23. Estranhas coincidências
Rodrigues encarava o envelope abandonado em sua porta como se fosse uma charada deixada para ele decifrar. A luz amarelada do corredor tremeluzia, lançando sombras inquietas sobre o objeto. Ele olhou de um lado para o outro, tentando captar qualquer sinal de movimento, mas tudo parecia silencioso. Silencioso demais.
Quem teria deixado isso? Por quê?, pensou. Suas mãos hesitaram ao pegá-lo. Era leve, mas tinha alguma rigidez em seu interior. Chacoalhou levemente; nenhum som suspeito. Ainda assim, um desconforto rastejava sob sua pele.
Entrou em casa e fechou a porta com firmeza, travando o trinco e deslizando a corrente de segurança. Já havia testemunhado o bastante para saber que portas abertas nunca trazem boas notícias. O envelope agora estava sobre a mesa da cozinha, ao lado do jantar que já esfriava.
Rodrigues puxou a cadeira e sentou-se. Por alguns instantes, ficou encarando o objeto como se este pudesse, sozinho, revelar seus segredos. Respirou fundo e pegou a faca de mesa. A lâmina passou com precisão pelo lacre, e ele abriu o envelope com dedos trêmulos.
As fotos deslizaram para fora como uma cascata de pequenas tragédias congeladas no tempo. Ao primeiro vislumbre, o impacto foi visceral. Ele sentiu um frio na base do estômago, como se tivesse acabado de dar um passo em falso no escuro.
Um jovem estava deitado sobre uma mesa de autópsia metálica, o rosto pálido e virado para o lado. Os cabelos encaracolados emolduravam um semblante rígido, sem vida. Duas pequenas lacerações no pescoço chamavam atenção, mas o que era mais perturbador era a ausência de sangue. Ele pegou o laudo anexado e leu rapidamente: "Causa da morte: hemorragia aguda por exsanguinação".
Rodrigues esfregou o rosto com as mãos. Aquilo era familiar demais. Ele já tinha visto essas marcas.
A primeira lembrança veio como um clarão: Diego, no quarto, cercado por lençóis manchados de sangue. A perícia confirmou pequenos ferimentos no ombro, mas o garoto estava abalado demais para explicar o que havia acontecido. A segunda vez não estava tão distante: algumas horas atrás, ele viu Caio com marcas semelhantes no pescoço. Caio parecia exausto, drenado de energia — como se algo tivesse arrancado mais do que sangue dele.
Isso não faz sentido. Tem algo que estou deixando escapar, pensou. Ele passou os olhos pelas fotos novamente, tentando montar o quebra-cabeça, mas as peças ainda pareciam desconexas.
Bebeu um gole de vinho, mas o gosto amargo em sua boca não era da bebida. O macarrão no prato à sua frente esfriara completamente. Frustrado, ele se levantou, levando o prato e a garrafa de vinho para a pia. Tentava organizar os pensamentos enquanto lavava os utensílios, mas sua mente voltava sempre à mesma questão: onde ele já tinha visto aquele rosto?
A resposta chegou de repente, como um golpe. Rodrigues largou o prato na pia, correndo de volta à mesa. As mãos ágeis espalharam as fotos até encontrar a que mostrava claramente o rosto do rapaz.
Não pode ser...
O impacto da descoberta o fez girar nos calcanhares e correr para o quarto. O espaço estava uma bagunça: papéis espalhados, roupas jogadas pelo chão, copos sujos e um cinzeiro esquecido sobre a escrivaninha. Ele ignorou o caos e abriu o armário, mas o notebook não estava lá.
Merda.
Depois de alguns minutos vasculhando o quarto, ele o encontrou enterrado sob uma pilha de papéis e livros. Sentou-se na cadeira da escrivaninha e ligou o aparelho. A inicialização parecia levar uma eternidade.
Enquanto esperava, seus olhos recaíram na foto do plano de fundo: ele e sua família, em uma época mais simples, antes da doença levar seu pai. Por um momento, o peso de tudo o que estava acontecendo ameaçou dominá-lo. Ele ouviu a voz de seu velho ecoar na memória: Filho, um trabalhador competente mantém sua vida e seu espaço em ordem.
Rodrigues soltou um riso fraco e murmurou para si mesmo: — Acho que andei falhando nisso, hein, pai?
A tela finalmente carregou. Ele digitou a senha e esperou os arquivos aparecerem. Pegando o notebook, desceu às pressas até a cozinha, onde as fotos ainda estavam espalhadas.
Sentado novamente à mesa, ele abriu o vídeo capturado pelas câmeras de segurança na noite do ataque a Diego. Adiantou a gravação até o momento em que a figura de cabelos encaracolados surgiu à porta do bloco. Ele pausou a imagem e comparou com as fotos da autópsia.
— É ele... Não há dúvida.
As perguntas começaram a se acumular em sua mente. Quem era esse garoto? Qual era a ligação dele com Diego? E a figura encapuzada no caso de Caio? Seriam a mesma pessoa? Ou algo pior estava em jogo?
Rodrigues esfregou os olhos, exausto, mas a adrenalina mantinha seu corpo em alerta. Ele sentia que estava se aproximando de alguma verdade — algo sombrio, que não queria ser descoberto.
Determinado a ir a fundo dessa situação, Rodrigues não se importava com o que aconteceria caso seus superiores descobrissem que ele havia desobedecido ordens. Dirigia por um caminho que despertava lembranças incômodas — aquela noite atípica em que tudo começou a não fazer sentido. Se fechasse os olhos por um instante, poderia quase ser transportado de volta, envolvido pela sensação inquietante que crescia dentro de si.
Os sons de sirenes ecoavam na memória, distantes, mas persistentes, enquanto as luzes vermelhas intermitentes da ambulância iluminavam fragmentos de sua mente. Com o vidro da porta do motorista baixo, o som do vento misturava-se com os ecos daquela noite. Ele podia se lembrar da movimentação estranha já no portão do condomínio. Lemos e ele haviam seguido para o andar da ocorrência, enquanto os moradores sussurravam comentários desconexos sobre um barulho vindo do asfalto — algo pesado, denso, quase... vivo.
De frente para o prédio de Diego, Rodrigues havia erguido a cabeça até o quarto andar. A janela estilhaçada era um lembrete silencioso do que havia acontecido ali. No asfalto, manchas escuras e espessas indicavam que alguém tinha caído. Sangue. Muito sangue. Mas o que o fazia gelar por dentro era a ausência de um corpo.
Foi ali que percebeu, pela primeira vez, que havia algo muito errado. Algo que escapava à razão.
O que estou deixando passar? — Rodrigues pensou, apertando o volante com força enquanto esperava o semáforo liberar sua passagem.
Ele repetiu em voz baixa as palavras que leu nos autos, como se tentando encontrar um significado oculto:
— Te juro... Diego parecia transtornado, até pediu para que eu não deixasse ninguém entrar no prédio.
A luz verde o trouxe de volta ao presente. Rodrigues acelerou, determinado a chegar ao local onde tudo havia começado. O apartamento de Diego o esperava, como um enigma que o desafiava a desvendar os segredos que havia tentado enterrar por tanto tempo.
No banco do passageiro, o telefone repousava com a tela virada para baixo, um pequeno lembrete da ausência dela. O que ela diria se soubesse o que estou prestes a fazer? — pensou Rodrigues, enquanto o eco da voz de Lemos surgia na memória, arrancando-lhe um sorriso contido, quase involuntário.
— Você tá deixando esse caso interferir na sua vida. — Ele murmurou para si mesmo, repetindo as palavras que sabia que a colega experiente lhe diria sem hesitação.
Mas no fundo, ele sabia que não havia escolha. Não conseguiria dormir em paz enquanto aquela dúvida continuasse a roê-lo por dentro. As fotos voltaram à sua mente, vívidas e perturbadoras. Aquele garoto era a chave de tudo, ele tinha certeza. Descobrir quem era e por que estava lá se tornara uma obsessão silenciosa.
Logo, Rodrigues chegou ao condomínio onde Diego morava. Um aperto tomou conta de seu peito ao lembrar que o filho de Dona Cida seguia desaparecido.
Ele se identificou na portaria, mas o porteiro daquela noite, o mesmo que o havia recebido antes, não estava ali. Um substituto atendeu-o com profissionalismo, mas sem o mesmo rosto familiar.
Rodrigues começou a refazer seus passos. Cada metro percorrido em direção ao prédio onde Dona Cida vivia parecia pesar mais, como se o ar ao redor fosse ficando mais denso. Ele parou no mesmo ponto em que estivera naquela noite fatídica e ergueu o olhar. A janela do quarto andar permanecia quebrada, um ferimento permanente no edifício.
— Seja o que Deus quiser — murmurou, sentindo um calafrio percorrer-lhe a espinha.
Antes de entrar, seus olhos fixaram-se na entrada do prédio. As imagens do vídeo que Marcos lhe mostrara invadiram sua mente como um golpe. Ele podia ver Diego correndo desesperado, o terror estampado em seu rosto. Diego tinha visto algo — ou alguém.
Rodrigues seguiu o mesmo movimento instintivo que Diego fizera naquela noite, virando a cabeça na direção que ele olhara. Foi então que viu, como se o tempo tivesse se dobrado sobre si mesmo, o garoto de cabelos cacheados vindo em sua direção. A visão era tão nítida que ele quase duvidou de sua sanidade.
Sem hesitar, entrou no prédio, revivendo cada detalhe daquela noite. A lembrança era tão vívida que ele podia quase sentir o cheiro do concreto úmido misturado ao perfume metálico de sangue.
— Como que ninguém o viu entrar no prédio? — questionou-se em voz baixa, enquanto apertava o botão do elevador.
O painel brilhava de forma monótona, e o elevador demorava mais do que deveria. O som dos cabos puxando a cabine parecia ecoar pelo hall vazio, acrescentando uma camada de tensão à espera.
Enquanto aguardava, um senhor passou por ele, acompanhado por um cãozinho pequeno e inquieto. O homem fumaria um cigarro, teve certeza. O pacote era visível no bolso traseiro de sua calça. Rodrigues o observou com atenção, mas a figura parecia comum demais para pertencer ao quebra-cabeça que tentava montar. Ainda assim, algo naquela cena parecia deslocado.
Rodrigues respirou fundo, tentando afastar o desconforto crescente. Quando o elevador finalmente chegou, ele entrou e, antes de a porta se fechar, lançou mais um olhar para o hall, como se esperasse que algo ou alguém surgisse das sombras.
Agora, estava a caminho do quarto andar, onde tudo começou.
Ele avançava pelo corredor, os passos ecoando baixo contra o piso frio. Cada detalhe parecia idêntico àquela noite: as paredes com pintura desgastada, o zumbido quase imperceptível das lâmpadas fluorescentes. Era o mesmo caminho que Diego percorreu, muito provavelmente tomado pelo medo. Rodrigues só percebeu que prendia a respiração quando chegou à porta do apartamento de Dona Cida.
Parou por um instante, o coração batendo forte no peito. Precisou se recompor. Contou até dez, tentou respirar fundo, mas o ar parecia pesado, como se algo invisível o pressionasse. Finalmente, estendeu a mão e tocou a campainha.
O som estridente reverberou pelo corredor, cortando o silêncio quase opressor. Ele esperou, atento a qualquer movimento ou ruído vindo de dentro do apartamento. Mas nada. O corredor mergulhou de volta em um silêncio perturbador.
Rodrigues tocou a campainha novamente, com mais firmeza, os nós dos dedos quase tremendo.
— Dona Cida? — chamou, a voz ligeiramente trêmula, mas carregada de esperança.
Nada. Nem um som, nem uma sombra. Apenas o silêncio prolongado e sufocante.
Ele sentiu o estômago afundar, como se algo estivesse muito errado. Será que algo aconteceu com ela?
A mão foi instintivamente até o revólver em seu coldre. O metal frio sob seus dedos parecia ao mesmo tempo um consolo e um lembrete da gravidade da situação. Mais uma vez, ele pressionou a campainha, os ouvidos atentos a qualquer sinal de vida.
A espera era agonizante. Longa demais.
— Está vazio... — murmurou, derrotado, a mão deslizando para longe da arma. O gosto amargo do fracasso subia pela garganta. — E eu achei que vir aqui me traria respostas... devo ter perdido a cabeça mesmo.
Rodrigues deu um passo para trás, encarando a porta fechada como se ela fosse zombar de sua impotência. Mas, ao virar-se para sair, algo o deteve. Um som baixo, quase imperceptível, vindo de algum lugar dentro do apartamento.
Ele congelou.
Era apenas sua imaginação? Ou teria realmente escutado algo de dentro do apartamento?
O corredor, antes apenas silencioso, agora parecia sufocar Rodrigues com uma atmosfera opressiva. Algo não estava certo, e ele sabia que não poderia ignorar.
Com a respiração presa, ele se aproximou da porta novamente, desta vez colando o ouvido contra a superfície fria. Qualquer ruído, por menor que fosse, poderia ser a diferença entre uma pista e mais perguntas sem respostas.
E então, ele ouviu.
O som abafado do trinco girando foi seguido por um clique seco. A porta se abriu, e Rodrigues já estava com a arma em punho, e o olhar alerta.
— Meu Deus! — gritou Dona Cida, recuando com a mão no peito. — Pra que apontar essa coisa pra mim? Isso faz parte da conduta? — Sua voz tremia entre o susto e a indignação.
— Me desculpe... — respondeu Rodrigues rapidamente, abaixando a arma e guardando-a no coldre. — E-eu escutei algo dentro do seu apartamento, achei que poderia ter acontecido alguma coisa...
— Claro que aconteceu! Um imbecil veio me perturbar perto da meia-noite. Óbvio que eu iria ver quem estava tocando a minha porta. Sem contar que você foi anunciado pela portaria, se lembra?
— Ah, claro! — murmurou, sentindo o rosto esquentar de vergonha.
Dona Cida ainda parecia desconfiada, mas suspirou, ajustando a faixa do roupão surrado que usava.
— O que te traz aqui, policial? Tem alguma notícia do meu menino? Encontraram ele?
Rodrigues hesitou, o peso daquela pergunta o atingindo como um soco no estômago.
— Ainda não, Dona Cida. Mas... vim por causa de um conhecido dele.
Os olhos dela se estreitaram.
— Um conhecido? Quem?
— Posso entrar?
Ela fez um gesto breve com a mão, abrindo mais a porta.
— Entre... entre... — disse com uma voz cansada.
Rodrigues entrou e olhou ao redor. O ambiente parecia imutável desde a última vez que esteve ali, mas agora ele notava algo que antes havia ignorado: o peso da ausência de Diego. Fotos estavam espalhadas por todo o lugar. Diego sorria em todas elas, a juventude e a alegria congeladas no tempo, contrastando com a tristeza palpável do apartamento.
— No que posso ajudar, senhor policial? — Dona Cida perguntou, cruzando os braços.
Rodrigues voltou a focar nela, tentando organizar seus pensamentos.
— Notou algo de estranho em seu filho naquela noite?
Ela o encarou por um instante, franzindo a testa.
— Além do fato de que ouvi vozes no quarto dele e alguém se jogou da janela?
— Quero dizer... algo antes disso. Algo diferente no comportamento dele?
Dona Cida suspirou, puxando uma cadeira e sentando-se com certa dificuldade.
— Bem... ele disse que ia se encontrar com uma amiga.
— Que amiga? — perguntou Rodrigues, inclinando-se ligeiramente, atento.
— Uma das meninas da companhia de dança. Ele, Gabriel e Cris eram inseparáveis.
— Gabriel? — O nome fez Rodrigues erguer a sobrancelha, a confusão evidente em seu rosto.
— Sim, Gabriel. — Ela se levantou com esforço e foi até um pequeno móvel na sala, pegando um porta-retrato. — Aqui, eles três. Diego no meio, Cris à esquerda, e Gabriel à direita.
Rodrigues pegou a foto com cuidado, mas seu coração acelerou ao reconhecer o rosto de Gabriel. Era o mesmo garoto das fotos que haviam lhe enviado. O mesmo que apareceu no vídeo daquela noite.
— Esse... esse é o Gabriel? — perguntou, a voz falhando ligeiramente.
— É, ou melhor, era. — Dona Cida abaixou a cabeça, apertando as mãos no colo. — Não faz nem um mês que ele morreu.
Rodrigues sentiu o sangue gelar.
— Como assim morreu?
— Foi uma perda terrível. Diego ficou arrasado. Eles cresceram juntos, sabe? Eram como irmãos.
Rodrigues encarou a foto novamente, o rosto de Gabriel quase lhe zombando com o sorriso largo e juvenil. Ele hesitou antes de perguntar:
— Tem... certeza de que ele morreu?
Dona Cida o encarou com incredulidade, a tristeza dando lugar à irritação.
— Por que eu brincaria com algo assim? Meu filho reconheceu o corpo. Depois disso, ele não foi mais o mesmo.
As palavras bateram em Rodrigues com força. Ele sabia que algo não encaixava. Gabriel estava morto? Então como ele aparecera no vídeo daquela noite?
O silêncio entre os dois ficou pesado. As peças do quebra-cabeça começavam a surgir, mas nenhuma delas parecia se encaixar.
— Alguma coisa não tá certa... — murmurou Rodrigues para si mesmo, ainda fitando a foto.
E, pela primeira vez, ele percebeu que talvez estivesse entrando em algo muito maior do que imaginava.
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