31. Olhos e corações maldosos
O mundo parecia envolto em um silêncio absoluto, como se houvesse retornado ao vazio primordial. Mas, desta vez, algo estava diferente. Uma silhueta o aguardava – a mesma que vislumbrara em sua primeira noite desperto. No entanto, ao contrário daquela experiência inicial, a figura diante dele não era um mero vulto indefinido. Envolta por um manto carmesim pulsante, exalava uma presença hipnótica e imponente, causando arrepios que percorriam cada fibra do corpo do jovem vampiro.
Gabriel sentiu uma necessidade visceral de caminhar em direção à criatura. Era como se ela entoasse uma melodia oculta, um cântico ancestral que o atraía, envolvendo-o em uma sensação paradoxal de calma e euforia.
Sem hesitar, deu um passo à frente. Depois outro. A cada movimento, a canção tornava-se mais intensa, reverberando em sua mente com um poder avassalador. Era impossível resistir ao seu chamado maldito. Quando percebeu, já estava tão próximo que podia enxergar seu próprio reflexo nos olhos da entidade.
Então, reconheceu a figura diante de si.
Era ele mesmo.
Uma versão feita de puro sangue, um ser forjado na essência de suas vítimas, carregando os ecos daqueles que devorara. Sentia, até mesmo, a presença de Hélio dentro daquela entidade. Mas algo o fez congelar. Não estavam sozinhos.
Atrás da criatura de manto carmesim, sombras emergiam do vazio. Deformadas, famintas, com uma aura assassina que cortava a escuridão como navalhas. Entre elas, uma silhueta lhe pareceu terrivelmente familiar. Vanessa.
— Enfim, junte-se aos seus irmãos, minha criança. — A voz trovejante explodiu em sua cabeça, fazendo sua mente latejar de dor.
— Por que me transformou nisso?! — vociferou, sufocado pelo peso das palavras.
— Não sejas apressado... — A voz agora sussurrava, tão próxima que Gabriel sentiu um toque frio e asqueroso deslizar por suas costas. — Não tentes encurtar a apresentação que estou tecendo para este mundo hipócrita! — O tom se elevou novamente, esmagador, como se pudesse reduzi-lo a nada. — Terás de atuar conforme a peça se desenrola.
Aquelas últimas palavras trouxeram um desespero gélido. O vazio se desfez e, em seu lugar, surgiu uma grotesca réplica do mundo real. Um cenário manchado de vermelho. Corpos espalhados pelo chão, seus olhos vazios refletindo um terror sem fim.
Lúcia. Ana. Miguel.
E Hélio.
Seu amigo estava lá, inerte, ao lado do jovem voluntário que costumava encará-lo com admiração. Mas agora, seus olhos—antes tão belos—refletiam apenas uma imagem distorcida. Um monstro irreconhecível.
— Farei com que paguem! — bradava a criatura diante de si.
De repente, algo o prendeu. Uma dor lancinante queimou seus pulsos e pescoço. Prata.
Mas não parou ali. Seu peito se abriu de dentro para fora, como se algo o atravessasse. Sentiu um aperto sufocante no coração, seguido de uma pontada dilacerante.
Gabriel abriu os olhos.
A última coisa que viu foi um rosto conhecido.
Os olhos cerúleos, outrora tão vibrantes, estavam opacos, sem vida, sem emoção. O mesmo rosto que tantas vezes observara em seus aposentos pairava sobre ele, impassível.
E segurava uma estaca que perfurava seu peito.
Antes que a escuridão o engolisse por completo, seu olhar desviou para a porta.
Ali, à espreita, algo se movia. Olhos tão rubros quanto os seus, mas carregando uma maldade insondável. Uma agressividade avassaladora, voltada não apenas para ele, mas para tudo ao redor. Gabriel tentou chamar por Ana, buscou desesperadamente o elo mental que os conectava.
Nada.
Teria ela tido o mesmo destino?
— Agora durma, criança... — A voz cavernosa sussurrou, arrastando-o para a inconsciência.
E então, Gabriel mergulhou em um sono profundo.
Sem sonhos.
Gabriel despertou sobressaltado. Lembrava-se nitidamente da estaca cravada em seu peito pela última pessoa que imaginaria traí-lo: Hélio. Olhou ao redor, tentando reconhecer o lugar onde estava, mas falhou. Aquele não era seu quarto, muito menos os aposentos no complexo de Lúcia.
O que o surpreendeu ainda mais foi encontrar o belo servo desacordado ao seu lado. Hélio ainda respirava.
— Vejo que finalmente retornou para nós! — A voz desconhecida ecoou pelo quarto. Alarmado, Gabriel olhou para todos os lados, sem conseguir localizar o inimigo. Seus olhos brilharam instintivamente, prontos para lutar. — Gosto da sua bravata, mas isso é inútil.
Das sombras, emergiu um homem envolto em uma capa de chuva negra. Ele era tão alto quanto o vampiro que servia como braço direito de Lúcia, com ombros largos e postura imponente. Pela primeira vez, o estranho se revelou sem o capuz, exibindo um rosto comum, do tipo que poderia facilmente passar despercebido entre os humanos.
Seus cabelos caíam parcialmente sobre o rosto liso, marcado apenas por algumas rugas e uma cicatriz peculiar no queixo.
— O que você quer comigo?! — Gabriel bradou.
— Acalme-se! — ordenou o homem, e então algo bizarro aconteceu. Gabriel sentiu o corpo paralisar antes mesmo de conseguir atacar. — Me pergunto como um selvagem como você acabou entre os engomadinhos do Sete Clãs...
— Deixa eu sair daqui pra você ver o quão selvagem eu posso ser!
— Já disse, tenha modos... — A simples ordem fez Gabriel sentir seu sangue congelar e, ao mesmo tempo, borbulhar dentro de suas veias. A dor foi insuportável.
O estranho se aproximou, erguendo o rosto de Gabriel com uma das mãos enormes. Ele Observou-o atentamente, como se tentasse resolver um enigma que o atormentava. O que o jovem vampiro tinha de tão especial?
— Tentemos mais uma vez, certo? — disse ele, em um tom que tentava soar gentil.
— O que você quer?
— Está fazendo tudo errado. Primeiro, devemos nos apresentar...
— Que seja! — retrucou Gabriel, emburrado.
— Pode me chamar de Victor. Acho que você já conheceu algumas das minhas crianças...
Atrás de Victor, Gabriel percebeu silhuetas. Algumas estavam deformadas, exatamente como nas visões de seus sonhos.
— A... fo...me... — murmurou uma voz cavernosa. O jovem vampiro sentiu um arrepio intenso. O perfume floral que sentira na escola estava ali, no mesmo ambiente que ele. — Ma...chu...ca...
A voz distorcida se transformou em um urro aterrorizante.
— Calada! — Victor repreendeu. A figura que gemia se encolheu diante da ordem. — Interessante... — murmurou, voltando o olhar para o pescoço de Gabriel. — Por que você não se transformou como os outros?
— O quê? — Gabriel perguntou, com dificuldade.
— Bem, isso não importa... — Victor se aproximou ainda mais. O jovem vampiro não conseguia compreender as intenções do homem diante dele.
Foi então que sentiu as presas do estranho perfurarem seu pescoço. Protestou, o rosto se retorcendo em dor quando uma pontada atravessou sua pele. Victor, no entanto, parecia distante, como se assistisse a um filme que passava diante de seus olhos.
— Ah, isso é deveras interessante!
— O que está fazendo?! — Gabriel vociferou, tentando se afastar, sem sucesso.
— Tentando compreender sua existência... — Victor voltou a morder o pescoço do jovem, provocando um novo choque de dor.
Mais imagens inundaram a mente do estranho. Gabriel percebeu que a intensidade da mordida aumentava. Mas o que mais o perturbava era a expressão de Victor. Algo havia mudado.
— Você também consegue?! — O tom de Victor era eufórico. Ele se afastou, observando Gabriel como se visse um milagre diante de si.
— Do que está falando? O que eu consigo?! — Gabriel gritou, sentindo que finalmente podia mover o braço direito.
— Minha nossa... Parece que tenho um filho muito mais promissor do que os outros que criei!
Aquelas palavras atingiram Gabriel como um soco. Seu criador? Aquilo não fazia sentido. A voz que ouvira em seus sonhos, em sua primeira noite como vampiro, não era exatamente igual à de Victor.
— Filho?
— De que adianta explicar, se posso mostrar? — Victor se afastou, levantando a mão em direção a Gabriel.
O que aconteceu em seguida foi intenso e doloroso. Gabriel sentiu as presas crescerem, como na noite do necrotério. Suas gengivas latejavam e sangravam, enquanto seus olhos brilhavam sem controle. O mais estranho era a sensação de seu sangue se movendo violentamente dentro do corpo.
Victor arregaçou a manga da capa de chuva, revelando um braço desnudo, com veias saltadas. Com a outra mão, agarrou os cabelos de Gabriel, forçando-o a arquear o pescoço para trás. A boca do jovem vampiro se abriu, suas presas à mostra.
Victor então aproximou o braço do rosto dele.
Uma agitação estranha percorreu Gabriel, como se seu corpo clamasse por aquilo. Sentindo-se livre da paralisia, agarrou o braço do vampiro com ambas as mãos e, por fim, cravou os dentes na carne macia e fria.
— Lembre-se... — Victor murmurou. — As respostas que você tanto busca estão no sangue.
Porque sangue é vida! Gabriel completou em sua mente.
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