36. Vamos ser o caos
Lúcia repousava languidamente em um enorme banco de couro, vestindo apenas uma fina peça de seda bordô que se moldava ao seu corpo, acentuando a tonalidade amadeirada de sua pele. Seus ombros e braços nus transmitiam uma confiança quase insolente, um lembrete silencioso de seu status e poder. Nos lábios ainda restavam vestígios do sangue de duas jovens que lhe serviam de alimento, ambas de uma beleza etérea, e que não deveriam ser muito mais velhas do que Hélio. Ao menor gesto da matriarca, as garotas se afastaram, deixando a vampira livre para receber seus convidados.
Miguel adentrou o Salão do Prazer, seguido de Gabriel, que carregava no corpo as marcas frescas do confronto com os ghouls, e Ana, cujos ferimentos eram superficiais, mas ainda visíveis. O novato não pôde deixar de notar o cenário ao seu redor: velas vermelhas espalhadas pelo espaço, tremeluzindo e projetando sombras inquietantes nas paredes de um negro profundo, adornadas com gravuras de Lúcia através dos séculos. Cortinas pesadas, em um tom mais escuro de vermelho, balançavam suavemente com a brisa que se infiltrava pelas frestas ocultas. O cheiro no ambiente misturava sangue fresco, incenso e algo adocicado e enjoativo, que Gabriel não conseguiu identificar.
O silêncio foi rompido pela voz de Lúcia, envolvente como um canto hipnótico:
— Como se saiu nosso pequeno rufião? — Ela indagou, com um meio sorriso, enquanto brincava com uma mecha solta de seu cabelo. Seus olhos felinos pousaram sobre Gabriel, avaliando-o com uma curiosidade ligeiramente entretida.
Miguel ajoelhou-se diante da matriarca, mantendo a cabeça abaixada por um breve momento antes de erguer o olhar. Lúcia havia se virado levemente de lado, fazendo com que a seda escorregasse de seu ombro, revelando um vislumbre de seu seio esquerdo. Miguel se obrigou a desviar o olhar, fixando-o em seu rosto.
— Ele conseguiu se infiltrar entre os humanos com destreza — relatou Miguel, mantendo a voz firme. — Enfrentou ghouls sozinho e desarmado, e mesmo que tenha demonstrado valentia, teria perdido a batalha se não fosse pelo apoio de Ana e dos nossos homens.
Miguel deliberadamente omitiu a intervenção da Grande Magus. Lúcia ergueu uma sobrancelha, um brilho de interesse iluminando seus olhos antes de desaparecer com rapidez. Seu olhar então recaiu sobre Gabriel, que permanecia em silêncio, as roupas rasgadas e sujas de sangue, os cortes em seu corpo ainda cicatrizando.
— É só isso que tem para me dizer? — A matriarca questionou, entediada, tamborilando os dedos sobre o encosto do banco. Sua atenção se voltou momentaneamente para uma de suas musas, e os outros vampiros que se deliciavam com seu sangue se afastaram, aguardando instruções.
Miguel manteve a expressão impassível antes de acrescentar:
— Conseguimos capturar o responsável pela transformação de humanos em ghouls. Ele estava construindo um exército. Tivemos apoio da Guarda do Alvorecer.
Ao ouvir isso, Lúcia parou de tamborilar os dedos. O ambiente, que já era opressor, pareceu encolher ainda mais. Mesmo sem elevar a voz, sua presença se tornou uma onda sufocante.
— Posso saber por que, exatamente, decidiram envolver a Guarda do Alvorecer? — Sua pergunta veio envolta em suavidade perigosa, como uma adaga deslizando pelo veludo.
Miguel sustentou o olhar dela.
— O inimigo não era um vampiro comum. De alguma forma, ele conseguiu acesso aos dons do clã destruído.
Um silêncio carregado se instalou. Lúcia desviou o olhar de Miguel, varrendo o ambiente até pousá-lo sobre Gabriel, que permaneceu imóvel. Em seguida, sua atenção passou para Ana, que, indiferente, traçava padrões invisíveis sobre a mesa de mogno ao seu lado.
— Precisamos levá-lo ao Conselho imediatamente — Lúcia murmurou para um vampiro careca que a acompanhava. Ele anuiu e se retirou do salão com passadas rápidas.
Ela então se recostou no banco, erguendo uma perna sobre a outra com a graça felina de uma predadora satisfeita.
— Descansem por enquanto — anunciou. — Amanhã partiremos para o Tribunal. Vocês deporão diante do Conselho e espero que não omitam nada.
A última frase foi dita com uma doçura carregada de veneno. Gabriel engoliu em seco ao sentir os olhos de Lúcia cravados nele, como se pudesse arrancar os segredos que ele ainda tentava processar.
O Salão do Prazer permaneceu em silêncio, exceto pelo estalar ocasional das velas e pelo som abafado de passos desaparecendo pelos corredores escuros.
Gabriel terminou seu banho e saiu do banheiro envolto em um roupão escuro, enquanto gotas d'água ainda deslizavam por sua pele fria. O vapor que escapava do chuveiro parecia dissipar-se lentamente, como se tentasse levar consigo as lembranças que o assombravam. Mas era inútil. Sua mente retornava, insistente, para o esconderijo onde passara as últimas noites ao lado de Hélio. Os murmúrios, os toques, o cheiro inebriante do servo... E então, o calabouço. Diego surgindo no momento crucial, ao lado de Ana e da equipe liderada pela misteriosa Grande Magus. O choque de vê-lo vivo, de perceber que tudo o que lhe contaram era uma mentira.
Seu coração quase morto bateu mais forte, um vestígio de vida se agitando em suas entranhas. Diego estava vivo. E nada mais parecia importar.
Mas por que mentiram para ele? Quem queria que acreditasse na morte do amigo? E, acima de tudo, o que isso significava?
Foi tirado de seus devaneios quando Ana apareceu em seu quarto, encostando-se à porta com um sorriso debochado nos lábios vermelhos.
— Cadê o seu namorado? — perguntou, o desdém evidente em sua voz.
Gabriel franziu o cenho e deu de ombros. Na verdade, ele também não sabia onde Hélio estava.
— O que acha que vai acontecer com ele? — Ana prosseguiu, cruzando os braços.
— Provavelmente Lúcia deve descartá-lo. — O tom da vampira era casual, mas Gabriel percebeu a ponta de malícia oculta em suas palavras.
— Por quê? — Sua voz saiu mais hesitante do que gostaria.
— Havia traços da influência do tal Victor nele.
Gabriel piscou, recordando-se da noite que passou ao lado do servo. De alguma forma, sentia um certo apreço por Hélio, mesmo sabendo que tudo entre eles fora marcado por circunstâncias incertas.
— Ah... — murmurou.
Ana arqueou uma sobrancelha e inclinou-se ligeiramente para ele.
— Vai me dizer que já esqueceu seu primeiro amor?
Gabriel a encarou, confuso e mortificado.
— O quê?! Do que você tá falando?
— Da sua noite selvagem com Hélio — Ana provocou, sua voz reduzindo-se a um sussurro enquanto se aproximava ainda mais.
Gabriel engoliu em seco, desviando o olhar.
— Você...? — começou, mas a vampira riu baixinho antes que ele pudesse terminar a pergunta.
— Em alto e bom som — confirmou, divertindo-se com o desconforto dele. — Você realmente não perde tempo, hein, tigrão?
Ele revirou os olhos e bufou.
— Pra sua informação, eu só fiz o que fiz porque estava vulnerável e... porque achava que o Di tava morto... — disse rapidamente, como se tentar justificar-se fosse dissipar a culpa que sentia.
— Sei... — Ana sorriu de canto, deixando-o ainda mais desconcertado.
Se Gabriel ainda fosse humano, seu rosto estaria ardendo de vergonha. Mas agora, sua pele permanecia fria, pálida, indiferente. Era um lembrete cruel de que sentimentos como amor e desejo eram efêmeros para aqueles que existiam nas sombras. Principalmente quando envolviam mortais.
— De qualquer forma, não foi pra isso que eu vim — Ana interrompeu o silêncio, tirando um envelope branco de dentro do casaco e estendendo para ele.
Gabriel franziu o cenho e pegou o envelope com cautela.
— O que é isso?
— Não sei. Talvez um presente. Talvez uma nova ordem... — Ela deu de ombros, enigmática.
Ele ficou encarando o papel, perdido em pensamentos. Seu peito se apertou ao perceber que poderia estar ainda mais envolvido em algo que sequer compreendia. Afinal, agora todos sabiam quem era, de fato, seu criador.
Quando ergueu a cabeça para fazer outra pergunta, Ana já não estava mais ali. Seu vulto sumira tão repentinamente quanto surgira, deixando para trás apenas um leve resquício de seu perfume amadeirado.
Gabriel respirou fundo, sentindo a solidão do quarto pesar sobre ele. Ele não podia negar que sentia falta da presença de Hélio. O rapaz estivera ao seu lado nos últimos dias, suprindo suas necessidades e sendo uma companhia inesperada. E agora? Poderia muito bem estar sendo sentenciado... ou pior. Lúcia poderia já ter drenado cada gota de seu sangue.
— Será que tem alguma coisa que eu poderia fazer por ele? — murmurou para si mesmo, mas a resposta permaneceu no silêncio do quarto.
Por fim, sua atenção voltou para o estranho envelope. Passou os dedos sobre o papel liso, como se pudesse sentir alguma energia oculta ali. Com um último suspiro, rompeu o lacre e puxou o conteúdo do interior.
Ao ver o que havia ali, sua confusão apenas aumentou.
Gabriel seguiu as instruções da carta, descendo até a entrada do suntuoso prédio onde Lúcia mantinha seu covil. O ar noturno estava denso, carregado com umidade e o leve aroma de flores murchas. Ana o aguardava próxima à calçada, encostada em um dos pilares dourados da entrada, tamborilando os dedos contra a pedra fria. Gabriel olhou ao redor, notando que nenhum outro vampiro estava por perto. Foi então que percebeu a energia peculiar envolvendo Ana.
— Anda logo, não queremos ser pegos, certo? — A voz dela ecoou diretamente em sua mente, uma ordem transmitida através do elo mental.
Sem questionar, ele atravessou a recepção do prédio. Passou pelos serviçais e guardas sem que eles sequer virassem a cabeça em sua direção. Uma sensação incômoda percorreu seu corpo, como se estivesse desafiando a própria natureza ao desaparecer diante de olhos atentos.
— Será que deu certo? — Gabriel perguntou ofegante, sentindo um resquício de adrenalina, uma emoção que quase se perdera desde sua transformação.
— Não sei, mas não quero ficar pra descobrir.
Ana seguiu apressada, guiando-o até um carro preto luxuoso que os aguardava do outro lado da rua. Gabriel olhou uma última vez para o edifício, sua imponente arquitetura refletindo as luzes públicas. O prédio parecia respirar, como se fosse um organismo vivo prestes a despertar e agarrá-lo de volta. A incerteza lhe apertou o peito, mas ele não hesitou. Seguiu Ana e entrou no veículo.
Assim que se acomodou no banco traseiro, Gabriel congelou ao ver Hélio desacordado ao seu lado. A pele do servo estava pálida, ainda mais do que o habitual, e marcas rubras delineavam seu pescoço e braços. A imagem o atingiu como um soco, e ele abriu a boca para perguntar algo, mas foi interrompido.
— Ninguém sabe de nada. Como eu te disse, a matriarca pode querer descartá-lo a qualquer momento — murmurou Ana, encarando-o com um olhar afiado.
Gabriel engoliu seco, desviando o olhar de Hélio. As perguntas se amontoavam em sua mente, mas ele sabia que aquele não era o momento para respostas. Sentiu o carro arrancar, deslizando pelas ruas de São Paulo sob o manto da noite.
Atravessaram avenidas iluminadas, passando por postes piscantes e becos envoltos em escuridão. As ruas estavam estranhamente vazias para aquele horário. Ou talvez fosse apenas uma impressão. Gabriel observou os poucos transeuntes, reparando na expressão tensa em seus rostos. Estariam aflitos por algo? Ou era apenas uma ilusão de sua mente perturbada?
Um presságio incômodo se instalou em seu peito. Como se algo estivesse prestes a acontecer. Algo inevitável.
O silêncio reinava dentro do carro. Gabriel mantinha os olhos fixos na paisagem passageira, perdido em seus pensamentos, enquanto Ana se distraía com um jogo em seu telefone, indiferente ao mundo ao seu redor.
Ana, sem tirar os olhos da tela do telefone, estendeu a mão e ligou o rádio ao lado do motorista. O homem sequer protestou, mantendo o olhar fixo na estrada, os dedos firmes no volante. O carro deslizou pelo asfalto ao som da voz etérea de Grimes, os versos de "Oblivion" preenchendo o silêncio entre eles, embalando a viagem repentina.
"Eu nunca ando por aí depois que escurece É o meu ponto de vista Porque alguém pode quebrar seu pescoço Chegando por trás de você, sempre chegando e você nunca teria ideia"
O veículo parou abruptamente. O motorista desceu sem uma palavra, contornou o carro e abriu a porta para Gabriel. Ele piscou, confuso. Olhou ao redor e, ao reconhecer o prédio iluminado à sua frente, sentiu o corpo enrijecer. A danceteria.
— Que ideia é essa? — sua voz saiu mais ríspida do que pretendia. Seu peito apertou. A última vez que esteve ali, sua vida mudou para sempre.
Ana, ainda segurando o telefone, ergueu os olhos para ele. Seus lábios se curvaram em um sorriso enigmático.
— Apenas confie em mim. Às vezes, precisamos de uma pequena distração.
— Mas aqui? De todos os lugares? — Gabriel perguntou, desconforto percorrendo sua espinha.
— Entre. Divirta-se. — A voz dela assumiu um tom mais sombrio. — Não sabemos como será amanhã à noite.
Os olhos de Gabriel se arregalaram. A vampira encarou-o por um instante antes de a janela subir, separando-os. O carro arrancou sem aviso, desaparecendo na avenida, deixando-o ali, parado diante da entrada do clube. Grupos de jovens passavam por ele, rindo, ansiosos por uma noite de diversão. Eram como ele... antes.
Sem alternativa, Gabriel tomou seu lugar na fila. A música pulsava dentro do prédio, reverberando no chão. Seu coração parecia querer acompanhar o ritmo, acelerado. Não queria estar ali. Não estava pronto.
A fila avançou e, quando chegou sua vez, um atendente — um homem alto, de braços definidos e um olhar entediado — sequer olhou seus documentos, apenas o deixou passar. Antes que ele pudesse perguntar qualquer coisa, o homem lhe entregou um pequeno papel dobrado.
— Pediram para entregar isso ao senhor — disse ele, a voz arrastada, hipnótica.
O estômago de Gabriel revirou. A fome começou a se insinuar, uma presença incômoda e persistente.
Passou pelos seguranças sem dificuldade. Algo estava errado. Seu instinto gritava.
Desdobrou o bilhete.
Vá até o bar.
O cheiro de bebida misturado ao suor e perfume das pessoas o atingiu quando entrou no salão principal. As luzes vibrantes piscavam em tons de vermelho e azul, banhando os dançarinos em sombras e brilhos momentâneos. Gabriel deslizou entre os corpos em movimento, evocado por seu dom sobrenatural. Tornou-se um com a escuridão da danceteria, invisível aos olhos mundanos.
Quando chegou ao bar, encontrou-o quase vazio. Apenas o bartender estava ali, preparando drinks com eficiência robótica. Um homem de cabeça raspada, tatuagens serpenteando pelos braços e uma barba bem cuidada ergueu os olhos quando Gabriel se aproximou.
— O que vai ser? — perguntou, a voz grave, cortante.
Gabriel hesitou. Observou os copos brilhantes no balcão, cheios de líquidos coloridos. O cheiro de álcool e açúcar era quase nauseante. Soltou um suspiro discreto.
— Não sei ainda — murmurou. De qualquer forma, o que eu bebo vocês não servem, pensou, e um sorriso sarcástico curvou seus lábios.
O tempo passou, e ele permaneceu ali, imóvel, perdido em pensamentos. Ana queria que ele se distraísse. Mas e se ele se deixasse levar? E se não conseguisse controlar sua sede?
O receio o desanimou. Estava prestes a sair quando uma voz sussurrou perto de seu ouvido:
— Tudo bem se eu te fizer companhia?
Um arrepio percorreu sua pele. Seu coração — ou o que restava dele — pareceu falhar uma batida. Aquele cheiro... aquela voz...
Virou-se devagar.
Diego.
Ainda bonito. Mas algo nele estava diferente. Ele estava mais à vontade. Mais seguro. O olhar, que antes carregava tantas incertezas, agora carregava algo novo, quase desafiador.
Os dois se encararam, as palavras presas na garganta. Havia muito a ser dito, desculpas a serem dadas, sentimentos enterrados a serem desenterrados. Mas por onde começar?
Diego quebrou o silêncio primeiro. Seu sorriso gengival desarmou Gabriel por completo. E então, sem pensar, sem hesitar, se abraçaram. Forte. Quente, apesar da diferença de temperatura.
— Em pensar que foi aqui que tudo começou — Diego sussurrou, mantendo Gabriel apertado contra si.
Para Diego, o significado daquilo era um mistério. Para Gabriel, era o começo do fim. O lugar onde Victor o encontrou. Onde perdeu tudo e ao mesmo tempo tudo tinha mudado. Ele tinha mudado.
— Eu achei que eles tinham te matado... — as palavras saíram em um fio de voz. Seus olhos ardiam, lágrimas ameaçando transbordar.
Diego se afastou um pouco e ergueu o queixo, revelando a pele lisa onde antes haviam marcas de presas. Tocou o local com os dedos, como se pudesse sentir os fantasmas do passado ali.
— Eles quase conseguiram — admitiu. — Mas Miguel apareceu no hospital. Algo a ver com esse tal Conselho dos Sete...
Gabriel fechou os olhos, lembrando-se do momento em que lhe disseram que Diego estava morto. A culpa esmagando seu peito.
— Disseram que tinham te eliminado — confessou, a voz carregada de pesar.
Diego suspirou, apoiando os cotovelos no balcão.
— Não se culpe por isso.
— O quê? — Gabriel piscou, surpreso.
— Você tem esse péssimo hábito — Diego sorriu de lado.
Gabriel estreitou os olhos.
— Ah, por favor. Me lembro muito bem de encontrar você acabado, um trapo humano! Nem parecia mais você mesmo! — rebateu, provocando o amigo.
— Ah, cara... Você sabe que as coisas ficaram meio estranhas depois daquela balada... O que eu poderia pensar? Num minuto você tava vivo e com a gente, no outro, tive que reconhecer seu corpo com a Cris.
— Você tem razão... — Gabriel falou entredentes, sabendo que estavam perto demais e que o amigo provavelmente o tinha escutado.
— Conseguiu descobrir o que queria?
— Descobri coisas até demais...
— É tão ruim assim? — Diego perguntou ao ver que o amigo voltava a ter aquele semblante sombrio, como se carregasse o peso do mundo sem ter com quem dividi-lo. Aquilo lhe deu um aperto no peito. Em que momento tinham se tornado tão distantes? Como Gabriel podia parecer tão solitário em um mundo totalmente diferente?
— Foi tudo premeditado, Di! — Gabriel revelou, os olhos marejados. — Eles me escolheram naquela noite, queriam me transformar em uma daquelas criaturas. Eu seria apenas mais uma vítima, um soldado sem nenhum poder de decisão numa guerra que eu não pedi pra participar...
— Puta que pariu, cara...
— Tô muito fodido, isso sim!
O silêncio se estendeu por alguns instantes. A música ainda tocava ao fundo, os graves fazendo o chão vibrar. Os dois se entreolharam, e Diego sorriu, lembrando-se de como tinham se divertido naquela noite, antes de tudo desmoronar. Se fechasse os olhos, ainda podia ouvir suas risadas, o calor da pista, a sensação de estar vivos. Gabriel tocou os lábios instintivamente ao lembrar do beijo. Seu primeiro coração partido. E a pessoa que causou aquilo estava ali, tão perto.
— Vamo fazer isso certo? — Diego perguntou, a voz baixa e rouca, os lábios quase roçando a pele fria de Gabriel.
O vampiro lembrou das palavras de Ana. Agora entendia o que ela quis dizer. Ele sorriu, um sorriso que não dava havia tempos. Dessa vez, deixaria a escuridão de lado. Iria viver.
Foram juntos para a pista de dança, misturando-se à multidão. Havia tanta gente que mal podiam se mexer. O calor do corpo de Diego irradiava contra o de Gabriel, quente, terno, tentador. Ele sentiu as presas crescerem, a língua tocando os dentes protuberantes. Mas não agora. Por uma noite, não seria um vampiro. Seria apenas Gabriel.
O corpo de Diego roçou no seu, e o choque de suas peles fez Gabriel prender a respiração. As luzes piscavam em azul, vermelho e branco, refletindo o suor das pessoas ao redor. A batida de "Bumbum de Ouro" da Glória Groove fazia o chão vibrar sob seus pés.
— Qual é? — Diego gritou no ouvido de Gabriel, aproximando-se ainda mais. — Morrer e virar vampiro te deixou todo travado, foi?
Gabriel riu.
— Quem disse que eu tô travado?
— Nem parece mais o Gabs que incendiava a pista...
Gabriel ergueu uma sobrancelha.
— Ah é? — desafiou, os olhos brilhando com um fogo travesso.
Quando o refrão bateu, ele girou nos calcanhares e rebolou com precisão, os quadris se movendo no ritmo da música, provocando Diego.
— Consegue fazer isso? — zombou.
Diego arregalou os olhos.
— Ah não, vampiro rebola melhor do que eu? Isso é humilhação demais!
Gabriel soltou uma gargalhada, inclinando-se para murmurar no ouvido do amigo:
— Não é sobre quem rebola melhor. É sobre com quem você dança.
Diego sentiu um arrepio subir pela espinha, mas antes que pudesse responder, Gabriel segurou sua mão e puxou-o para mais perto. Entre batidas e risadas, humano e vampiro esqueceram as diferenças entre seus mundos. Pelo menos por aquela noite, naquela pista dança.
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