07. Alguém que costumei conhecer
Diego estava sem palavras. Diante de si estava Gabriel, seu melhor amigo, aquele que deveria estar morto. Ele encarava, incrédulo, a figura à sua frente. Piscou várias vezes, tentando se convencer de que aquilo era apenas fruto de sua mente exausta. Mas não era. Aquele Gabriel, apesar das mudanças, era assustadoramente parecido com o que ele costumava conhecer.
Os cabelos cacheados permaneciam os mesmos, embora estivessem mais secos e encardidos. Os lábios outrora vivos e avermelhados agora exibiam uma palidez mórbida, ressecados ao extremo. Mas o que mais o aterrorizava eram os olhos.
Não havia nada de humano naqueles olhos.
— Eu... eu devo estar ficando louco — balbuciou Diego, soltando um riso nervoso que morreu no silêncio sufocante.
Gabriel não respondeu. Seus olhos frios e penetrantes estudavam Diego com a intensidade de um predador à espreita. O silêncio era quase insuportável. Gabriel esperava. Esperava por uma palavra, um gesto, qualquer coisa que revelasse o que ele precisava saber: a verdade sobre seu assassinato.
Enquanto isso, Diego tentava se convencer de que tudo não passava de um delírio. Talvez fosse só o cansaço, talvez precisasse apenas de uma boa noite de sono, e ao amanhecer, tudo voltaria ao normal.
Mas o ar ao seu redor parecia mais denso, quase sufocante. Diego sentia o suor escorrendo pela testa, as mãos e as pernas tremendo incontrolavelmente. Seus olhos, marejados de lágrimas, denunciavam o pavor que tomava conta de seu ser.
Foi então que o elevador parou. Um som metálico, seguido pelo ranger das portas que se abriram de repente, quebrou o silêncio. Diego deu um pulo, assustado com o barulho inesperado. Tentou sair às pressas, mas tropeçou no próprio pé e quase caiu no chão. Gabriel, por outro lado, não se moveu. Apenas o observava, imóvel como uma estátua, mas com um olhar que queimava.
— Como vai, Diego?
A voz ecoou pelo corredor vazio, gelando o sangue de Diego nas veias. Ele conhecia aquele timbre. Era ele, sem sombra de dúvidas. Gabriel estava ali, real e tangível.
— G-Gabriel? C-como isso é possível? — gaguejou, com a voz falhando.
A figura à sua frente nada respondeu. Havia algo de profundamente errado nele, algo além do aspecto cadavérico. O cheiro... aquele odor pútrido e metálico que impregnava o ar... lembrava a morte.
Desesperado, Diego se levantou num salto. Cambaleou ao tentar correr para sua casa, o único lugar onde acreditava estar seguro. Enquanto corria, olhou por cima do ombro, buscando Gabriel. Mas ele havia sumido, como se nunca tivesse estado ali.
Chegou à porta de casa quase sem fôlego. Tremendo, começou a tatear os bolsos em busca das chaves. Seus dedos trêmulos dificultavam a tarefa, e o desespero aumentava com cada segundo que passava. Lágrimas voltaram a surgir em seus olhos, o coração parecia querer sair do peito.
Finalmente encontrou o molho de chaves, mas não conseguia encaixar a certa na fechadura. Tentava e errava, suas mãos tremendo descontroladamente. Cada erro parecia aumentar o pânico. Ele sabia que Gabriel estava perto. Podia sentir.
O cheiro da morte parecia estar logo atrás dele.
Por fim, Diego conseguiu encaixar a chave na fechadura. O clique abafado soou como uma libertação. Poderia, finalmente, adentrar sua casa e desaparecer pelos cômodos, longe de tudo e de todos. Afoito, girou a maçaneta e tentou entrar apressado, mas foi detido por um aperto firme em seu braço esquerdo.
— Por que a pressa? — perguntou Gabriel, sério. Seus olhos vermelhos percorriam cada centímetro do corpo de Diego, buscando algo que o denunciasse.
Diego engoliu em seco. — Você não é real! Eu vi o seu corpo! Você estava lá... na mesa de autópsia. Imóvel! Morto! — Sua voz tremia e aumentava a cada palavra, como se gritasse não apenas para Gabriel, mas para convencer a si mesmo de que aquilo era um pesadelo.
Gabriel inclinou a cabeça, os lábios se curvando em algo entre um sorriso e um esgar. — Sou tão real quanto você! — Sem aviso, puxou Diego com força, obrigando-o a sair parcialmente da casa. O aperto em seu braço intensificou-se, deixando marcas na pele. — Está sentindo isso? Isso não prova o quão real eu sou?!
Os olhos de Diego se arregalaram. Gabriel o prensou contra a parede, tão próximo que seus rostos quase se tocavam. O cheiro de carne pútrida o atingiu como um soco. Ele sentiu o estômago revirar, e o lanche que comera com Cris ameaçou voltar. Tentou se soltar, mas Gabriel era inexplicavelmente forte. Seu braço parecia preso em uma morsa.
A luta se intensificou. Diego tentou avançar para dentro de casa, conseguindo enfiar uma perna pela porta aberta, mas Gabriel o segurava com força sobre-humana. Ofegante e desesperado, Diego notou algo diferente. Gabriel parecia estar se esforçando, mas não conseguia cruzar o limiar da porta.
De repente, um estrondo seco o fez soltar Diego. Gabriel deu um passo para trás, como se algo invisível o tivesse repelido. Ele olhou confuso para o espaço entre eles, estendendo a mão, mas não conseguiu avançar.
— O que é isso? — murmurou, mais para si mesmo do que para Diego.
Do outro lado, Diego respirou fundo e aproveitou a brecha. Correu para dentro, fechando a porta com um baque. Encostou as costas na madeira e deslizou até o chão, o peito arfando.
— Diego... — chamou Gabriel, a voz estranhamente calma.
— Vai embora! — gritou Diego, os olhos apertados e a testa molhada de suor. — Isso não é real... isso não é real... — repetia para si mesmo como um mantra, tentando se convencer.
Do outro lado, Gabriel suspirou, impassível. Levantou o rosto para o céu noturno e inalou profundamente. — O que Dona Cida pensaria ao te ver assim? Posso desaparecer e voltar amanhã, mas e você? O que acha que ela vai dizer ao te encontrar nesse estado?
A menção à mãe foi como um balde de água fria. Diego respirou fundo, tentando controlar o pânico. Gabriel estava certo: ele parecia um lunático.
— É você mesmo, Gabriel? — perguntou, hesitante, ainda encostado à porta.
— Já disse que sou tão real quanto você.
Tremendo, Diego desencostou-se e abriu a porta uma fresta. Gabriel estava ali, parado. Não havia mais traços do semblante demoníaco; ele parecia... normal. Era o mesmo Gabriel que Diego conhecera a vida inteira. Mas algo estava errado. O cheiro pútrido persistia, e suas roupas pareciam velhas, desalinhadas, como se tivessem saído de um pesadelo.
— Como? — sussurrou Diego, os olhos cheios de desconfiança.
Gabriel inclinou a cabeça, um sorriso enigmático nos lábios. — Se eu te dissesse, você não acreditaria.
— O que você quer? — Diego perguntou, tentando soar firme, mas sua voz saiu trêmula.
— Respostas.
— Respostas? — Diego franziu a testa, confuso. Fitava o rosto do amigo, buscando algo familiar, mas não reconhecia nada — nem a postura, nem a presença.
— Se eu concordar... você vai embora? — arriscou Diego.
Gabriel sorriu de forma quase gentil. — Prometo.
Sem perceber o que fazia, Diego abriu a porta por completo. — Então entre.
A água quente escorria por seu corpo, o som constante do chuveiro aquecendo a água preenchia o banheiro, enquanto o aroma de sabonete e shampoo invadia o ar. Para Gabriel, aquilo era como uma onda de nostalgia. Ele não sabia o quanto sentira falta de tomar banho até aquele momento. Não compreendia exatamente como era possível, mas uma estranha mistura de calafrio e paz o dominava. Apesar da investigação que tinha pela frente, havia um alívio em saber que podia contar a alguém que ainda estava "vivo", mesmo que apenas em parte.
Fechou os olhos, permitindo-se ser envolvido pela tranquilidade e pelas memórias que tentavam emergir. Lembrou-se do que Diego dissera mais cedo: ele não era mais o mesmo. Não era o rapaz assustado de antes. Diego, que agora o esperava no quarto, estava confuso e eufórico ao mesmo tempo, ainda tentando aceitar que Gabriel estava ali, de alguma forma. Por mais estranho que fosse, tudo aquilo parecia menos terrível do que poderia ser.
Gabriel desligou o chuveiro e encarou as roupas limpas que Diego havia deixado. Limpou o espelho embaçado e viu seu reflexo cadavérico. A aparência mórbida denunciava o inevitável: cedo ou tarde, precisaria se alimentar. Se não o fizesse, Diego e até mesmo a mãe dele, que dormia no quarto ao lado, estariam em perigo. O perigo era ele.
Ao sair do banheiro, seus passos eram silenciosos. Movia-se como uma sombra, um eco sombrio de algo que não deveria existir. Entrou no quarto, onde Diego o esperava sentado na cama, ainda espantado, os olhos fixos no amigo como se temesse que ele desaparecesse a qualquer momento. Era como um sonho do qual ele não queria acordar, mas que também o aterrorizava.
Gabriel fechou a porta atrás de si. Ambos estavam nervosos. Diego estava todo arrepiado, o coração batendo tão rápido que Gabriel podia ouvi-lo como um tambor dentro do peito. Aquilo o perturbava mais do que deveria.
De repente, uma dor aguda tomou o corpo de Gabriel. Ele se curvou, o rosto se contorcendo, perdendo a expressão calma. O vampiro estava mudado. Diego levantou-se instintivamente, preocupado, mas Gabriel levantou a mão, pedindo que ele não se aproximasse.
— Estou bem — arfou Gabriel.
Diego hesitou, mas sua expressão era de desconfiança.
— Tem certeza? Porque não parece.
— Já disse que estou bem.
— Claro, você parece ótimo... considerando que estava morto!
Diego não conseguia disfarçar o sarcasmo. Era sua forma de lidar com o desconforto, Gabriel sabia disso.
— Certas coisas nunca mudam — tentou sorrir, mas a dor era evidente. Diego não era tolo; algo estava muito errado.
— Você está mesmo bem? — insistiu Diego, aproximando-se hesitante.
— Não se aproxime! — Gabriel rosnou, os olhos brilhando em um tom carmesim que fez Diego recuar. — É para sua segurança.
O silêncio entre os dois foi pesado. Diego lutava contra o medo e a curiosidade. Passara semanas tentando superar a morte do amigo, convencendo-se de que era sua culpa. Agora, ele estava ali, de volta, mas... algo estava diferente.
— Onde você esteve? — perguntou, tentando soar casual.
— Em um cemitério.
— Claro, faz todo sentido... — respondeu Diego, irritado.
— Não estou brincando. Dormi no cemitério. Quero dizer, acordei no necrotério e depois precisei me esconder no cemitério.
— Você só pode estar de sacanagem! — Diego explodiu.
Gabriel suspirou. Ele precisava descansar antes que o sol nascesse. Abriu o guarda-roupa do amigo, examinando o interior, e entrou nele. Sentado ali, tentou avaliar se seria confortável o suficiente.
— Gabriel, você só pode estar brincando! — Diego abriu a porta, indignado. — Você aparece do nada, conta histórias absurdas e acha que pode se esconder no meu guarda-roupa?
— Minha situação é... complicada — respondeu Gabriel, hesitante, escolhendo as palavras com cuidado. — Não sou o mesmo, Diego. Só isso.
— Então explica, porra! — Diego tentou puxá-lo para fora do móvel.
Antes que pudesse reagir, Gabriel o surpreendeu, tapando sua boca com a mão gelada.
— Não grite — sussurrou, aproximando-se do ouvido de Diego.
Os olhares dos dois se encontraram por um instante. Diego viu algo estranho nos olhos de Gabriel, como se ele tivesse perdido algo essencialmente humano. Já Gabriel não conseguiu evitar que seu olhar descesse para o pescoço do amigo, onde veias pulsavam. Algo dentro dele se agitou.
— Mano, qual é o teu problema? — Diego empurrou Gabriel, desconfortável.
— Me desculpe... — Gabriel desviou o olhar, passando a mão pelos cabelos. — Não foi minha intenção.
— Sobre o que você quer falar? — Diego pigarreou, tentando mudar de assunto.
— O que você sabe sobre minha morte? — perguntou Gabriel, direto.
Diego congelou. Não esperava aquela pergunta. Seus olhos marejaram, e ele sentiu o peito apertar.
— Diego, está tudo bem? — Gabriel aproximou-se cauteloso, pousando as mãos gélidas sobre os ombros do amigo.
O toque trouxe Diego de volta à realidade. Ele olhou para Gabriel, mas as palavras não vinham. Seu rosto transparecia culpa. As memórias daquela noite o consumiam, como um pesadelo incessante.
— Desculpa... — murmurou Diego, baixando os olhos.
Gabriel franziu o cenho. Desculpa pelo quê? Ele não sabia se estava pronto para ouvir a resposta.
Diego virou-se e se arrastou até a cama, escondendo-se sob os cobertores. Gabriel ficou parado, observando-o. Algo estava errado. Ele tinha certeza de que Diego sabia muito mais do que estava dizendo.
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