29. Rota de colisão
"Tome a aula de hoje como dever de casa."
As palavras duras e secas de Miguel ainda ecoavam no fundo da mente de Gabriel, enquanto ele encarava o quadro branco à sua frente, os rabiscos de geopolítica parecendo insignificantes diante do turbilhão de pensamentos que carregava.
A sala de aula estava abafada, como sempre. O ar-condicionado quebrado fazia com que os ventiladores no teto girassem preguiçosamente, espalhando pouco mais que um sopro de ar morno. O cheiro de papel, tinta de caneta e o perfume barato de alguns colegas pairava no ambiente.
A professora, uma senhora de óculos de armação grossa e cabelos grisalhos presos num coque frouxo, tentava manter a atenção dos alunos, mas a maioria parecia alheia à aula. Alguns rabiscavam cadernos, outros trocavam mensagens escondidas sob as carteiras. Um grupo mais ao fundo ria baixinho, possivelmente zombando da professora, como sempre faziam.
Gabriel tamborilou os dedos na carteira, o olhar perdido na cadeira vazia que antes era ocupada por Vanessa. A garota ruiva, atrevida e de certo modo destemida, que insistira em se aproximar dele, sem saber quem ele era de verdade. Sem saber do perigo que ele representava.
A culpa apertou seu peito. Não faziam ideia de onde ela estava, nem do que ele pretendia fazer com ela.
Um ruído baixo o tirou de seus pensamentos. Cochichos.
Com sua audição apurada, captou as vozes sussurradas entre os alunos.
— Foi ele.
— Desde que chegou, coisas estranhas começaram a acontecer.
— Você viu como ele sempre fica sozinho? Sinistro.
— Não podemos fazer nada para quebrar o encanto sobre Hélio? — Gabriel perguntou, sem rodeios, enquanto caminhava ao lado de Miguel.
A noite já havia caído, e as ruas estavam tomadas pelo brilho amarelado dos postes, que lançavam sombras compridas ao longo da calçada.
O mais velho suspirou.
— Gostaria que fosse tão simples — disse, sem encará-lo. — Mas se quebrarmos o encanto, ele se tornará um risco para nós.
O tom de voz de Miguel carregava algo difícil de decifrar, mas antes que Gabriel pudesse insistir, ele continuou:
— Mas devo admitir, sua desculpa foi boa. A partir de amanhã, Ana ficará com você na escola.
Gabriel parou por um instante, franzindo o cenho.
— Isso não vai irritá-lo ainda mais? — Sua mente voltou ao momento em que Vanessa foi levada. Tão perto dele. E ele não pôde fazer nada.
Miguel cruzou os braços, analisando-o.
— Ana não é tão inexperiente quanto você pensa.
— Não é isso... — Gabriel hesitou. — E se ela não for o bastante para contê-lo?
Miguel suspirou mais uma vez, agora com um toque de impaciência.
— Sei que está assustado, mas não temos outra alternativa. Lúcia não aceitará falhas nessa missão.
Ele massageou as têmporas, como se a conversa já estivesse drenando sua paciência.
As palavras de Miguel ainda rodavam em sua mente enquanto Gabriel voltava para a sala de aula no dia seguinte. O ambiente estava tão caótico quanto sempre: cadeiras rangendo no chão, folhas sendo passadas de um lado para o outro, vozes misturadas em conversas paralelas. Um aluno na fileira ao lado desenhava no caderno em vez de copiar a matéria. Uma garota duas carteiras à frente se revirava no assento, impaciente.
Antes mesmo de cruzar a porta, Gabriel já havia captado um novo detalhe perturbador: ouviu professores comentando sobre a mãe de Vanessa.
— Ela é policial, sabia?
— Está inconsolável. E não vai descansar até encontrá-la.
Gabriel sentiu um calafrio subir por sua espinha.
Ele deslizou para sua cadeira, tentando ignorar os olhares que, vez ou outra, se voltavam para ele.
Mas, mesmo quando desviava os olhos, não conseguia afastar da mente aquela voz rouca, baixa e ameaçadora que o atormentava sempre que fechava os olhos.
"Vou deixar um aviso."
E então, os gritos. Sempre os gritos.
Assim como naquela noite, antes de tudo escurecer.
Um aroma familiar pareceu percorrer os corredores do colégio. Gabriel sentiu um súbito arrepio, o mesmo que Miguel o fizera sentir antes de partir para cima, e o mesmo que aquele vampiro o fez sentir noite passada. Não precisou pensar duas vezes, sabia o que aquilo significava: vampiros.
Rapidamente, o novato pediu permissão à professora para ir ao banheiro. Os olhares dos colegas recaíram sobre ele, curiosos ou julgadores, como se esperassem sua próxima ação, quem seria o próximo a desaparecer. Gabriel ignorou a pressão sufocante desses pensamentos.
Miguel estava certo. Ele era humano demais e precisava agir como o predador que era. Lançou um olhar para um dos garotos que o encarava. O coração do jovem disparou, e ele desviou o rosto. Gabriel sentiu uma ponta de satisfação ao vê-lo recuar.
Assim que saiu da sala, paralisou. Uma estranha aura o convidava a revelar sua verdadeira natureza. O perfume de jasmim misturava-se ao cheiro metálico de sangue, instigando seus instintos. Seus olhos quase brilharam em um vermelho intenso.
— Tenho um aqui comigo — disse Ana através do elo mental.
— Acho que também tenho um no segundo andar — respondeu Gabriel.
Diante dele, Vanessa surgiu, desorientada. Os cabelos ruivos grudavam em seu rosto sujo de sangue. As roupas, encardidas, exalavam um cheiro pútrido, como se tivesse vagado pelos esgotos. Mas ela parecia alheia ao próprio estado.
Gabriel ergueu as mãos e se aproximou devagar.
— Vanessa? — chamou com cautela. — Tá tudo bem?
A garota meneou a cabeça em um gesto hesitante, mas não respondeu. Gabriel deu mais alguns passos, um alerta instintivo soando dentro de si.
— Não sei o que fizeram com você, mas prometo que estou aqui para ajudar — disse, mantendo as mãos visíveis.
— Agora ela sabe o que vocês são — sussurrou aquela voz fantasmagórica em sua mente. — Eu avisei para não ficar no meu caminho!
Antes que pudesse reagir, uma energia avermelhada envolveu Vanessa. Ela soltou um grito angustiante, lágrimas deslizando pelo rosto ensanguentado. Seu corpo se contorceu, a pele empalidecendo de maneira antinatural. As pontas dos dedos se alongaram, formando garras afiadas.
— Ele tá por aqui! — Gabriel alertou pelo elo mental.
— Já percebemos — Ana respondeu, sarcástica. — Sua amiga não foi a única...
Antes que Gabriel compreendesse a gravidade da situação, um vulto apareceu diante dele, lançando-o contra a parede. O impacto foi brutal. Seu corpo protestou em dor enquanto ele tentava recuperar o fôlego. Mal teve tempo de se levantar quando Vanessa, agora transformada, avançou.
Seus golpes eram brutais, os braços deformados cortavam o ar com força destrutiva. Gabriel se esquivava por instinto, mas cada ataque errante destruía pedaços do corredor. Pedaços de concreto se espalhavam pelo chão. Um corte ardente surgiu em seu rosto, e ele sentiu o sangue quente escorrer pela bochecha.
A cada esquiva, Vanessa soltava gritos agudos, atraindo a atenção dos alunos e professores. Gabriel percebeu o risco iminente. As lições de Miguel ecoaram em sua mente. Fechou os olhos por um instante e desejou desaparecer.
Num piscar de olhos, a criatura à sua frente perdeu a noção de sua presença. Gabriel então avançou com precisão, ressurgindo bem diante dela. Seus dedos se fecharam no colarinho do uniforme da garota. Antes que os curiosos inundassem os corredores como formigas, os dois desapareceram no ar.
Os dois atravessaram boa parte do colégio enquanto Vanessa se debatia em uma tentativa desesperada de se libertar do aperto de Gabriel. Num piscar de olhos, reapareceram no estacionamento da escola. O impacto foi brutal. O corpo da garota colidiu contra o capô de um dos carros estacionados, afundando o metal com a força da pancada. O alarme disparou, um som estridente e insistente que ecoou pelo campus, aumentando ainda mais o alvoroço.
O barulho era insuportável para ambos, mas Vanessa parecia ser a mais afetada. As criaturas noturnas possuíam sentidos aguçados, e aquele ruído agudo fazia sua recém-transformada mente entrar em colapso. Gabriel sabia que, se a luta se prolongasse ali, mais pessoas viriam investigar. E ele não podia permitir isso.
Ouviu passos apressados se aproximando. Humanos ou vampiros? Não teve tempo de descobrir. Num instante de distração, Vanessa avançou novamente. Suas garras rasgaram o peito de Gabriel, a dor ardendo como fogo. Antes que pudesse reagir, foi arremessado contra a lateral de outro carro, o impacto fazendo a lataria ranger sob seu peso.
"Aceite o vazio."
A voz de Miguel ecoou em sua mente.
"Você ainda age como um humano. Você é um predador!"
O estacionamento era escuro, a iluminação falha, lançando sombras irregulares pelo chão. Gabriel sentiu-as chamando por ele, envolventes, vivas. Como instinto, tocou uma delas e percebeu que eram mais do que meras projeções—eram um caminho. Seu olhar brilhou em um tom carmesim, e então, como se estivesse se dissolvendo no próprio ar, desapareceu.
Vanessa rosnou, farejando o ambiente, os olhos frenéticos buscando qualquer movimento. Ela escutava, sentia, mas não via. Gabriel, por outro lado, enxergava claramente. Dentro das sombras, o mundo parecia distorcido, como se estivesse imerso em um oceano negro e silencioso. Tudo ao seu redor era um borrão escuro, exceto por uma silhueta avermelhada—Vanessa.
Ele se moveu com cautela, sentindo a energia pulsar ao seu redor, antes de reaparecer atrás dela. O primeiro golpe a atingiu em cheio nas costas. Um rugido de dor escapou da criatura. Sem tempo para reagir, ela recebeu outro ataque, sendo forçada a recuar.
E então, Gabriel sentiu a presença de outras pessoas.
Vanessa congelou, os olhos arregalados ao reconhecer uma nova ameaça.
A poucos metros dali, uma mulher segurava uma pistola, as mãos trêmulas. Seu olhar hesitante se fixou na garota transformada, e o choque estampou-se em seu rosto.
— Que porra é essa...? — A voz de Patrícia falhou. Ela apertou mais o cabo da arma, mas sua mente estava presa a outra coisa. Aqueles cabelos vermelhos, aquele rosto, mesmo distorcido...
Vanessa gritou. Um som selvagem e lancinante. Patrícia não conseguiu suportar. A pistola escapou de seus dedos e caiu no chão.
A garota não hesitou. Com um salto ágil, atravessou o muro e desapareceu na noite.
Rodrigues apareceu logo atrás da parceira, atento à movimentação. Mas algo mais chamou sua atenção.
Havia mais alguém ali.
Diferente de Patrícia, ele viu claramente a figura de Gabriel materializando-se das sombras. O rapaz de cabelos cacheados, pele morena e olhos brilhantes.
Rodrigues soube imediatamente.
Ele já tinha visto aquele rosto antes. Nos relatórios. Nas investigações.
— Então é você... — murmurou, estreitando os olhos. A raiva em sua voz era quase palpável.
Gabriel congelou.
— Parado! — Rodrigues ergueu a arma sem hesitação, a mira fixa no peito do vampiro.
Os olhos dos dois se encontraram.
Rodrigues não estava surpreso. Ele já suspeitava. Já sabia.
— Gabriel, não é? — O policial quase cuspiu o nome. — Você tem ideia do que fez?
O jovem vampiro permaneceu imóvel. Seu instinto gritava para fugir, mas algo na intensidade daquele olhar o mantinha preso no lugar.
Rodrigues puxou o gatilho.
O disparo ecoou, e Gabriel só teve tempo de se mover no último instante.
A bala passou rente ao seu braço, queimando sua pele antes de atingir o retrovisor de um carro.
Mas Rodrigues não ia parar.
Antes que outro tiro fosse disparado, Gabriel se desvaneceu nas sombras, ouvindo, ao longe, a voz do policial reverberar no estacionamento.
— Você não pode fugir para sempre!
O aviso ficou no ar. Mas Gabriel já não estava ali para ouvi-lo.
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