27. Caminho pelo Vale das Sombras
Gabriel passou um tempo incerto sozinho no escuro, dentro do prédio abandonado. O cheiro acre de urina estagnada, lixo e dejetos humanos impregnava o ar como uma névoa sufocante. Ratos remexiam os cantos úmidos, seus pequenos corpos ágeis deslizando entre pilhas de entulho e destroços. O silêncio ali dentro era pesado, quebrado apenas pelo ocasional gotejar de água que caía de alguma infiltração nas paredes descascadas. Somente agora, sem a necessidade imediata de se defender da lição imposta por Miguel, ele pôde perceber de verdade o estado degradado do lugar.
Sentou-se no chão frio, encostado a uma viga corroída pelo tempo, e colocou a cabeça entre as pernas. Deixou que tudo o que fervilhava dentro de si finalmente vazasse. Seus olhos se acenderam em um brilho rubro e, tomado por uma cólera sufocante, ele gritou. Um urro rasgado e oco, tão forte quanto seus pulmões já não funcionais permitiam. Em um ímpeto de fúria, esmurrava a viga ao lado, sentindo o impacto ressoar em seus ossos. Um pedaço do concreto se desprendeu e caiu com um estrondo seco, levantando uma poeira espessa que se misturou ao cheiro pútrido do ambiente.
As palavras de Miguel ecoavam em sua mente, afiadas como lâminas. O que mais o enfurecia era perceber que, apesar de tudo, ainda era o mesmo. Fraco. Sempre evitara brigas na escola, sempre soubera que, se se envolvesse em alguma, sairia em desvantagem. Ele era coração demais para esse mundo. Mas agora? Agora tudo havia mudado. Ele não era mais aquele Gabriel. Não era sequer humano. Tinha que beber sangue para sobreviver. Tinha que lutar. E, o pior de tudo, a agressividade crescente dentro dele o aterrorizava. Uma besta raivosa e implacável habitava seu íntimo. Desde sua transformação, desde o ataque ao frentista, desde que feriu seu melhor amigo... Ser ele mesmo se tornara algo assustador.
— Ei! Que ideia é essa?! — uma voz cortou a escuridão.
Gabriel ergueu a cabeça bruscamente. Seus olhos, já tingidos de escarlate, enxergaram com clareza absoluta a figura que se destacava entre sombras. Um homem magro, de roupas sujas e esfarrapadas, o encarava com curiosidade.
— É melhor você sair daqui... — Gabriel rosnou, ainda tomado pelo resquício de sua fúria.
— Não, acho melhor você se acalmar. Não é muito legal sair destruindo o local de descanso dos outros... — O tom do homem era tranquilo, quase casual.
Gabriel estreitou os olhos e o analisou por um instante. Em um piscar de olhos, surgiu à frente do estranho. Porém, algo inesperado aconteceu. O homem não recuou. Não se assustou. Apenas sorriu de forma enigmática.
— Belo truque! Acho que também sei fazer... — disse ele, antes de seu corpo simplesmente se desmaterializar entre os dedos de Gabriel.
Gabriel recuou um passo, sentindo um arrepio frio subir por sua espinha.
— Você... morreu aqui? — A pergunta escapou de seus lábios em um fio de voz, enquanto um nó se formava em sua garganta.
O estranho inclinou a cabeça, como se ponderasse a questão.
— Morri? — repetiu, franzindo o cenho. — Talvez? Faz tanto tempo, nem me lembro mais...
— O que aconteceu?
— Sei lá, devo ter me acidentado... — respondeu com um dar de ombros. — Mas isso não importa. Ficou no passado.
Gabriel olhou ao redor. Aos poucos, outras figuras translúcidas emergiam das sombras. Alguns acenavam, outros cochichavam entre si. Um deles, um velho de chapéu panamá, o observava com um olhar severo.
— Não vai fazer escândalo de novo, vai? — o velho perguntou.
— Eu...
— Se for gritar, ao menos avise antes, pra gente preparar a pipoca — disse uma mulher de vestido dos anos 50, abanando-se com desdém. — Drama, drama...
— Vamos respeitar, pessoal. O menino está confuso — ponderou um senhor engravatado.
— Óbvio que está! Ele é um vampiro emo! — O homem magro riu. — Qual é o próximo passo? Escrever poesias sobre a eternidade?
Gabriel suspirou, esfregando as têmporas. Fantasmas eram piores que humanos em fazer piada com a desgraça alheia.
— Eu vou embora... — murmurou, desaparecendo dali.
— Ei! Talvez você devesse repensar sua atitude defensiva! Vai ser difícil ter alguém pra conversar desse jeito! — A mulher de cinquenta anos gritou.
Gabriel correu o mais rápido que pôde daquele lugar. O sol já não era mais um empecilho. Sua luz tirana e cruel há pouco havia se desvanecido. Agora, o céu de São Paulo exibia algumas poucas estrelas. A escuridão ganhava espaço em cantos onde a iluminação urbana mal conseguia alcançar. Ele atravessou as ruas da cidade em disparada, movendo-se com uma velocidade sobrenatural. Passou por carros e motos tão rapidamente que quase não os percebeu. O vento cortava seu rosto, carregando os cheiros da noite: o doce aroma das presas desavisadas que caminhavam pelas ruas escuras, o cheiro acre da fumaça dos escapamentos, o perfume inebriante dos humanos misturado ao das comidas preparadas nos restaurantes e barracas do centro. A sensação de liberdade, conquistada a um preço alto, arrancou um sorriso de seus lábios. Quando finalmente parou, percebeu estar diante de um lugar familiar.
As pessoas passavam por ele sem notar sua chegada repentina. Naquela selva de gente, ele era apenas mais um. As luzes fracas dos postes lançavam sombras alongadas no chão enquanto Gabriel fitava o enorme portão de ferro verde desbotado, que rangia vez ou outra ao sabor do vento. Lembrou-se das palavras daquele fantasma.— Não tem ninguém com quem possa conversar?
— Não sei se existe alguém assim pra mim... — murmurou, dessa vez com um tom mais confiante, embora ainda melancólico.
Saltou o muro branco e desgastado e invadiu o cemitério mais uma vez. As lápides e as construções imponentes, de tempos distantes, pareciam sussurrar histórias esquecidas. As estátuas silenciosas o observavam, testemunhas eternas da vida e da morte. Ao longe, viu a pequena capela no coração do cemitério.Ouviu passos lentos e cadenciados. Provavelmente alguém terminava de limpar os túmulos. Um homem velho saiu da capela e trancou a porta com calma. Gabriel não era o único a observá-lo. Outros espectadores começaram a emergir das sombras, e o cemitério, outrora silencioso, recobrava vida sob seus olhos imortais.A nostalgia o envolveu. Foi ali, naquele solo sagrado, que encontrou seus primeiros amigos nesta nova existência—se é que poderia chamá-los assim.
— Gabriel, meu querido — a voz doce da psicóloga o cumprimentou.
— Olha só quem resolveu se juntar aos velhos fantasmas da Consolação! — A voz irreverente de Fernando quebrou o silêncio constrangedor que pairava no ar.
O fantasma de bigodes finos aproximou-se, analisando Gabriel com um olhar atento. Deu uma volta ao seu redor antes de finalmente abrir um sorriso e envolvê-lo num abraço apertado.
— Bom te ver também... — Gabriel murmurou, retribuindo o gesto.
— Meu amor! — Joana surgiu por trás e o envolveu num abraço efusivo.
— O que te trouxe aqui, menino? — questionou Seu João, franzindo o cenho.
— Eu... — Gabriel tentou responder, mas as palavras morreram em sua garganta.
Isabel observava em silêncio, mas seu olhar transparecia alívio e uma felicidade contida ao revê-lo.— Acho que ele veio atrás de ajuda — disse a psicóloga, analisando-o com atenção.
— O quê? — Gabriel balbuciou, surpreso. — Por que acha isso?
— Ih, é verdade! — Fernando apontou para ele com um sorriso maroto. — Tá com uma cara de coitado...
— Hora da terapia! — Joana anunciou animada, segurando as mãos da jovem terapeuta.
Gabriel suspirou, rendendo-se ao inevitável. No fundo, sabia que eles estavam certos.
Joana, sempre enérgica, puxou Gabriel e a jovem psicóloga pelas mãos, arrastando-os para uma das alamedas do cemitério, onde alguns bancos de concreto resistiam ao tempo e às pombas desrespeitosas. Ali, a fantasma o posicionou de frente para a terapeuta, enquanto os outros espíritos se ajeitavam ao redor como uma plateia fantasmagórica, prontos para a sessão de terapia mais bizarra da história.
O silêncio se estendeu por um tempo desconfortável. Gabriel sentia o peso dos olhares sobre si — e olha que nem todos ali tinham olhos de fato. O nó em sua garganta apertava. Respirou fundo, um hábito humano teimoso que insistia em manter, e olhou para o céu. As folhas dos ipês começavam a florir, indiferentes ao seu drama existencial.
— O que te trouxe aqui hoje? — A terapeuta perguntou, sua voz suave, mas firme. A típica fala de quem já viu de tudo e ainda tem paciência para lidar com almas perdidas... literalmente.
Gabriel desviou o olhar, desejando intensamente que a pergunta fosse para outra pessoa. Infelizmente, não havia escapatória.
— Bem... eu...
— Você...? — Fernando o incentivou, o tom brincalhão menos evidente desta vez.
— Eu... — Gabriel hesitou, sentindo os olhares expectantes. Era pior que prova surpresa na escola.
— Gabriel, lembre-se: este é um ambiente seguro — a terapeuta o encorajou.
Ele soltou uma risada amarga, que mais parecia um engasgo frustrado. Seguro? No meio de um cemitério, cercado por fantasmas e sua própria consciência sufocante?
— Eu me sinto perdido — confessou, quase num sussurro. — O vampiro que me criou fez contato comigo na escola onde estou infiltrado pela Casa das Rosas. Ele quer que eu lute, que abrace minha nova... natureza. Mas eu sei o que acontece quando eu perco o controle.
A terapeuta inclinou a cabeça, intrigada.
— E por que você teme esse seu outro lado?
Gabriel soltou outra risada, sem humor.
— Porque eu matei duas pessoas. Um frentista... e meu melhor amigo morreu por minha causa. O Conselho dos Sete o encontrou por minha culpa.
O silêncio que se seguiu foi tão pesado que até as almas penadas pareceram prender a respiração. Joana levou a mão ao peito, os olhos marejados.
— Eles...? — Ela não teve coragem de completar a frase, mas Gabriel assentiu.
— Sim. Eles o mataram por minha causa — sua voz vacilou. — Se eu tivesse ficado longe... se tivesse sido mais forte...
A terapeuta se inclinou um pouco para frente, seu olhar carregado de compreensão.
— Gabriel, você não precisa carregar esse peso sozinho. O que aconteceu não foi culpa sua.
— Como não?! — Ele explodiu. — Se eu não tivesse perseguido meu amigo, nada disso teria acontecido! O Conselho não teria descoberto ele, e ele... ele...
Engoliu em seco. A culpa se enrolava ao seu redor como uma cobra faminta. O peso da dor transbordou, e Gabriel se levantou abruptamente, socando o tronco de um ipê. A árvore protestou silenciosamente, deixando escorrer sua seiva, enquanto o punho de Gabriel marcava a madeira com fissuras. Ele golpeou novamente, e outra vez. Cada impacto parecia ecoar o grito sufocado dentro dele.
— Escuta — a voz de Isabel quebrou o silêncio. Todos se viraram, surpresos. Até Fernando e Joana trocaram olhares curiosos.
A fantasma caminhou até Gabriel, seu andar leve contrastando com a tempestade dentro dele. Parou ao seu lado e pousou uma mão firme sobre seu ombro.
— O que aconteceu foi uma tragédia. Mas você não tinha como saber que o Conselho já estava de olho em você. Você era só um garoto jogado em um mundo que ninguém lhe explicou direito. E, mesmo assim, você se segurou. Você não matou seu amigo. Isso já diz muito sobre quem você é.
Gabriel engoliu em seco. As palavras dela o acertaram como um golpe bem dado. A terapeuta aproveitou o momento.
— Fugir da sua natureza não é uma opção. Você é um vampiro agora. Mas isso não significa que precise ser um monstro. Você pode escolher quem deseja ser.
— E se eu me perder? — Ele sussurrou, fixando o olhar no chão.
— Então sempre volte ao lugar onde se sente em casa. Onde possa lembrar quem você foi e quem ainda pode ser.
— E se eu nunca mais atravessar a porta vermelha? Se eu ficar preso para sempre no vazio? — Sua voz era um fio hesitante, carregado de medo.
A terapeuta franziu a testa.
— Não sei exatamente o que essa porta representa para você, mas... se ficar preso nesse vazio te assusta, tente encontrar algo que valha a pena para voltar.
Gabriel apertou os lábios, hesitante.
— Acho que já não tenho mais nada assim...
Isabel ergueu seu queixo com delicadeza, forçando-o a encará-la nos olhos cerúleos, firmes como o próprio destino.
— Então cabe a você encontrar algo tão valioso quanto o que perdeu.
O vento balançava as folhas das árvores, como se o próprio cemitério segurasse a respiração junto a ele. Gabriel deixou as palavras ressoarem dentro de si, sentindo algo diferente surgir no meio do caos.
— Acho que vale a pena tentar... — disse, incerto, mas com um brilho tímido de determinação.
Joana sorriu, Fernando bateu palmas de leve, e Seu João assentiu com um olhar de aprovação.
Gabriel olhou ao redor, as palavras de Miguel sobre sua humanidade ecoando em sua mente. Sentiu a confiança crescer um pouco mais. Fechou os olhos e inspirou o ar noturno, absorvendo a cidade dentro de si. O cheiro das ruas, os rastros sutis de vida pulsando ao seu redor. E, como um fio invisível, a ligação com seu servo apontava o caminho.
Era hora de voltar. Sua missão ainda não tinha acabado.
Ele desapareceu, uma sombra viva deslizando pelas ruas de São Paulo. Talvez — só talvez — tivesse começado a acreditar que ainda havia um caminho para ele. Bastava dar um passo de cada vez.
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