33. Memórias no sangue
Gabriel ainda ponderava sobre a oferta que lhe fora feita. Havia tantas lacunas, tantas perguntas sem resposta. Ele desconhecia as verdadeiras intenções do Conselho dos Sete e, acima de tudo, de Miguel. Por que aquele homem se dera ao trabalho de acolhê-lo, um vampiro desgarrado, e moldá-lo nos costumes de sua ordem? O que ele ganhava com isso?
Logo descobrirá que sou muito mais honrado em minha palavra do que aquele que o acolheu.
As palavras de Victor ainda ecoavam em sua mente. De algum modo, aquele vampiro sabia algo sobre Miguel—algo que Gabriel ainda não conseguira enxergar.
O que é que não estou percebendo?
Além disso, Victor também parecia intrigado com o fato de Gabriel não ter se tornado um Ghoul, como Vanessa e os demais sob seu comando. Havia algo na maneira como ele fora concebido que havia alterado os planos daquele homem. Mas o quê?
Seus pensamentos se embaralhavam, tornando impossível chegar a uma conclusão. Enquanto isso, Hélio permanecia calado. Gabriel notou que ele evitava olhá-lo. Estaria arrependido? Não saberia dizer.
A porta se abriu, arrancando Gabriel de sua espiral de inquietações. Victor surgiu, um sorriso calculado no rosto, seguido por Vanessa e outros de sua espécie, sombras leais à sua presença.
O caminhar dele era lento, despretensioso, mas impregnado de domínio. Cada passo parecia marcar território. Gabriel sentiu um alerta sutil dentro de si—era perigoso jogar conforme as regras do inimigo, especialmente quando não sabia a extensão de seu poder. No entanto, Victor parecia possuir todas as respostas que, há semanas, nem o Conselho nem Miguel haviam lhe fornecido.
— Acredito que já tenha pensado o suficiente sobre minha proposta.
A voz de Victor cortou o silêncio do quarto.
Hélio estava imóvel, o medo irradiando dele como um cheiro ácido no ar. Gabriel sentiu a tensão no rapaz, viu o tremor sutil de seus dedos agarrados às pernas, o corpo encolhido num canto. O terror era real.
— Tudo bem... — Gabriel finalmente murmurou, sentindo o peso de sua decisão. — De alguma forma, acho que posso conseguir mais respostas com você do que com qualquer outra pessoa.
O sorriso de Victor se alargou, torcido e satisfeito. Ele ergueu um braço, oferecendo a Gabriel a chance de segui-lo.
Eles caminharam lado a lado, e Gabriel observou tudo ao redor com atenção. O local não tinha nada de grandioso, mas algo o deixava inquieto. Havia mais daquelas criaturas do que ele imaginava. Um exército estava sendo formado, e isso acendeu um alerta dentro dele. Miguel havia dito que agir dentro dos domínios dos Sete Clãs era uma declaração de guerra.
— Você parece muito bem preparado para enfrentar os Sete Clãs — comentou Gabriel, tentando arrancar alguma informação.
— Você não faz ideia...
— Como pretende me dar essas respostas?
Victor riu, como quem se diverte com a impaciência de uma criança.
— Ah, jovens... sempre tão ávidos.
— É sério! Não vejo como você poderia me dar o que preciso!
— É aí que se engana. Posso te ensinar mais sobre você mesmo do que qualquer vampiro dos Sete Clãs jamais poderia sonhar.
— Então prove.
— Tudo ao seu tempo, garoto.
Diferente de Miguel, sempre irritadiço e relutante em ensinar, Victor parecia se divertir com a sede de conhecimento de Gabriel.
Ele se pegou pensando em Miguel. Era estranho lembrar do tutor naquele momento. Como alguém como ele—tão experiente, tão poderoso—pôde ser capturado?
Os corredores se tornaram familiares. Gabriel reconhecia aquelas paredes. O cheiro impregnado nelas pertencia a um lugar que antes fora sinônimo de segurança. Mas algo estava errado.
O caminho se alargava, cavernoso como o calabouço onde fora julgado. Seu olhar percorria os detalhes ao redor, tentando compreender. E então, no final do extenso corredor, um som metálico quebrou o silêncio. Grilhões.
O cheiro que veio em seguida o pegou desprevenido.
Não podia ser...
Diante de seus olhos, Miguel jazia preso. Sua aparência era deplorável. Havia marcas de mordidas por todo o corpo—alguém estava se alimentando dele. A constatação fez Gabriel estremecer.
— O que está acontecendo aqui? — A voz de Miguel soou rouca, confusa, ao ver Gabriel ao lado do inimigo.
Victor abriu os braços, teatral.
— Meu caro Miguel, em breve testemunhará a verdade! Uma pena que não viverá para ver como termina.
— Do que você está falando? — Gabriel deu um passo à frente, separando-se de Victor. Seus olhos brilharam em desafio.
— Seu amigo—ou melhor, aquele que se diz seu salvador—teve um papel a cumprir. Só isso.
— Eu não vou deixar você machucá-lo!
Gabriel se interpôs entre Miguel e Victor.
O vampiro sorriu, divertido com a bravata.
— Quero ver se manterá essa postura quando descobrir o que ele esconde de você.
Gabriel hesitou.
Miguel... estaria escondendo algo?
Ele se virou para o tutor, buscando qualquer sinal que desmentisse as palavras de Victor. Mas Miguel não sustentou seu olhar. Seu semblante carregava algo que Gabriel nunca vira antes.
Resignação.
— O que foi que eu disse? — Victor sussurrou, aproximando-se. Um braço deslizou pelos ombros de Gabriel, como se o enlaçasse em cumplicidade. — Ali estão as respostas que você tanto procura.
Gabriel recuou.
— Como sei que está falando a verdade?
— A resposta está no sangue.
A frase foi dita num sussurro venenoso. Gabriel sentiu um arrepio gelado subir por sua espinha.
Miguel arregalou os olhos.
— Não... não me diga que...
Sua voz morreu na própria garganta.
Victor sorriu.
— Isso será emocionante.
Gabriel sentia-se perdido. Se Miguel realmente escondia algo, talvez tivesse uma razão. Mas e se Victor estivesse certo? Ele se arriscaria a ignorar a verdade?
— Não me faça esperar...
A voz de Victor tornou-se áspera, impaciente.
E então, antes que percebesse, o corpo de Gabriel começou a se mover por conta própria.
O medo nos olhos de Miguel foi um golpe. Pela primeira vez, seu tutor parecia pequeno.
Aceitava seu destino.
O silêncio dentro da câmara se tornou sufocante. Gabriel ouvia apenas as próprias respirações, as dele e das criaturas ao redor.
Então, passos.
Mãos gentis ergueram sua cabeça. Um toque suave afastou seu pescoço para o lado.
E finalmente, ele sentiu a dor que, por séculos, ele mesmo causara em tantos inocentes.
Miguel estava dentro de um quarto grandioso, com cortinas de seda que dançavam suavemente com a brisa noturna. Os móveis, trabalhados em madeira nobre, refletiam o brilho dourado das velas, dando ao ambiente uma atmosfera de opulência. Aqueles objetos, que hoje pareceriam relíquias, estavam impecáveis, reservados apenas aos mais abastados. Ao seu lado, jazia um homem charmoso, de idade um pouco avançada, denunciada pelos primeiros fios grisalhos que adornavam seus cabelos. Havia dor em seu peito, uma dor que Gabriel reconheceu instantaneamente: a mesma que sentiu ao receber a notícia de que seu melhor amigo havia morrido.
Miguel soluçava, apertando contra si o corpo desfalecido do homem. As mãos trêmulas percorriam os cabelos úmidos e desalinhados do falecido, enquanto seu olhar se prendia àquele rosto que, mesmo na morte, mantinha uma estranha serenidade.
— Por favor! — A voz de Miguel se quebrou em desespero. — Não, não, não... Volte para mim! — Ele apertou o corpo contra si, os dedos afundando na roupa manchada de sangue. — O que eu fiz? Por que isso está acontecendo comigo?!
Uma risada feminina ecoou pelo cômodo, arrancando-o momentaneamente de seu momento de dor. Miguel ergueu a cabeça, os olhos inflamados de fúria. No teto, uma mulher de cabelos escuros o observava com um sorriso cruel. Seus olhos tinham um brilho diabólico, tão profundos quanto os dele.
— Parece que agora sabes onde é o teu lugar! — a mulher declarou, a voz melódica impregnada de escárnio.
— Por que fizeste isso?! Ele nunca foi uma ameaça! — Miguel bradou, a voz carregada de dor. — Ele não merecia esse destino!
De repente, o cenário mudou.
O sangue, os soluços e os gritos se dissiparam como fumaça ao vento. No lugar do quarto, Gabriel se viu cercado por luzes piscantes e uma batida pulsante que reverberava em seu peito. Ele reconheceu imediatamente aquele lugar. A balada. A noite em que perdeu sua vida.
No banheiro escuro, Miguel o encarava, e pela primeira vez, Gabriel viu pena em seus olhos. O véu de frieza que normalmente cobria o vampiro se rasgava diante dele. Miguel hesitava. Seus olhos escuros reluziam com um dilema que Gabriel ainda não compreendia por completo.
— Eu... não... — Gabriel tentou falar, mas as palavras saíram fracas, sufocadas pela dor e pelo sangue que preenchia sua garganta.
Foi então que Miguel ouviu uma voz familiar.
— Ele realmente merece isso? — A voz terna ressoou naquela pequena cabine fétida. O fantasma de um amor perdido, de um passado que ele jamais esqueceu.
Miguel estremeceu. Sentiu o toque delicado de uma mão sobre seu ombro, um gesto de conforto vindo de um homem que há tempos já não o acompanhava em vida.
— Eu não posso fazer nada por ele...
— Pode fazer muito mais do que imagina, pode dar-lhe uma segunda chance! — insistiu Felipe, suave como um sussurro ao vento.
— Ele não merece esse destino... olha só o que aconteceu com a gente! — Miguel replicou, os olhos brilhando com uma mistura de tristeza e revolta.
— Mas ele é diferente. É muito mais gentil do que os outros que caminham assim como você! E no fundo, sabes que ele pode escapar do mesmo destino que nos abateu.
Miguel apertou os lábios. Gabriel jazia ali, entre a vida e a morte, os olhos de avelã enevoados pelo sofrimento. O tempo estava se esgotando.
— E se... — Miguel hesitou, mas foi interrompido.
— Ele não tem muito tempo... — O espectro de Felipe agachou-se ao lado de Gabriel, observando-o com um olhar cheio de compaixão. Gabriel, mesmo sem vê-lo, pareceu sentir sua presença. Seu corpo estremecia, como se seu próprio espírito se preparasse para se desprender da carne.
Gabriel ofegou, as lágrimas misturando-se ao sangue em seus lábios.
— Por favor... eu... não... — sua voz saiu fraca, um sopro de desespero em meio ao caos.
Miguel fechou os olhos por um instante, empurrando para longe o barulho, as dúvidas, a culpa que o atormentava desde a noite em que perdera Felipe. As palavras de seu amante continuavam ecoando em sua mente, e num sorriso singelo — algo raro, algo que parecia fora de lugar em seu rosto marcado pelo sofrimento — Miguel tomou sua decisão.
— Você sempre ganha, não é mesmo? — murmurou.
Miguel aproximou-se de Gabriel, arregaçou a manga da jaqueta escura e mordeu o próprio pulso. O cheiro ferruginoso do sangue invadiu o ar, e ele sentiu o jovem ofegar ao perceber o que estava prestes a acontecer. O vampiro puxou Gabriel contra si, deixando seu próprio perfume se misturar ao aroma de morte que cercava o rapaz.
— Beba!
Gabriel arregalou os olhos. A compreensão atravessou sua expressão como um raio.
— Você... também é um...
Miguel hesitou por um instante, olhou para Felipe, que apenas anuiu, e então mais determinado do que antes, ele fixou seus olhos de jabuticaba nos de Gabriel.
— Você beberá do meu sangue... e se esquecerá do que viu esta noite.
Gabriel sentiu as palavras ressoarem dentro dele como um comando absoluto. Mesmo sem entender por quê, mesmo sem saber o que aquilo significava, ele se agarrou àquele fio de esperança.
A boca do jovem tocou o pulso do vampiro, e o gosto do sangue preencheu sua boca. Um gosto ferroso, quente, poderoso. Algo dentro dele já estava em moção, algo que o mudaria para sempre.
Miguel o observou por um instante, depois se afastou. Não sabia se Gabriel sobreviveria. Mas, no fundo, torcia para que sim.
Miguel não acreditava no que seus olhos lhe mostravam. Diante dele, estava o mesmo garoto que bebeu de seu sangue e, estranhamente, atestava não saber de nada. Seu poder, de alguma forma, ainda surtia efeito; só não esperava encontrá-lo naquelas circunstâncias.
Jonathan tinha dado o veredicto, e a situação não era das mais favoráveis para o garoto. Felipe reapareceu ao seu lado, lançando-lhe um olhar que Miguel soube traduzir perfeitamente. Se você estender sua mão uma vez mais, quem sabe ele pode nos ajudar, sobretudo, te ajudar...
— As coisas que você ainda me obriga a fazer... — disse Miguel, com o mesmo sorriso de semanas atrás. — Eu tomarei esse neófito sob meus cuidados!
— Você sabe que é o certo a se fazer! — Felipe murmurou, apertando gentilmente seu ombro.
Claro, eu posso ser o motivo pelo qual ele é o que é... — ponderou Miguel.
Aos poucos, Gabriel sentia sua consciência se dissipar, voltando à realidade. O local onde estavam reapareceu diante de seus olhos, e um súbito terror lhe tomou. Teria ele drenado Miguel?
Quando percebeu que já estava de volta, soltou o vampiro de imediato. Para seu alívio, Miguel ainda estava vivo, embora quase reduzido a uma casca sem vida. Porém, ainda havia esperança.
— E então? O que ele te revelou? Ele era a peça que faltava para o seu quebra-cabeça? — Victor perguntou afoito, embora seu olhar malicioso denunciasse que já sabia a resposta. Ele queria ver a reação de Gabriel.
— Ele foi bem mais gentil do que você foi! — respondeu Gabriel, sem hesitar.
O que o vampiro não esperava era o súbito ataque do mais novo. Gabriel avançou, lembrando-se das lições que Miguel lhe ensinara. Mas, além disso, o sangue que havia bebido parecia agir por conta própria, como se o próprio Miguel estivesse vivo dentro dele. Aquilo pegou o outro vampiro desprevenido.
Os ghouls começaram a se agitar. Ainda não haviam recebido a ordem para atacar, mas sabiam que seu mestre precisava de auxílio.
— Não se mexam! — Gabriel vociferou ao perceber a crescente inquietação das criaturas. O que nem ele nem Miguel esperavam era que, com essas palavras, o sangue delas congelasse dentro das próprias veias.
— Me tire daqui... — Miguel pediu, arfante.
A luta, que parecia unilateral, logo mudou. Victor atacou, atingindo Gabriel com força no rosto e lançando-o contra a parede do calabouço. O impacto ecoou pelo salão de pedra.
— Em pensar que eu te ofereci um lugar ao meu lado! — vociferou, voltando-se irado para seus ghouls. — O que estão esperando?! Ataquem! — bradou, perdendo a compostura.
Se a batalha já parecia desproporcional, naquele momento, pareceu perdida. Gabriel olhou para Miguel, que anuiu levemente. No fundo, sabia que seu tutor lhe agradecia pela tentativa, mesmo que falha e inútil. Era bom saber que ainda tinha alguém ao seu lado.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro