03. Fome
Gabriel notou que a cidade durante a noite parecia ter ganhado um outro aspecto, um que não se recordava. Tudo ao seu redor parecia tão mais vivo: as luzes que estavam tão fortes quanto o brilho do sol, os sons que eram todos incrivelmente mais barulhentos e jamais pensou que seria capaz de sentir tantos cheiros simultaneamente. Não conseguia acompanhar todo aquele fluxo de informação que até ele chegava, e tudo lhe pareceu demais.
Repentinamente parou de movimentar-se. Agora inerte, observava um dos diversos semáforos existentes naquela extensa rua desabitada, salvo por alguns carros e transeuntes que passavam vez ou outra. Fitava um relógio enorme e brilhante de led , que ficava do outro lado da rua. Ele marcava quinze graus.
Ventava bastante e a brisa gélida lhe açoitava a pele, porém, estranhamente, aquilo não lhe parecia um grande incômodo.
— Eu não estou com frio — murmurou para si mesmo, ao mesmo tempo em que encarava os braços franzinos e nus, que não estavam arrepiados. Espantou-se com tal descoberta.
Algumas poucas pessoas que aventuravam-se pela noite na cidade grande, passavam por Gabriel e o encaravam. Acreditavam que ele deveria ter enlouquecido de vez, afinal, não era todo dia que encontravam alguém caminhando por aí nu, em uma noite frígida.
Gabriel ainda fitava o painel de led do relógio, que naquele momento, marcava duas e quinze da madrugada. Ouviu murmúrios, mas quando buscava por sua fonte, que mais pareciam falar sobre si, só não os encontrou em lugar algum. Sentiu-se invisível, como a maioria dos moradores de rua são para as pessoas que passeiam pelas movimentadas calçadas da grande metrópole. De certa maneira, não via isso como algo ruim, porque mesmo que o julgassem ser louco, não deveria se importar, já que para o mundo estava morto. Mesmo que agora, ele estivesse ali em pé, sentindo tudo o que todas as outras pessoas sentem.
Percebeu que seu interior agitava-se novamente, uma velha e familiar sensação. Algo em seu estômago lhe causava um extremo desconforto, e que irradiava-se para todos os cantos de seu corpo, fazendo com que suas pernas tremessem no processo, e se curvasse contra o próprio estômago. Sentia como se sua força vital tivesse sido roubada.
— O que está acontecendo comigo? — murmurou arfante, enquanto o corpo e as feições do rosto contorciam-se de dor.
Outra onda como a primeira irradiou pelo corpo todo, e agora um ruidoso ronco. Estava com fome. Sentiu a barriga protestar ainda mais, era como se um buraco estivesse prestes a se abrir de dentro para fora. Jamais experienciou tamanha fome como naquele momento.
A primeira coisa que pensou foi em buscar alimentos, então correu pela rua que abrigava cães sujos e famintos, ratos que corriam de um lado para o outro, também em busca de comida. Encontrou alguns sacos de lixo, que foram deixados em frente de algum restaurante cujo funcionamento deveria ser durante o dia. Gabriel odiou a ideia de catar restos, nunca precisou fazer isso em vida, mas com outro ronco de seu estômago, acabou cedendo as restrições que antes tinha.
Ferozmente rasgou os sacos plásticos. Desesperado, revirou o lixo, buscando por restos que pudessem saciar sua fome. Encontrou um pedaço de sobrecoxa de frango parcialmente mastigada e que tinha alguns grãos de arroz grudados na carne branca. Levou o pedaço até boca, dando uma grande mordida e arrancando o resto da carne fria e nada saborosa; seu corpo, no entanto, pareceu sentir uma repulsa enorme por aqueles alimentos. Gabriel cuspiu imediatamente, e se levantou frustrado. Enfurecido, ele chutou o saco preto rasgado, espalhando o lixo no processo.
A fome aos poucos lhe tirava quaisquer traços de sanidade, deixando-o ainda mais impaciente, embravecido e seu corpo para piorar, não estava colaborando. Já que continuava a lhe enviar ondas de dor, dizendo que precisava desesperadamente se alimentar.
Naquela rua deserta e solitária, o vento pareceu ser a única companhia desde seu retorno maldito para aquela existência. As correntes de ar que dançavam silenciosamente pelas ruas, trazendo-o um cheiro convidativo. E como um predador que farejava sua presa, o rapaz jogou a cabeça para trás, fechando seus olhos, enquanto trazia aquele delicioso aroma para dentro de si. A essência de pinho, viajava por dentro do nariz do rapaz, misturando-se ao asfalto, combustível e outros diversos perfumes mais fracos. Gabriel abriu seus olhos, e eles já não indicavam nada de humano em seu ser, e como se tivesse recebido um mapa de um tesouro secreto, passou a caminhar apressado.
Parou na rua em que viera momentos atrás, e lá estava o mesmo semáforo que o recepcionara em sua viagem solitária e desesperadora. Sentiu sua cabeça latejar uma vez mais, sendo possível escutar um zumbido insistente e irritante. Gabriel praguejou, pois suas dores de cabeça tornavam-se frequentes. Ele levou a ponta de seus dedos até sua testa e memórias invadiram sua mente.
A rua que ele descia naquele momento, tivera sido o palco de suas diversas aventuras noturnas com seus amigos. Muitas vezes Gabriel, Diego e outros colegas de teatro desceram aquela mesma rua, indo em direção a uma das mais badaladas de São Paulo, a Rua Augusta, que era repleta de bares, clubes de dança e prédios residenciais. Sendo o seu maior público: o jovem adulto e totalmente plural, uma vez que possuía das mais diversas tribos, que encontravam-se para um mesmo propósito: as diversas possibilidades de estabelecimentos para beber, conversar e beijar.
Gabriel sentiu-se levemente nostálgico com as lembranças que tivera de seus amigos e das vezes que caminharam por ali, antes e depois de passarem horas dançando, bebendo, divertindo-se, e vez ou outra envolvendo-se com algum desconhecido.
Seu olfato e audição lhe revelavam a presença de pessoas não muito longe de onde estava. O cheiro delas principiava em um frenesi. Se antes Gabriel caminhava às pressas, agora corria rapidamente rua abaixo, e seu interior enchia-se de uma animação súbita, a mesma euforia que sentiu quando estivera no necrotério.
Ao final daquela rua havia uma intersecção, percebeu a existência de um posto de gasolina com uma loja de conveniência aberta vinte e quatro horas. Gabriel interrompeu sua corrida bruscamente, depois escondeu-se atrás de um dos postes de luz e observou duas pessoas: um frentista e alguém dentro da loja.
Sua respiração estava entrecortada, seu peito subia e descia rapidamente, mas não parecia sentir falta de ar. Eletricidade percorria pelo seu corpo, suas pernas queriam se mexer, porém sua cabeça parecia frear quaisquer atos impensados. Gabriel hesitava.
Eu não posso simplesmente chegar sem dinheiro, sem roupas... — ponderou, e o conflito estava nítido em seu semblante.
Sentiu uma forte dor invadir seu corpo uma vez mais. Junto dela, uma estranha sensação, uma que por mais bizarro que fosse, lhe parecia familiar, mesmo que não se recordasse de ter sentido nada assim em sua vida. Outras imagens dominavam seu imaginário, podia ver nitidamente corpos por todos os lados, e o horror tinha ficado gravado em suas faces. A maioria daqueles rostos lhe eram conhecidos, no entanto, notava que algo não parecia se encaixar em toda aquela visão: a existência de uma silhueta, que era tão alta e estava envolvida em um manto viscoso carmesim.
A estranha aparição perambulava por entre os corpos, farejando-os. Sua aparência era peculiar, já que assemelhava-se a um ser humano de corpo franzino, percebendo que havia uma ligação bizarra consigo.
— Não, não... Eu não quero isso... — disse horrorizado com a cena extremamente grotesca que via, e que mais parecia ter saído de algum filme de terror.
Vá! Alimente-se!
Ouviu outra vez aquela voz desconhecida para si. O timbre cavernoso e rouco ficara gravado em sua memória, enviando diversos arrepios por toda extensão de seu corpo. Aquelas palavras pareciam repetir-se como um mantra e reverberavam por todo seu ser. Gabriel sentia que sua fome parecia nublar cada vez mais seu julgamento. Olhou uma vez mais em direção do posto de gasolina, notou que o frentista não estava mais sozinho. Naquele instante, um grupo de quatro jovens deixava a loja de conveniência, todos tão barulhentos, eufóricos e bêbados.
Seus olhos estavam fixos no homem que não percebia estar sendo observado, que o perigo ocultava-se no manto da noite. O homem de não mais que trinta e poucos anos, observava com monotonia os jovens afastarem-se dali, sabia que trabalhar no turno da noite podia ser por muitas ocasiões enfadonho, e que as horas custavam muito para passar. A clientela não era tão ativa quanto nas últimas horas do dia, enquanto muitos ainda se preparavam para uma noite de festividade, de muita dança e bebidas. Era sempre comum comprarem cervejas e catuabas dos vendedores ambulantes, e o excesso de bebida antes de entrarem nos clubes, sempre os deixavam com vontade de ir ao banheiro, e que por consequência disso, muitos acabavam precisando utilizar o único existente no estabelecimento em que trabalha.
O som do coração do frentista parecia lhe hipnotizar e seus olhos fixavam-se no homem desavisado. Sua respiração estava pesada, e não conseguia pensar em mais nada, além daquele som envolvente, o cheiro de essência de pinho vinha dele.
— Que porra é essa?!
O homem assustou-se ao notar que Gabriel se aproximava. Alguma coisa em seu interior o alarmava, e não era para menos, afinal a aparência daquele rapaz não estava nada boa, e isso lhe causava calafrios.
— Eu preciso de ajuda... — disse Gabriel em voz baixa.
— Se você continuar caminhando um pouco mais irá encontrar um ambulatório pronto.
O frentista queria a todo custo livrar-se da presença incômoda do rapaz, mas sem sucesso algum, pois Gabriel ainda permanecia diante de si, fitando-o com aqueles olhos diabólicos, embora seu semblante fosse de alguém que realmente estava em necessidade.
— Acho que não conseguirei chegar até lá...
Disse em uma espécie de murmúrio enquanto diminuía a distância existente entre eles. O homem o observou um pouco mais de perto, tentava avaliar qual seria o problema, e por que diabos ele estava pelado?
— Podemos chamar a emergência...
O frentista tirou seus olhos por um instante, sua intenção em tentar ajudá-lo de alguma forma, de livrar-se do problema ao tentar pegar seu telefone. Aquela, tinha sido a pior decisão que ele poderia ter tomado naquela noite. Gabriel sem aviso algum, avançou sobre o homem que gritou, mas não chegou a ser ouvido e acabaram desaparecendo dali tão rapidamente quanto Gabriel tinha aparecido. Quando percebeu, estavam dentro de um pequeno túnel próximo a uma das praças que ligam a rua da Consolação com a Augusta. Era um local perfeito. A falta de iluminação ali, tornava as coisas mais assustadoras, além do fato de que alguém que aparentava estar quase morto ter tanta força para segurar um homem sadio.
Gabriel mantinha sua vítima presa contra a parede. Com sua mão esquerda, ele segurava o homem pelos cabelos, enquanto mantinha seu outro braço sobre o pescoço do frentista que tentava lutar, se debatendo e o xingando de todos os nomes que fossem possíveis, mas tudo em vão.
— Pare! — Enfurecido, Gabriel vociferou.
Sua voz ecoou por todo túnel, ela mais parecia um rosnado advindo de uma criatura das trevas do que de uma pessoa. Para surpresa de Gabriel, a vítima tinha acatado sua ordem, o homem estava inerte e completamente à sua mercê. Mesmo estando imersos na escuridão, conseguia ver sua vítima tão claro quanto o dia, encarava o pescoço do homem que estava tão quente, que seu calor emanava diretamente contra sua pele; o corpo dele parecia um pouco flácido, e os olhos pareciam tão mortos, apesar de que ele ainda permanecia diante de si, respirando pausadamente, como se estivesse dormindo. Gabriel sentiu sua boca encher-se de saliva, seu próprio coração batia bem mais forte. Estava eufórico e sentia-se vitorioso.
Beba!
E novamente ouviu aquela voz, que assim como ele, encontrava-se em um estado de frenesi. Outras vozes adicionaram-se a primeira, e em coro lhe comandavam — Beba! Sangue é vida! Beba! Beba!
Gabriel fechou seus olhos e entregou-se ao desejo, a fome. Estranhou no início, pois gosto era metálico, e quase o fez vomitar, mas o líquido quente e viscoso parecia preencher completamente cada espaço vazio de seu ser. O frentista queria gritar, porém sua voz estava presa em sua própria garganta, seu desespero era sentido através do beijo da morte, e suas forças lentamente desapareciam junto de toda resistência que tinha à medida em que seu precioso sangue era sugado.
Uma garota pequenina tomou conta de seus pensamentos, estiveram juntos horas atrás. Fizeram lição de casa juntos à mesa, e ele a olhava carinhosamente. Aquela menina era a coisa mais importante de sua vida, e agora não seria mais capaz de estar no mundo dela. Repentinamente, já não estavam mais juntos, mas sim em um banheiro em que podia ouvir música ao fundo. Sentiram dor, pois alguém os mordera.
De imediato, Gabriel soltou o homem que deslizou contra a parede fria e úmida, o encarando completamente apavorado. Havia lágrimas em seus olhos, talvez estivesse pensando na filha. Não se recordava se teria dito o quanto a amava antes de sair para mais um dia de trabalho, nem sabia se conseguiria vê-la uma vez mais antes de partir. Gabriel, por outro lado, colocou sua mão sobre seu próprio pescoço, mas não havia nada ali, marca alguma, apenas a sensação de que alguém o mordera, assim como ele tinha feito com aquele pobre homem agonizando no chão.
Ainda tentava compreender o que tinha acabado de acontecer, sentia-se estranhamente revitalizado. Olhava para o homem que estava no chão, no entanto, ele continuava em silêncio, lhe encarando. Aquilo lhe embrulhou o estômago. Os batimentos do coração estavam fracos, como chamas prestes a desaparecer após um leve soprar.
As peças lentamente começavam a fazer sentido. Como o fato de não ter atravessado para o outro lado, as estranhas sensações que sentia desde o momento em que despertara, e por fim, o sangue. A última constatação o deixou ainda mais perplexo.
— Meus Deus! Eu sou um vampiro!
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