04. O outro lado
— Sempre ouvi falar sobre eles... — sussurrou uma mulher. — Mas esta é a primeira vez que vejo um... — Ela observava Gabriel, que repousava em uma cripta.
O rapaz estava imóvel, deitado sobre o cimento frio e sujo. Não vestia nenhuma roupa e, além disso, tinha manchas de sangue no peito, no pescoço e nos lábios.
— Será que eles mantêm as presas enquanto dormem? — perguntou um homem à companheira, deitado do outro lado do corpo do rapaz.
O homem tocava delicadamente os lábios do vampiro, empurrando o lábio superior de Gabriel com o indicador para verificar se suas presas eram permanentes.
— Não tem nada!
— Tenho certeza de que ele é um deles... — insistiu, contrariando a amiga que permanecia examinando os dentes de Gabriel. — Ele quase virou churrasco hoje cedo... — acrescentou, lembrando-se da cena de um jovem em combustão invadindo as alamedas do cemitério.
— Mas ele parece tão novinho... — comentou a mulher, enquanto acariciava o rosto gélido do rapaz. — Quantas vidas será que já viveu? — ponderou, contemplando a descoberta.
Para ela, aquele vampiro poderia ser uma criatura tão antiga que presenciara a própria história do mundo. Imaginava quantas revelações ele poderia oferecer. Contudo, não esperavam que Gabriel fosse despertar. Assustado, o rapaz abriu os olhos e olhou para o ombro esquerdo. Viu uma mulher que poderia ser sua mãe, deitada sobre seu peito e o encarando. As roupas dela pareciam de outra época, como se estivesse congelada no tempo.
— Droga! Ele tá acordando! — gritou o homem, alarmado. Ele era negro, com cabelos tão brancos quanto flocos de neve. Assim que perceberam que o vampiro despertara, ambos evaporaram no ar.
Gabriel gritou, apavorado. Vira duas pessoas deitadas junto a ele e, de repente, já não estavam mais lá. Levantou-se de imediato, olhou ao redor e lembrou-se de que estava em um cemitério.
Aquela tinha sido sua única solução para um problema novo. Assim que o sol despontou no céu, os raios claros e calorosos queimaram sua pele. Gabriel descobriu que as lendas sobre vampiros serem intolerantes à luz solar não eram apenas mitos. Até então, ele sequer acreditava na existência de vampiros. Mas ali estava ele, uma prova viva de que eles existiam e andavam entre nós. O jovem havia fugido do sol, vasculhando o cemitério inteiro até encontrar uma cripta aberta, que lhe serviu como refúgio.
Gabriel olhou para os braços. Ainda havia marcas de queimaduras, mas não doíam mais. Seu corpo estava intacto, mas ele sabia que não poderia permanecer ali para sempre. Em algum momento, alguém encontraria a cripta e o descobriria. O que ele realmente não esperava era encontrar fantasmas.
Bem, se vampiros existem, por que não existiriam fantasmas, não é mesmo?
Ao sair da cripta e olhar ao redor, Gabriel percebeu que o cemitério era um lugar muito mais "vivo" do que imaginara. Havia dezenas de almas perambulando, algumas tão antigas que suas vestimentas datavam de épocas remotas, enquanto outras pareciam mais recentes. A dupla que estivera ao seu lado momentos antes agora se escondia atrás de uma enorme figueira ao lado da capela local.
Estão com medo de mim? — pensou, notando a expressão nervosa em seus rostos.
— E-eu não vou machucá-los... — disse, aproximando-se vagarosamente. — Estou tão surpreso quanto vocês...
— O que estavam fazendo lá dentro? — perguntou uma mulher de aparência jovial, repreendendo a dupla. Envergonhados, eles saíram de seu esconderijo e reapareceram ao lado de Gabriel.
— Desculpe-nos, senhor vampiro... — disse o homem de roupas simples. Gabriel sobressaltou-se ao notar que eles estavam tão próximos novamente.
— Não queríamos perturbá-lo — completou a mulher de cabelos volumosos e encaracolados. — Só queríamos ter certeza de que você era mesmo um vampiro. Esta é a primeira vez que vemos um... pelo menos de perto. — Apesar de suas palavras, Gabriel reparava mais em como ela parecia saída de um filme dos anos oitenta ou início dos noventa. Sua camiseta branca estava suja, e ela usava uma calça jeans simples e sapatos igualmente brancos.
— Isso quando não estão se alimentando ou matando por esporte! — acrescentou outro homem, de pele clara e bigodes finos.
Ele vestia uma camisa branca e calças creme que estavam presas com o auxílio de um suspensório. Este, em especial, parecia estar por ali há um pouco mais de tempo, já que suas vestimentas pareciam datar pelo menos um século atrás.
— Olha, não estou menos surpreso que vocês. Até pouco tempo atrás, eu achava que estava morto. Agora sou um vampiro... falando com os mortos. — Gabriel soltou uma risada nervosa, que logo se transformou em um riso desesperado. Seus olhos se encheram de lágrimas de sangue.
— Esse aí tá lelé da cuca! — cochichou o velho de cabelos brancos.
— Isso é demais para mim... — Gabriel tentou se recompor, mas, entre uma crise de riso e outra, chorava em desespero.
— Sabe, temos uma boa terapeuta entre nós! — revelou a mulher de cabelos volumosos.
— É verdade! Além de ser boa doutora, é tão formosa! — disse o homem de vestes simples, seus olhos brilhando de encanto.
— Um neófito! Isso sim é raro... — comentou uma mulher com um grande vestido cheio de rendas. Seus cabelos estavam presos em um coque, e sua aparência era tão etérea quanto sua existência. Gabriel a encarava perplexo, sem entender nada daquele novo mundo que se revelava aos poucos.
— Quem é seu criador? — indagou o velho de cabelos de algodão.
— Quê? Criador? — Gabriel perguntou, confuso.
— Ó, Deus! Um vampiro recém-criado sem vínculo com seu criador ou um clã... — disse a mulher de vestido rendado, levando uma das mãos à fronte. — Este cemitério se tornará pequeno demais... — completou, e sua reação exagerada fez com que o ambiente ficasse ainda mais tenso.
— Clãs?! Por favor, façam sentido!
— Ora, porque a qualquer momento você pode se tornar uma besta descontrolada, sedenta por sangue. E como nossa querida Isabel disse, isso é um problema que muitos de nós compartilhamos! — disse o homem de bigodes finos. Sua expressão não era nada amigável, e Gabriel definitivamente não se sentia acolhido.
— Mais pessoas se tornariam como a gente: presas à maldita criatura que ceifou suas vidas — explicou a mulher de vestido rendado.
— Espero que o frentista de quem você se alimentou não acabe como a gente...
As palavras do homem de bigodes fizeram Gabriel engolir em seco. Sua mente reprisava, incessantemente, as memórias do frentista com a filha. Só de lembrar, seu estômago revirava. De repente, Gabriel perdeu qualquer interesse em saber mais sobre aquele mundo ao qual agora pertencia.
— Vocês viram?
— Não só vimos, como ouvimos... — respondeu o homem de bigodes, diminuindo a distância entre eles. — Um vampiro recém-criado perambulando sem mentor? Tsc, tsc, tsc... Problemas!
Gabriel já achava insuportável carregar sozinho o peso do que fizera a um homem inocente. Saber que outros conheciam seu segredo era um verdadeiro soco no estômago. O gosto amargo em sua boca era agora quase insuportável. A ideia de ter transformado alguém em vampiro o aterrorizava. Pensar no frentista voltando para casa, sentindo saudades da filha, apenas para matá-la como ele próprio fizera, era um tormento que tornava tudo ainda mais insuportável.
— E... e todos vocês foram mortos por vampiros? — perguntou, hesitante.
— Não, meu amor. O mal-humorado ali é o Fernando. Ele foi morto por um vampiro há muito tempo — explicou a moça de cabelos cacheados, parecendo tentar recordar as histórias de todos os presentes. Seu esforço era visível. — Tem também a senhorita Isabel... Ah, sim, vampiros. — Isabel, a mulher de vestido rendado, anuiu com desgosto. — João, aqui, não teve a mesma sorte. Pobrezinho, um lobisomem o jantou.
Enquanto falava, seu João desabotoou a camisa, revelando o peito dilacerado por garras e dentes. Gabriel o encarou horrorizado, enquanto a mulher fazia o sinal da cruz e olhava para o céu.
— E você? — Gabriel perguntou à mulher.
— Bruxos! O pior tipo... Acham que só porque têm magia e se dizem protetores dos humanos podem fazer o que bem entendem! — respondeu, visivelmente irritada.
— Essa matraca é a Joana — disse Isabel, desgostosa.
Gabriel tentava assimilar tudo o que ouvia. Estava perplexo. Jamais imaginaria que um mundo como aquele coexistia com o que ele conhecia.
— Prazer, me chamo Gabriel. Bem, acho que também fui morto por um vampiro, mas transformado por alguma razão... — revelou, acanhado.
— Pobrezinho! Deve ter sido algum daqueles malditos vampiros dissimulados dos Sete Clãs! — exclamou Joana, acariciando o rosto de Gabriel, visivelmente irritada.
— Joana! — Fernando a repreendeu. — Não saia acusando aqueles desgraçados! Se isso cair nos ouvidos deles, imagine o que fariam com este cemitério!
— Já é ruim abrigarmos um vampiro desgarrado. Acusar os Sete é suicídio! — concordou Isabel.
— Mas já estamos mortos... — retrucou Joana em voz baixa, fazendo bico.
Gabriel sentia o medo irradiado por Joana se alastrar, atingindo todos ao seu redor, inclusive ele próprio.
— Agora que estamos devidamente apresentados, ainda temos um problema em questão... — revelou Isabel, desconcertada, fitando o vampiro nu.
Gabriel corou ao perceber sobre o que falavam.
— Pode pegar alguma roupa daqueles que descansam aqui. Eles não vão se importar — disse Joana, piscando para ele.
— C-Claro! Muito obrigado!
Gabriel percebeu sobre o que falavam e ficou completamente envergonhado ao se dar conta de que ainda andava por aí sem roupa alguma.
— Fique à vontade para pegar alguma roupa daqueles que descansam. Eles não vão se importar... — disse Joana, piscando para Gabriel enquanto avaliava os atributos do vampiro com um olhar indiscreto.
— C-Claro! Muito obrigado!
Gabriel agradeceu e desapareceu nas sombras, visivelmente encabulado. Aquela era a primeira vez que algo assim lhe acontecia.
O vampiro vagou pelo cemitério, procurando algum caixão que contivesse roupas em condições menos deploráveis que as dos corpos que as vestiam. Depois de algum tempo, encontrou apenas uma calça que mal chegava a cobrir suas canelas finas e uma camisa bege, tão encardida e fedorenta quanto as calças.
— Gabriel, não é? — perguntou Isabel. O vampiro assentiu, e a fantasma logo continuou: — Suas circunstâncias são estranhas e lamentáveis? Sim! Mas não podemos abrigar um vampiro desgarrado. Se os Sete o descobrirem aqui, podem facilmente queimar este cemitério até o chão. Isso não afetaria apenas os vivos, mas também nós, que descansamos aqui — explicou Isabel, com um tom sério e um semblante soturno, quase frio. Gabriel compreendia a gravidade da situação.
— Se você quer sobreviver, tente descobrir como morreu. Talvez isso o leve ao vampiro que o transformou. Como eles mesmos dizem: o sangue é a resposta — sugeriu Joana.
— Joaninha, não acho que esse seja o lema... — murmurou seu João, esforçando-se para se lembrar de algo importante.
— Ótimo! Aconselhe um vampiro amaldiçoado a sair matando por aí e enchendo este ou outros cemitérios da cidade! É tudo o que precisamos: mais gente para passar a eternidade! — reclamou Fernando, irritado.
— Na verdade, eles dizem: "Sangue é vida" — corrigiu Gabriel, ainda envergonhado.
— Você entrou em contato com algum deles? — perguntou João, curioso.
— Não... Na verdade, ouvi isso em minha cabeça na noite passada... — confessou Gabriel. De repente, todos os fantasmas se entreolharam, e o medo e a confusão tomaram conta de seus semblantes.
— Procure por respostas. Se lhe disseram isso, é porque a verdade está no sangue... — disse Isabel, visivelmente perturbada.
Gabriel assentiu e logo se afastou, saindo da vista dos fantasmas. Ele entendia parte do que haviam lhe dito, mas as lembranças da noite anterior ainda o assombravam. A bizarrice daquele momento, em que se alimentou pela primeira vez, era difícil de apagar. Contudo, ele não sabia se seria capaz de entrar em contato com o dono daquela voz horripilante.
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