09. Tempestade
Diego corria desesperado pelo corredor do andar. Precisava chegar em casa, trancar tudo e impedir que Gabriel conseguisse entrar. Mas o corredor parecia interminável, estendendo-se como um pesadelo sem fim. Quanto mais corria, menos acreditava que teria chances de escapar de seu amigo.
Várias vezes, olhou para trás. Precisava se certificar de que havia se distanciado o suficiente. O lugar estava mergulhado na penumbra, com as luzes piscando de forma intermitente, criando um jogo de sombras que fazia Gabriel parecer ainda mais próximo. Ele continuava seguindo Diego, calmo, como se tivesse todo o tempo do mundo.
— Você não pode fugir de mim para sempre... — a voz de Gabriel ecoou pelo corredor, fazendo um arrepio percorrer a espinha de Diego. — Não pode fugir de quem você é...
Aquelas palavras fizeram Diego parar de correr. Não por cansaço, mas por puro impacto. Ele sentia um nó apertando seu peito, mais forte que o medo.
Ele temia que o mundo o julgasse. Temia admitir para si mesmo o que sentia. O beijo que ele e Gabriel haviam compartilhado naquela noite mudara tudo. No fundo, carregava culpa pela morte do amigo. Não pelo afastamento em si, mas pela maneira cruel como reagira, pelas palavras duras e pelo desprezo com que tratou quem um dia foi seu maior confidente. Diego havia provado do outro lado... e gostado. Isso o aterrorizava. Ele sentia como se algo estivesse irremediavelmente errado dentro de si.
— Cansou de fugir?
A voz de Gabriel soou mais próxima, quase ao seu ouvido. Diego virou-se e o viu. Lá estava ele, parado no meio do corredor, vestido com roupas carregadas de memórias. A camiseta bordô que sua mãe lhe dera depois do primeiro jogo vencido no interclasses, um presente que simbolizava tanto orgulho quanto alegria. As calças de moletom cinza, companheiras de tantos dias frios na academia, onde Diego moldou seu corpo após anos de rejeição e zombarias. Cada peça parecia carregada de fragmentos de sua vida, um lembrete cruel de quem Gabriel foi e do que Diego agora enfrentava.
Mas o olhar de Gabriel não era mais o de um amigo. Havia algo de inumano nele, algo que fez Diego retomar a corrida sem pensar duas vezes.
O final do corredor surgiu à vista, uma esperança que fez seu coração disparar ainda mais rápido. Ele alcançou a porta do apartamento, abriu-a e fechou-a atrás de si com um estrondo. O alívio foi imediato, mas superficial. Ele sabia que aquilo não seria suficiente.
Sem perder tempo, correu para o quarto e trancou a porta, agradecendo mentalmente pelo fato de sua mãe não estar em casa. O silêncio que tomou conta do ambiente era opressor. Ele encostou a testa na porta, tentando acalmar a respiração.
Estou salvo.
— É isso que você realmente acha?
Diego congelou. A voz de Gabriel estava dentro do quarto. Antes que pudesse se virar, sentiu os braços dele o envolverem, magros, mas incrivelmente fortes. Não havia como escapar. Gabriel aproximou o rosto de seu pescoço, e Diego estremeceu.
— Não dá para fugir de si mesmo, Diego...
E então, sentiu a mordida. A dor aguda se misturou ao terror, arrancando-lhe um grito que ecoou pelo quarto. Ele lutou, tentou se soltar, mas tudo escureceu.
Diego despertou com o próprio grito, suado e ofegante, o coração batendo como um tambor. A noite seguia calma, mas ele sabia que algo dentro dele jamais seria o mesmo.
— Ei, calma! — Cris levantou-se, assustada, da poltrona ao lado do leito.
Diego olhou ao redor, confuso. Não reconhecia aquelas paredes, aquele lugar... O quarto era todo branco, com algumas faixas amarelas pálidas quebrando a monotonia. As cortinas, de um creme sem vida, balançavam suavemente com o vento do ar-condicionado.
— O que aconteceu? — perguntou, enquanto tentava se erguer. Uma dor aguda nas costas o fez recuar, gemendo. Seu corpo inteiro parecia reclamar do esforço.
— Um louco invadiu sua casa e te atacou — respondeu Cris, o rosto tenso.
As palavras dela atingiram Diego como um tapa. Fragmentos da noite anterior vieram à sua mente, flashes desconexos. Lembrava-se de ter se despedido de Cris na hamburgueria, depois de acompanhá-la até o ponto de ônibus. Na volta para casa, sentiu-se seguido. O coração acelerou.
Estava em seu quarto, tentando se acalmar, quando viu alguém que não esperava. Gabriel. As imagens surgiram em sua memória: o rosto do amigo, a sombra em seus olhos, o sangue... O som de vidro quebrando. Gabriel pulando pela janela. A discussão. O pânico. E sua mãe...
— Cadê minha mãe? — perguntou, a voz carregada de temor.
Seus olhos buscavam pela figura materna, mas tudo o que encontrava era o vazio. Uma pontada de desespero cresceu em seu peito. Não suportaria perdê-la. Não por algo assim. Não por causa de sua própria estupidez.
— Ela está bem — apressou-se Cris, segurando sua mão. — Está falando com os policiais. — Ela lançou um olhar rápido para a porta.
— Ele... Ele machucou ela? — Diego insistiu, a voz trêmula.
A imagem de Gabriel, monstruoso, sugando o sangue de sua mãe, invadiu sua mente. Ele tentou afastar o pensamento, mas já era tarde. O horror o dominava.
— Não, só você foi ferido. — Cris apertou a mão dele, tentando tranquilizá-lo.
Diego não respondeu. Seus pensamentos estavam longe, os dedos entrelaçados, as palmas pressionadas uma contra a outra. Se contasse o que realmente aconteceu, ninguém acreditaria. Pareceria louco. Mas ele sabia que Gabriel estava vivo. E diferente.
— Você o viu também? — perguntou, a voz baixa.
Cris o olhou, confusa.
— A pessoa que te atacou... Eu conheço? — Ela hesitava, a preocupação evidente no tom de voz. Desde que Gabriel morreu, Diego parecia estar à beira de um colapso. Mas agora, tudo parecia ainda mais sombrio.
O silêncio caiu sobre o quarto. Diego lutava consigo mesmo. Ele precisava contar. Avisar Cris. Mas e se ela não acreditasse?
— Promete que não vai me achar louco? — pediu, com olhos suplicantes.
— Claro, Di. Jamais diria isso... — Apesar da resposta, ele percebeu a hesitação em sua voz, a leve mudança no tom que denunciava sua dúvida.
Ele respirou fundo. Precisava falar.
— Ontem à noite, quem estava no meu quarto... — Ele fez uma pausa, observando Cris se inclinar, ansiosa. — Era o Gabriel.
O choque foi imediato. Cris afastou-se, a mão cobrindo a boca. Ela balançava a cabeça, como se tentasse afastar o que acabara de ouvir.
— Eu sei como isso soa... — Diego tentou tocar sua mão, mas ela se afastou. — Você precisa acreditar em mim. Ele mudou... Está diferente. Monstruoso.
— Sai dessa, cara... — disse Cris, quase num sussurro. Mas a incredulidade logo deu lugar à raiva. Ela avançou e deu um tapa no rosto de Diego.
— Foi ele, Cris! Eu tô dizendo! — gritou, segurando o rosto.
— Porra, Di! Fala sério! O Gabriel tá morto! MORTO! — Ela tremia, os olhos brilhando de lágrimas. — Mortos não andam por aí, machucando ninguém!
Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, ela saiu, batendo a porta. Diego ficou imóvel, encarando o vazio, a mão ainda sobre a bochecha. O trovão que ecoou lá fora fez o silêncio dentro do quarto parecer ainda mais opressivo.
Pouco depois, a porta se abriu novamente. Sua mãe, Dona Cida, entrou, o rosto marcado pelo cansaço e preocupação. Atrás dela, dois policiais.
— Filho, os policiais precisam falar com você — anunciou, a voz firme mas carinhosa.
Diego olhou para os dois estranhos. Um homem de pele escura e expressão amigável, e uma mulher de olhar duro e semblante fechado.
— Boa tarde, Diego — cumprimentou o homem, estendendo a mão.
Diego notou que a mão dele era quente. Humana. Nada como Gabriel.
— Conversamos com sua mãe sobre o que aconteceu, mas precisamos ouvir sua versão — disse o policial.
— Afinal, você esteve cara a cara com o agressor — completou outra agente.
Diego hesitou. Como poderia contar a verdade? Dizer que fora atacado por alguém que deveria estar morto?
— É-eu... Não sei se posso ajudar muito... Estava escuro... — Ele gaguejava, nervoso, desviando o olhar.
Os policiais trocaram um olhar. A mulher arqueou a sobrancelha, cética.
— Você sabe que dar falso testemunho é crime, certo? — alertou.
Diego olhou para a mãe. Ela o encorajava com os olhos, mas ele sentia o peso do medo esmagando seu peito.
— Di, fala a verdade — pediu Dona Cida.
Ele inspirou profundamente, a pressão no quarto aumentando. Do lado de fora, os trovões se intensificavam, a chuva tamborilando contra as janelas. Finalmente, Diego contou uma versão parcial: que ele e um amigo brigaram, e que a situação saiu do controle.
Os policiais não pareceram convencidos.
— Espero que isso seja verdade — advertiu a agente, antes de sair com o parceiro.
Quando ficaram sozinhos, Dona Cida aproximou-se, os olhos marejados.
— Filho... Por favor, descansa. Eu volto mais tarde.
Diego apenas assentiu, exausto. A tempestade rugia lá fora, mas dentro dele, o caos era ainda maior.
Observar a chuva que caía do lado de fora lhe trazia algum conforto, embora ainda sentisse que não estava completamente a salvo. E se Gabriel retornasse? E se, desta vez, ele realmente o matasse?
Tentou afastar esses pensamentos sombrios. O hospital parecia tranquilo, apesar da contínua movimentação de médicos, enfermeiros e visitantes pelos corredores. Felizmente, sua mãe havia trazido seu telefone quando a ambulância o levou às pressas ao Hospital das Clínicas. Ali, Diego permanecia em observação, aguardando a liberação.
Dona Cida e os policiais que investigaram o ataque não conseguiam explicar como Diego havia perdido quase um terço do sangue sem que houvesse uma quantidade significativa no local do incidente. Ainda mais bizarro era o fato de que o agressor havia saltado de uma janela no quarto andar e desaparecido sem deixar qualquer indício de ferimento.
Diego colocou os fones de ouvido, conectou-os ao celular via Bluetooth e abriu sua plataforma de streaming preferida. Procurava algo para assistir e passar o tempo. A única pessoa que poderia lhe fazer companhia naquele momento havia saído irritada de seu quarto. Desejou que Cris não tivesse agido daquela forma.
Não adiantava se martirizar. Talvez Cris precisasse de tempo, mas, no fundo, Diego temia algo pior: que Gabriel pudesse ir atrás dela. Se isso acontecesse, ao menos ela perceberia que ele não estava louco.
Para aliviar o turbilhão de emoções, decidiu assistir a uma comédia. Escolheu aleatoriamente um filme de Adam Sandler, na esperança de arrancar algumas boas risadas.
Durante as próximas horas, ficou absorto em seu telefone. Controlava as risadas para não incomodar os pacientes dos quartos ao lado. Sentiu saudades das noites em que ele, Cris e Gabriel se reuniam para assistir filmes, jogar e comer pizza. Essas lembranças arrancaram um sorriso discreto, abrandando o peso em seu coração.
Do lado de fora, trovões ribombavam, seguidos por raios que cortavam o céu em um espetáculo aterrador. Diego levou um susto com um dos clarões mais intensos, desviando o olhar do telefone para a janela. Quando voltou sua atenção para a tela, percebeu algo que lhe gelou a espinha: uma sombra estava de pé, próxima aos pés de sua cama.
Ele arregalou os olhos. Antes que pudesse reagir, a figura sombria surgiu ao seu lado, como se houvesse se teletransportado. A mão gélida, embora inegavelmente humana, cobriu sua boca, impedindo-o de gritar.
— Shh... Respeite os outros pacientes — sussurrou o estranho, com uma voz desconhecida.
Diego não precisava de explicações. Aquela criatura era como Gabriel: um vampiro. O ser inclinou-se, analisando-o de perto, movendo sua cabeça de um lado para o outro enquanto o segurava com firmeza. Diego sentia a morte se aproximar.
— Não faz o meu tipo... mas não se olha os dentes de cavalo dado, não é mesmo?
Antes que pudesse reagir, o vampiro puxou Diego violentamente para um abraço mortal e cravou os dentes em seu pescoço. A dor foi lancinante. Ao contrário da mordida de Gabriel, desta vez ele sentiu cada dente rasgar sua pele, penetrar sua carne. Seu sangue escorreu, enquanto o vampiro se banqueteava. Ele tentou resistir, mas seu corpo já não lhe obedecia. As extremidades ficaram dormentes, os membros pesados. Pouco a pouco, sua vida esvaía.
Enquanto o mundo ao seu redor desvanecia, memórias de tempos mais felizes invadiram sua mente: as risadas com Cris e Gabriel, os dias de escola, a apresentação que fizeram juntos. E Gabriel... Ah, Gabriel!
Arrependeu-se das palavras afiadas que proferira contra o amigo. Quando mais precisavam um do outro, Diego o afastara com raiva e desconfiança.
Pronto para abraçar a morte, foi surpreendido por uma nova presença no quarto. De repente, algo pontiagudo e brilhante atravessou o coração do vampiro. A criatura estremeceu e se desintegrou diante de seus olhos turvos.
Gabriel? — pensou Diego, irônico ao perceber que seu último pensamento seria sobre o amigo, e não sobre sua mãe.
— Droga, ele vai morrer desse jeito! — uma voz distante exclamou.
— Faça alguma coisa! — outra voz respondeu, impaciente.
Diego não conseguiu identificar os rostos ou compreender o que acontecia. Um gosto metálico invadiu sua boca, enquanto tudo ao seu redor girava e escurecia. Abraçou a escuridão como quem se aconchega nos braços de uma mãe cantando uma canção de ninar. E então, sentiu algo estranho: calor e energia preenchendo seu corpo, enquanto a escuridão o acolhia.
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