26. Aceite o vazio
Gabriel não compreendia bem por que Miguel o acordara tão cedo. Sem muitas explicações, apenas pediu que o acompanhasse. Os dois seguiram até a porta, enquanto Ana ficou para montar guarda e cuidar de Hélio. Miguel lançou um olhar para as duas figuras ocultas nas sombras, seus guias até o estacionamento. Eles os levaram até um carro preto, janelas escurecidas pelo insulfilm, uma proteção contra os raios solares.
O quarteto avançou pelas ruas de São Paulo como se nada estivesse acontecendo. Gabriel, recostado no banco traseiro, observava o sol brilhando através do vidro escuro. Um aperto tomou seu peito. Sentiria falta de terminar as tardes na praça, assistindo ao pôr do sol ao lado dos amigos. E, acima de tudo, ao lado de Diego.
— Para onde estamos indo? — rompeu o silêncio, a voz baixa, mas carregada de expectativa.
Miguel, sentado à frente, respondeu sem rodeios:
— Para um lugar onde possamos ser nós mesmos sem medo.
Gabriel franziu o cenho, sem compreender totalmente, mas tinha certeza de que não voltariam ao complexo. Lúcia jamais permitiria isso sem uma pista concreta sobre os ataques. Não demoraram a chegar ao destino: um prédio abandonado, com fachada pichada, janelas estilhaçadas e faixas de interdição pendendo das paredes como avisos esquecidos.
Miguel abriu a porta primeiro. Só então Gabriel entendeu a utilidade do enorme guarda-chuva preto que ele carregava. O mais velho esticou a perna para fora. Mesmo coberta pela calça escura, a pele ardeu sob o toque impiedoso do sol. Rapidamente, abriu o guarda-chuva e saiu por completo da segurança do carro.
Gabriel hesitou. O olhar severo de Miguel o fez reconsiderar. Respirou fundo, colocou a perna direita para fora e, no mesmo instante, sentiu a queimadura impiedosa da luz solar. A sensação era como ser consumido por chamas invisíveis.
Não havia tempo a perder. Com passos rápidos e furtivos, cruzaram a rua, evitando olhares curiosos. O guarda-chuva oferecia alguma proteção, mas não podiam depender dele por muito tempo. Entraram no edifício abandonado, mergulhando na escuridão, onde a luz do dia não os alcançaria.
Gabriel seguiu o vampiro mais velho para dentro do prédio. Miguel queria esse encontro para avaliar o quanto seu protegido conhecia sobre suas próprias habilidades. Tinha noção de que Gabriel sabia algumas coisas, mas acreditava que o jovem vampiro ainda não compreendia como seus dons noturnos funcionavam. Oferecer-lhe um pouco de orientação não faria mal algum. Pelo menos era o que pensava...
— Me diga, garoto, você sabe o que pode matar um vampiro? — Miguel perguntou repentinamente, pegando o novato de surpresa.
Gabriel levou algum tempo para pensar antes de responder. No entanto, recordou-se de uma de suas experiências de quase morte.
— Luz do sol... e outros vampiros? — respondeu com certa hesitação. O mais velho achou a resposta inusitada.
— Falando por experiência própria?
Gabriel anuiu. Miguel esperava por mais alguma resposta, mas o silêncio se prolongou. Ele suspirou, então começou a explicar:
— O sol é uma das formas usadas para nos matar... é lento e doloroso — disse, revelando por um instante uma careta, talvez fruto de alguma memória indesejada. — Muitos vampiros utilizavam esse método cruel quando o sentenciado havia cometido um crime grave aos olhos do Conselho.
— E o que fez o Conselho mudar de ideia? — Gabriel perguntou, incapaz de conter a curiosidade.
— Humanos — revelou Miguel. — Muitos caçadores que descobriram nossos esconderijos, nos arrastavam para fora deles e nos acorrentavam com prata e deixando-nos morrer ao sol. — Gabriel tentava imaginar tudo o que Miguel presenciara em sua longa existência. Por um breve momento, sentiu pena de seu tutor. — E como você mesmo percebeu, a prata também nos causa mal, podendo nos matar se atravessar nosso coração.
— Eu descobri sobre o sol da pior maneira — Gabriel revelou, achando que poderia diminuir a barreira entre eles. — Minha primeira noite após despertar como vampiro me fez buscar abrigo no cemitério onde me encontraram. Nunca senti tamanha dor. Foi assustador.
— Você teve sorte. Já vi muitos vampiros recém-criados morrerem ao descobrir que não podiam mais viver suas vidas anteriores.
— De certa forma — Gabriel sussurrou, acreditando que só ele poderia ouvir. Mas Miguel escutou, enquanto observava os braços queimados do aprendiz.
— Depois do sol, podemos falar de algo mais físico, como decapitação. — Miguel revelou, trazendo uma pontada de preocupação ao jovem.
— Eu terei de lutar com outros vampiros? — Gabriel perguntou, analisando o espaço amplo e abandonado ao redor.
— Espero que não, mas nunca se sabe. — Miguel estudava o rapaz mais alto.
Gabriel sentiu os olhos negros como a noite de seu tutor lhe fitarem, causando-lhe um arrepio, uma sensação de perigo iminente.
Antes que pudesse reagir, sentiu um golpe forte no estômago que o arremessou contra a parede do corredor. Assustado, olhou para Miguel, que parecia estar exatamente onde estivera momentos antes, como se nunca tivesse se movido.
— Você nem sabe o básico — Miguel declarou com frieza. Suas palavras cortaram Gabriel como lâminas de prata. — Ophélia tinha razão, você é patético. Primeiro de tudo, você é um predador e precisa agir como tal. Se revelar sua intenção, qualquer criatura poderá escapar ou contra-atacar. — O mais velho apontava sem rodeios as falhas do aluno. Gabriel encarou o chão, furioso. Seus olhos adquiriram a típica coloração escarlate, enquanto os de Miguel permaneceram inalterados. — Não se acomode, garoto. Sua vida ainda está nas mãos de Lúcia, e se não demonstrar talento algum, ela não hesitará em acabar com sua existência. — Alertou enquanto Gabriel se levantava, pronto para contra-atacar, mesmo sabendo que não levaria a lugar algum.
— Onde pensa que vai? — Miguel o repreendeu ao vê-lo se afastar às pressas.
— Ir embora enquanto consigo. Se eu ficar, vou acabar morto! — Gabriel vociferou, frustrado.
— Se sair desta sala, aí sim será um vampiro morto, e eu mesmo me certificarei disso.
O novato não escondeu sua irritação, mas não se daria por vencido. Virou-se na direção de Miguel, mas percebeu que ele já não estava mais lá. Em sua cabeça, era como se o mais velho tivesse se tornado invisível. Repentinamente, sentiu outro golpe e foi jogado ao chão novamente.
Gabriel sentiu um arrepio percorrer sua nuca, deixando-o completamente rígido. Pela primeira vez, Miguel demonstrava real intenção de feri-lo. Olhou ao redor, e não encontrou nada, e num piscar de olhos, seu tutor já não estava mais próximo da coluna quebrada. E sim diante dele. Ele sentiu a pequena mão do mais velho fechar-se ao redor de sua garganta, enquanto a outra repousou sobre o ombro, forçando-o a manter os pés firmes no chão.
Gabriel tentou se debater, mas Miguel não demonstrava qualquer emoção. Por um instante, achou que morreria ali mesmo. Para seu alívio, o mais velho afrouxou o aperto e o empurrou para trás, fazendo-o cair sentado no chão.
— Sua humanidade é sua melhor qualidade, mas também seu pior defeito. Você age como um humano, é dominado por emoções e impulsividade. — As palavras o fizeram recordar da câmara onde fora julgado pelo Conselho e do medo ao ser descoberto por Diego. — Um predador não pode ser impulsivo, precisa ser calmo, ocultar sua intenção. É por ser descuidado que conseguimos rastreá-lo. — Gabriel sentiu-se patético. Ophélia e Miguel tinham razão. Ele não era ameaça para ninguém. — Levante-se! — Miguel ordenou.
O novato obedeceu em silêncio. Seu tutor caminhou até ele, parando atrás. Sentiu o toque de Miguel em seu ombro, surpreendentemente gentil.
— Feche os olhos — Miguel ordenou. Gabriel hesitou, mas acatou. — Sinta tudo ao seu redor, diminua os batimentos do coração. Fique em completo silêncio. Seu único desejo deve ser desaparecer. — Miguel instruiu.
Ele tentou. Focou na respiração, na pulsação vibrante. Aos poucos, se acalmou. O mundo parecia opressor, mas ele sentia Miguel atrás de si, não pelo toque frio, mas porque de alguma forma sabia. Como se captasse a energia do outro vampiro.
Teve uma epifania. Finalmente compreendeu. Estava todo bagunçado, fácil de ser lido. Parou de respirar, e não se desesperou. Seu coração bateu mais fraco, até quase silenciar.
Sentiu-se imerso na escuridão, um vazio absoluto. De repente, o medo cresceu. Tentou gritar, mas nenhum som saiu.
— Aceite o vazio! — Miguel ordenou, sua voz soando poderosa como trovão.
O silêncio tornou-se insuportável. O medo deu lugar à frustração.
— Aceite o vazio! — Miguel repetia como um mantra.
Tudo que antes parecia silencioso, agora estava completamente barulhento, impossível de suportar. Gabriel sentiu como se fosse capaz de resistir, e o medo já não era mais a única coisa que lhe fazia companhia. A frustração também passou a ganhar espaço dentro de si.
— JÁ ESTOU TENTANDO! OLHA ONDE ISSO ME DEIXOU! — gritou, mas não ouviu a própria voz, e tudo o que pôde sentir de fato, era uma fúria que crescia incontrolável.
— Desperte! — Miguel ordenou.
Gabriel sentiu uma estranha onda de energia o acertar, depois disso, teve a sensação do seu corpo estar sendo puxado em direção a algum lugar desconhecido. Ele parecia estar imóvel, no entanto, tinha a impressão de se movimentar perfeitamente através da escuridão. Como se atingisse com tremenda violência camadas e mais camadas de puro concreto. Não demorou muito para ver uma velha conhecida — a porta vermelha.
As linhas invisíveis continuaram puxando-o contra a porta. Gabriel fechou os olhos, tinha certeza de que o impacto viria, e estava preparado para recebê-lo por todo o corpo, mas estranhamente não aconteceu nada. Nenhuma dor física podia ser sentida. Ele despertou, assustado.
Olhou para todos os lados, e estava de volta ao prédio abandonado com Miguel observando-o. Seu semblante era de decepção.
— Enquanto não aprender a aceitar o vazio, não passaremos para o próximo passo — disse, virando-se para sair.
— Agora pouco, você quase me matou porque eu não queria continuar, e agora você tá me deixando? — Gabriel vociferou, frustrado.
— Não há mais nada para ensinar hoje. Vamos para casa. Depois, você voltará à escola e refletirá sobre a lição. — Miguel desapareceu na escuridão, deixando Gabriel sentado, sozinho e coberto de poeira.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro