22. Escola nova, drama e garotas
O som do grafite deslizando furiosamente sobre a mesa era a única coisa que mantinha Gabriel focado dentro da sala de aula. Seus dedos firmes seguravam o lápis, enquanto rabiscava figuras e formas desconexas, em um esforço quase desesperado para ignorar o ambiente ao seu redor. Ele não via propósito em prestar atenção no professor — um homem de jeans surrados e jaleco encardido, cuja voz monótona discorria sobre a vinda da família real portuguesa ao Brasil. A sala, tão dispersa quanto ele, refletia o desinteresse generalizado.
Desde que chegara na noite passada, Gabriel sentia os olhares constantes recaírem sobre si, como dardos invisíveis atingindo-o de todos os lados. Alguns olhares vinham das garotas, que cochichavam entre risinhos nas rodinhas de amigas, comparando-o a um modelo ou uma estrela de TV. Já outros, mais discretos, refletiam curiosidade e fascínio pela chegada súbita do misterioso novato àquela escola esquecida pelos governantes.
Os rapazes, por outro lado, encaravam-no com hostilidade velada. Gabriel percebia claramente os olhares que o fuzilavam, como se sua simples presença ameaçasse o território deles. Contudo, ele não se importava. A opinião deles era o menor de seus problemas. Tudo o que queria era estar em qualquer outro lugar, longe daquele cenário que ele tanto desprezava.
Gabriel nunca teve um bom relacionamento com a escola. Sempre amou a dança e a atuação, mas os anos de provocações, apelidos e insinuações fizeram com que o ambiente escolar se tornasse insuportável. Naquela nova escola, ele não esperava nada diferente.
Um impacto súbito o tirou de seus pensamentos. Algo atingiu suas costas, mas ele não reagiu. Apenas continuou desenhando, focado no fluxo de grafite sobre o papel. Um segundo impacto veio, e ele finalmente olhou para o chão, onde uma bolinha de papel repousava ao lado de sua cadeira.
Gabriel levantou o olhar e, ao virar-se, encontrou a responsável: uma garota de cabelos ruivos intensos, quase como fios de cobre reluzentes, que caíam até os ombros. Ela o encarava com um sorriso travesso e apontava discretamente para a bolinha no chão.
Ele olhou para os lados, certificando-se de que o professor — ocupado rabiscando o quadro negro — não prestava atenção. Pegou a bolinha com um movimento rápido, desamassando-a para revelar o conteúdo.
Era um pequeno desenho, cuidadosamente feito, que o surpreendeu. A figura retratava grandes olhos brilhantes, que pareciam olhá-lo diretamente, e ao lado, a pergunta escrita em letras curvas:
"Quer sentar com a gente?"
Um sorriso involuntário surgiu em seu rosto. O talento da garota e o esforço em chamar sua atenção eram quase cativantes. Ele dobrou o papel e o guardou no bolso da calça, protegendo-o de olhares indiscretos. Em seguida, lançou para a garota um sorriso discreto, como resposta.
O brilho de felicidade nos olhos dela era evidente. Ela havia conseguido o que queria: a atenção do rapaz misterioso que havia chegado do nada.
— Não sabia que você demonstrava tanto entusiasmo pela nossa história, Vanessa — a voz grave e irritada do professor cortou o momento, arrancando risos abafados da sala.
Vanessa corou, mas sua atitude permaneceu firme.
— Claro, professor. Sou uma grande apreciadora da nossa história e cultura. Por favor, continue. Não gostaria de atrapalhar mais — respondeu com um ar atrevido, que só fez os risos aumentarem.
Gabriel observou a cena sem grande emoção, mas não pôde deixar de admirar a ousadia da garota. O professor, visivelmente desgostoso, bufou antes de voltar ao conteúdo, exigindo silêncio e atenção.
Para Gabriel, porém, a aula já havia perdido qualquer relevância — se é que algum dia tivera. Ele voltou a rabiscar no caderno, com o pensamento distante.
"Miguel com toda certeza amaria isso..." — pensou em seu mentor, lembrando-se da paixão dele por história. "E Ana provavelmente teria soltado alguma piada agora."
Com um suspiro pesado, Gabriel ergueu os olhos, apenas para encontrar Vanessa mais uma vez. Ela o encarava com um olhar curioso e esperançoso, como se esperasse algo dele. Pela primeira vez, ele sentiu que aquele dia, talvez, pudesse guardar algo além do tédio.
Parte da noite transcorria sem nenhum evento fora do comum, pelo menos para uma escola pacata, cheia de jovens como ele. Exceto pelo fato de que Gabriel viveria muito mais do que qualquer um daqueles alunos ali. Isso, claro, se lhe fosse permitido.
Com uma bandeja nas mãos, ele carregava um bolinho de laranja ainda embalado e um suco de maçã em caixinha. Seus olhos varriam o ambiente com discrição, procurando um rosto familiar. Não demorou a encontrar, em um canto da cantina, Hélio. O rapaz estava sentado, imóvel, parecendo completamente distante da realidade.
Hélio parecia mais uma casca do que uma pessoa, incapaz de se misturar com o restante dos alunos. Miguel havia convencido Lúcia de que seria melhor levar o servo humano junto com Gabriel para a missão. Ele acreditava que isso ajudaria a tornar as coisas menos estranhas, uma justificativa que a matriarca aceitou, ainda que relutante. Agora, ali estava ele: um fantasma de si mesmo.
Gabriel aproximou-se devagar, puxando uma cadeira e sentando-se ao lado do rapaz loiro, cujos cabelos curtos estavam impecavelmente alinhados, mas cujo olhar não se ergueu nem uma única vez. Mantendo as aparências, Gabriel inclinou-se para beijar o rosto de Hélio — um gesto vazio que não provocou qualquer reação no servo.
— Eu não sei o que fizeram com você, mas precisa agir menos como um robô e mais como... você mesmo — cochichou, a voz grave e gélida roçando o ouvido de Hélio, que estremeceu com o toque do hálito do vampiro.
Hélio anuiu sem levantar a cabeça, seus olhos fixos na bandeja diante de si.
Antes que Gabriel pudesse dizer algo mais, uma voz feminina interrompeu:
— Vocês são novos por aqui?
Ele ergueu os olhos e encontrou a dona da voz. Uma garota de cabelos ondulados negros e pele amadeirada estava parada diante deles. Seu rosto era tão belo quanto seu tom de pele, mas era sua postura confiante que mais chamava atenção. Vestia um top branco justo, que parecia prestes a ceder sob o peso do busto, e shorts curtos que beiravam o limite permitido. Grandes argolas douradas balançavam em suas orelhas enquanto ela inclinava levemente a cabeça, esperando uma resposta.
Gabriel olhou de relance para Hélio, esperando que ele reagisse, mas o rapaz permaneceu inerte, como se a presença dela fosse irrelevante.
— Sim, nos matriculamos no final de semana, para começarmos o mais rápido possível — respondeu Gabriel, forçando um sorriso enquanto lançava um olhar de reprovação para o servo, desejando que ele agisse como uma pessoa normal.
— Está tudo bem com seu amigo? — perguntou a garota, arqueando uma sobrancelha.
— Claro, claro... — Gabriel respondeu rapidamente, levantando-se e oferecendo o lugar a ela. — São efeitos do remédio. Os médicos acharam que seria bom para ele socializar um pouco mais.
— Tadinho! O que aconteceu? — perguntou ela, a voz carregada de falsa compaixão enquanto fazia bico.
Gabriel hesitou por um instante, mas rapidamente teceu uma história convincente:
— Ele passou por maus bocados. O irmão mais velho, que era como um melhor amigo para ele, morreu de forma trágica. Depois disso, ele mal falou comigo por semanas. E olha que namoramos há quase dois anos.
A mentira deslizou fácil, mas o peso da última parte tocou uma ferida real. Era impossível ignorar as lembranças de uma perda que o marcara profundamente.
Antes que pudesse se perder nos próprios pensamentos, outras garotas começaram a se aglomerar ao redor, atraídas pela presença dos dois. Cochichos e risadas abafadas preenchiam o ambiente.
— Só precisa ser um rostinho bonito e magricela que as meninas caem em cima de você — Gabriel ouviu um dos rapazes resmungar para os amigos. Ele reconheceu o jovem como o mesmo que passara boa parte da aula lançando olhares de desprezo em sua direção.
Os burburinhos cresciam, e Gabriel sentiu um misto de estranheza e satisfação. Pela primeira vez, parecia que o mundo inteiro queria um pedaço de sua atenção.
— E o que você curte fazer? — perguntou uma garota mais baixa, de cabelos negros e olhar curioso.
Antes que ele pudesse responder, a garota de cabelos ondulados interveio, seu sorriso carregado de malícia:
— Meninas, acho que vocês não têm chances. — Sua declaração abrupta chamou a atenção de todas, que a encararam confusas. — Nosso amigo aqui e o rapaz ao lado dele são namorados.
O choque estampado nos rostos das outras garotas foi palpável. Até mesmo Vanessa, sentada discretamente em uma mesa próxima, quase engasgou com o pedaço de bolo que mastigava.
Hélio não reagiu à revelação, mas Gabriel percebeu o desconforto sutil em suas expressões. Levantou-se com calma, pousando uma mão nas costas do servo.
— Com licença, acho que precisamos nos retirar — disse, ajudando Hélio a se levantar. Passou um braço pela cintura do rapaz, guiando-o para longe. — Meu namorado ainda não se acostumou com tanta gente ao redor.
Os olhos das garotas os acompanharam enquanto saíam, misturando curiosidade e decepção. Do outro lado da cantina, os rapazes recomeçaram as piadas, murmurando insultos entre risadas. Vanessa, como as outras, sentiu uma mistura de irritação e frustração.
Gabriel atravessou o ambiente com Hélio ao seu lado, consciente de cada olhar cravado neles. A tensão o acompanhava, mas havia algo quase cômico na situação. Se quisesse sobreviver naquela escola, precisaria de muito mais do que mentiras elaboradas e olhares mortais.
Gabriel tinha, por um momento, se esquecido de como o ambiente escolar poderia ser sufocante. Nos últimos dias, lidou com sua transformação em vampiro, regras que ninguém lhe explicou, a morte de seu melhor amigo e quase ser morto pela segunda vez. Começava a questionar quando — ou se — as preocupações terminariam. Quando poderia viver uma vida mais pacata?
Sobreviveu às investidas das garotas no intervalo, mas lá estavam elas novamente, cercando-o como abutres. Vanessa, a garota de cabelos ruivos que se destacava no grupo, perguntou com uma simpatia que parecia genuína:
— Você está bem? No intervalo, ouvimos os garotos falando de você e seu amigo...
— Relaxa, está tudo bem. Não é a primeira nem a última vez que vou passar por isso — respondeu Gabriel, esboçando um sorriso que escondia sua exaustão.
— Mesmo assim, é absurdo isso ainda acontecer hoje em dia — disse outra garota.
Antes que pudesse responder, Gabriel viu Hélio à distância, caminhando cabisbaixo e distante, como sempre. Ele se apressou para sair do círculo de garotas, murmurando algo sobre pensar na proposta de se juntar ao grupo mais tarde. Vanessa, porém, entregou-lhe um papelzinho com seu número.
— Você está gelado... Tem certeza de que está bem? — perguntou, franzindo o cenho.
— Só nervosismo. Voltar para a escola pode ser... um pouco demais — respondeu rapidamente antes de seguir na direção de Hélio.
Mas algo o deteve.
Uma sensação intrusa, pesada e sufocante tomou conta do ambiente. Era como se o ar tivesse sido arrancado de seus pulmões, mesmo que ele não precisasse respirar. Gabriel paralisou, sentindo um frio que parecia vir de dentro. Era como se fosse observado por olhos invisíveis, setas cravando-se em sua nuca vindas de todas as direções.
Ele girou a cabeça, procurando pela origem daquela ameaça. Não encontrou nada.
— Gabriel... — A voz de Hélio veio atrás dele, baixa e hesitante.
O loiro estava parado a poucos metros, seu olhar perdido e confuso. Ainda que sua voz fosse calma, havia algo errado em sua postura. Seus movimentos eram rígidos, quase mecânicos, como se hesitasse em tomar qualquer ação por conta própria.
— Está tudo bem? — perguntou Hélio, sem emoção, embora seus olhos refletissem algo mais profundo: um conflito interno que o prendia.
Gabriel tentou responder, mas sentiu como se sua língua tivesse se tornado pesada demais para se mover. As vozes ao seu redor — das garotas, dos alunos, dos passos no corredor — começaram a soar distorcidas, lentas e abafadas, como um pesadelo que ganhava vida.
— Engraçado encontrar um semelhante por essas bandas... — A voz grave e rouca sussurrou em seus ouvidos. Gabriel congelou. Era a mesma presença do banheiro da balada, que ele jurava ter esquecido.
As palavras eram carregadas de desdém.
— Que interessante... Uma criança da noite em um lugar tão... trivial. Me pergunto o que os ilustres vampiros esperam de você.
Mãos frias e invisíveis pareciam apertar seus ombros, tamborilando levemente como se zombassem de sua paralisia. Gabriel tentou reagir, mas era inútil. Sentia-se como uma presa prestes a ser devorada.
— O que você quer? — murmurou, lutando contra a fraqueza.
A voz riu, baixa e debochada.
— Só um aviso, criança. Você não pertence a esse lugar. Brinque de ser humano o quanto quiser, mas saiba que a morte ronda aqueles que ousam interferir. Você terá que escolher entre seus novos amigos e sua existência patética.
O coração de Gabriel, que raramente batia, agora pulsava descontrolado. A pressão em sua mente era insuportável, como se ele estivesse sendo esmagado por uma presença maior do que qualquer coisa que já enfrentara.
Aos poucos, Gabriel sentiu seu corpo enfraquecer. As memórias de sua transformação e das ameaças anteriores o inundaram. Ele tentou alcançar Hélio, que continuava parado, encarando-o como se estivesse lutando contra uma barreira invisível dentro de sua própria mente.
— Hélio... — murmurou Gabriel, em um último esforço.
Os olhos do loiro se estreitaram, como se tentasse reagir. Mas a hipnose que o controlava ainda estava lá, uma sombra sufocante que o mantinha preso. Ele deu um passo hesitante à frente, mas não conseguiu estender a mão.
— Gabriel... Eu... — Hélio balbuciou, sua voz quebrada por camadas de condicionamento.
Então, tudo parou.
Gabriel desabou no chão, o mundo girando à sua volta. Antes de perder a consciência, ouviu gritos abafados, não sabia mais o que estava acontecendo. Seus olhos pesaram, como se um cansaço indescritível tomasse posse do seu corpo. Ceder, depois de todo aquele esforço não lhe pareceu uma má ideia.
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