrumental que ele gravou há anos. Pelo jeito não vendeu direito. Luvell ouviu na internet as músicas de Lokine. Assistiu vários shows disponíveis no youtube de artistas que ele acompanhou e algumas apresentações de suas músicas próprias. O talento é evidente, mas a timidez e o medo do fracasso também. Luvell via nele um artista ainda preso aos padrões, medroso e por isso medíocre. Falta audácia nesse cara, talento tem de sobra. Guardou a caixa que comprovava as frustrações de Lokine. O cara faz boa música, mas nesse mercado injusto vai sempre ficar subjugado, coitado desses músicos. Ela entendia de música, outra de suas habilidades era o piano, que tocava de forma furiosa, mas sempre solitária. Ela lembrou de fotos de shows de Lokine que viu investigando no facebook, um dos lugares que ele tocara chamou a atenção dela, era luxuoso, tudo indicava ser em Arborenses, ela reconheceu pessoas célebres da cidade nas mesas, mas o estranho era que ela nunca havia visto ou ouvido falar de um bar como aquele em toda região. Provavelmente um lugar de surpresas.
As coisas de Tatiana: livros, relatórios técnicos, diário, controle de gastos, roupas... estão espalhados pela casa, mostram que organização não é o forte da moça. Analisando os detalhes Luvell conclui que se trata de uma mulher culta, voltada aos estudos de ecologia. Uma bióloga aplicada, sem dúvida. Uma ativista ambiental. Boa parte da trajetória profissional da moça havia sido em pesquisas com a arborização da cidade e de florestas da região. No peito de Luvell palpita um orgulho sem sentido.
"Parece um casal decente." Sussurra Luvell para o nada.
É hora de partir. A invasora sai pela janela, a mesma por onde entrou. Um casal passeia na rua com seu rottwelier. O cão late na direção de Luvell. Ela se esconde em um arbusto do jardim, seu pulsar intensifica-se, não pode ser pega. Pelos vãos das folhas do arbusto ela observa o casal cruzar a rua em direção a casa. O cronômetro do sensophone acusa que faltam dois minutos para o provável retorno da família Koni. Luvell se encolhe nas sombras. O cachorro late furioso, agora já na grade da casa.
"O que foi Nikita?" Diz o homem segurando o cão.
"Deve ser algum gato. Vamos!" Diz a mulher ao lado.
"A Nikita quase nunca late assim."
O homem observa atento o pequeno jardim e o arbusto de azaléia no canto. O portão da garagem abre. O carro da família Koni se aproxima e Tatiana abaixa o vidro já entrando na garagem.
"Olá, Tobias. Olá, Carmem. Tudo bem?"
"Boa noite, Tati. Sim tudo certo. Minha cachorra começou a latir e viemos ver se tinha algo errado, mas acho que é um gato."
"Deve ser. Alguns gatos sempre passam por aqui, eu deixo uma travessa de leite no jardim."
Lokine esticando a cabeça para próximo de Tatiana acena para os vizinhos
"Boa noite!"
"Boa noite, Lokine."
Os conhecidos despedem-se e puxam a cadela para continuar o passeio. O carro entra na garagem. Luvell aguarda imóvel a família adentrar a casa. O casal entra carregando o bebê que solta resmungos. A quietude da rua parece ser adequada. Luvell sai do local como uma sombra assustada pela luz.
No carro ela esconde o material adquirido de baixo do banco. Esfrega as mãos no rosto, liga o veículo e segue voltando para casa. Uma garoa começa a cair e ao longe raios são aparentes. Pelo retrovisor Luvell repara em um carro distante, mas que de forma suspeita segue a mesma rota que ela.
O bairro é quieto, mas mesmo na avenida principal as ruas estão vazias. Esse povo foge da chuva como se fosse pedra caindo do céu. Para em um sinaleiro e no retrovisor constata que o possível perseguidor está parado no sinaleiro anterior, algumas centenas de metros atrás. Uma batida no vidro assusta a moça. Instintivamente Luvell coloca as mãos na arma que leva perto do câmbio. Na janela está uma criança. Um índio. Ela abaixa o vidro. O índio levanta uma cesta artesanal.
"Não, obrigado."
Gotas de chuva molham de leve o rosto do garoto. Luvell procura algum adulto, alguém que seja responsável pelo pobre coitado. Sentada na raiz de um flamboyant, no canteiro central, há poucos metros do carro está uma velha índia. A pele muito enrugada, incomum para indígenas. Deve ser muito velha. O menino meneia a cabeça e segue cabisbaixo em direção à velha. Luvell sente que já viu aquela cena antes. A velha é familiar. Isso não é problema seu. Você já tem muitos problemas. Luvell sente raiva de permitirem aquilo. Sabe que aquelas pessoas vendendo artesanato nos sinais, com cara de fome, com olhares tristes, estão no limiar, em um mundo pior que o dela. Sabe que não tem culpa disso, mas sente-se culpada. Aquele povo está em seu sangue. O sinal abre. Luvell observa o carro perseguidor se aproximar. Resolve não atravessar, quer deixar o carro passar.
"Ei, menino. Senhora, por favor," Grita Luvell gesticulando para os índios se aproximarem.
O carro perseguidor passa e com sua visão periférica treinada Luvell observa o motorista. Não consegue perceber os traços com exatidão, mas o bigode volumoso no rosto do homem fica nítido. A velha se aproxima do carro com a ajuda do neto. O rosto da índia fica evidenciado pela luz do poste, Luvell tem certeza que já viu aquela face.
"Vocês têm onde dormir?"
A velha olha com olhos semicerrados para Luvell.
"Sim, vários. As árvores nos acolhem." A voz não é envelhecida como o corpo.
"Está chovendo, senhora. Uma criança não pode ficar na rua assim."
"Ficaremos bem." Diz a velha virando-se, voltando-se para a ampla raiz do flamboyant.
Luvell franze o cenho.
"Entrem, venham comigo. Tenho boa comida e cama para vocês."
A velha olha para a moça e depois para o menino. Uma chuva tórrida inicia-se. Luvell gesticula para eles se apressarem. Ela segue para casa com mais do que previa.
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