{Cap. 14}
Você nunca mente
E você não trai
E você não tem qualquer bagagem amarrada em suas patas
Man Of The Hour
╰─────────────➤✎Norah Jones
– Ontem vocês foram até o armazém e nem para trazerem uma comida mais decente... – Lúcio reclamou irritado – Trouxeram só essas comidas que só servem para cachorros e isso porque ficaram o dia inteiro lá embaixo.
Olhei para baixo instintivamente ao lembrar do dia anterior. Eu e Liam simplesmente não havíamos mais tocado no assunto, era como se o dia anterior não tivesse ocorrido para ele. Para mim, seguia sendo um dia que terminou de maneira vazia e dolorida.
– Morre de fome então – Liam reclamou fuzilando Lúcio com os olhos – Pegamos o melhor que podíamos de acordo com as circunstâncias. Além do mais, quem pediu isso foi o Yan.
– Se só tem isso no armazém é porque quem está saindo não está trazendo comidas melhores – Lucio cruzou os braços e lançou um olhar de reprovação para Liam, como se quisesse seguir aquela briga estúpida.
– Você está sendo injusto Lúcio – falei tranquilamente – Você não sabe como está lá fora. Encontrar o tipo de comida que você quer não é fácil do jeito que você pensa.
– E por que você o está defendendo? – o mau humor de Lúcio só aumentava e acredito que respondê-lo só tenha piorado a situação – Vocês nem se gostam...
– Eu não o estou defendendo – falei em um suspiro – só estou dizendo que tenho certeza de que eles tentam trazer o melhor que encontram. Faz quanto tempo que você não sai dos limites da escola? Você não faz ideia do caos que está lá fora...
– O quê? Não me diga que você realmente gosta desse imbecil! – Lúcio praticamente gritou.
– Ei, pequeno bastardo – Liam resmungou claramente irritado – deixa ela em paz. Se você não gosta, não coma... O que você quer que eu faça? Que eu saia perguntando qual o menu preferido de cada um aqui? Não sou seu empregado.
– Olha, Lúcio – sorri tentando acalmar os nervos – Sei que está difícil e entendo o seu mau humor... nem todos os dias conseguimos ficar bem, não é? Não podemos correr o risco com algumas comidas por conta de intoxicação e a cada dia que passa vai ficar mais difícil comermos comidas que gostávamos antes.
Escutei Liam estalando a língua ao lado, parecia que estava tentando controlar a raiva. Repensei no dia anterior e tive uma ideia para acalmar o Liam também, logo atrás da escola, ainda nos limites dos muros, eu levava todos os dias um pouco de comida e água para dois filhotes de cachorro. Eu os havia encontrado junto com Yan no dia em que fomos buscar comida na horta que ele havia plantado ali. Não tínhamos mostrado eles para ninguém e os deixamos em um lugar na qual praticamente ninguém ia, não sabíamos como reagiriam e isso havia passado a ser o nosso pequeno segredo, mesmo assim resolvi arriscar.
– Liam – me virei para ele calmamente – Será que você podia vir em um lugar comigo?
– E se eu te disser que não? – ele falou claramente ainda emburrado.
– Vamos, não seja malvado – falei sorrindo e pegando ele pelas mãos. O rosto de Lúcio ficou um pouco mais sombrio, mas eu tentaria acalmar Lúcio mais tarde. As explosões de Liam me preocupavam muito mais do que as caretas do Lúcio – Vamos, eu sei que você vai gostar.
Ele se deixou levar reclamando uma e outra vez. Quando descemos ele começou a ficar mais silencioso e antes de sairmos pela porta da escola ele parou e me segurou.
– Não podemos sair assim – ele forçou um pouco o maxilar.
– Não se preocupe, não vamos sair da escola – falei sorrindo – Só vamos até próximo da horta.
– Eu não vou pegar comida para aquele pequeno bastardo lá dentro – ele falou parecendo se irritar com a simples ideia.
– Não seja ranzinza – falei revirando os olhos – vem logo.
Passamos pela porta e antes de irmos para a horta, guiei Liam para perto de um pequeno reservatório de água que Luciel mantinha ali próximo, peguei o pote que eu e Yan havíamos deixado ali do lado e o enchi, depois coloquei a mão em uma pequena entrada que havia na parede pelo caminho e retirei um saquinho de ração.
– O que é isso? – Liam me perguntou abrindo um pouco mais os olhos e eu apenas sorri.
– Vem – indiquei com a cabeça.
Chegamos perto da horta e então eu assobiei e quase que instantaneamente dois pequenos filhotes correram na minha direção, com seus latidos finos e constantes me fazendo sorrir. Por ali corriam dois pequenos filhotes de pastor alemão com a pelagem curta e preta, um deles, com uma pequena cenoura de brinquedo na boca. Olhei para o lado e vi como Liam perdia qualquer pose que ele havia tentado manter até aquele momento.
– Oi, meus amores – falei deixando o pote de água de lado e acariciando dois filhotes de no máximo 4 meses que pulavam e mordiam tentando brincar comigo – Estão com fome? Vamos... me levem para a mamãe que eu vou dar comida para vocês.
Me levantei novamente com o pote de água na mão, entreguei o saco com ração nas mãos do Liam, que seguia extremamente surpreso e com a mão que havia ficado livre eu puxei Liam pelo braço até uma pequena sala, que possivelmente havia sido um depósito para o zelador ou algo do tipo.
– Oi moça bonita – falei quando vi a mãe dos filhotes se levantando e correndo até onde eu estava – Ei, calma, você vai me derrubar.
Não precisou de muito para que Liam esquecesse completamente que eu estava ali. Ele brincava com os filhotes, logo brincava com a mãe e enquanto isso eu fui organizando o lugar que já estava uma zona de novo. Abri um pouco a pequena janela que ficava no alto de uma das paredes para que pudesse circular um pouco de ar, arrumei os cobertores e busquei nos cantos para ver se tinha xixi ou cocô para limpar, mas acho que Yan já havia passado ali mais cedo pois só havia encontrado uma pequena mancha recente de xixi.
– Você vem aqui todos os dias? – Liam me perguntou ainda brincando com os dois pequenos.
– Quando eu consigo, sim. Yan sempre passa aqui quando vai pegar alguma coisa na horta.
– Quem mais sabe disso? – os olhos de Liam brilhavam de tal maneira que me senti extremamente feliz ao notar o quanto eu podia ter melhorado seu o dia.
– Só eu e o Yan. Encontramos os filhotes vasculhando o lixo quando viemos na horta juntos uma vez. Não conseguimos nem cogitar a ideia de tirá-los daqui, então pegamos alguns cobertores que achamos no gabinete de segurança e trouxemos. Para a nossa sorte, encontramos alguns sacos de ração aqui nesse quarto e os mantivemos aqui – mostrei alguns outros cobertores empilhados em um canto e mais ou menos meia dúzia de grandes sacos de ração em um armário no alto – Como as rações ficam muito altas para mim, optamos por deixar esse saquinho em um dos muros. Desde esse dia revezamos para vir na horta, acho que ninguém nunca reparou que ele sempre me pede quando não pode.
– Na verdade eu havia notado, mas achei que era porque você sabia escolher os alimentos – eu ri com a simples ideia de entender alguma coisa sobre qualquer alimentação que fosse. Liam mal sabia que o Yan sempre me indicava o local exato e me descrevia com detalhes o que eu já podia pegar – Eu posso trazer coisas para eles quando eu sair, só precisa me pedir o que você acha necessário, não deve ser difícil encontrar essas coisas nas casas de rações, mas em troca me traz com você quando você voltar? – o olhei novamente, buscando aonde tinha ido parar toda a arrogância característica dele e notei o quanto meu coração batia forte do peito.
Sentindo um vento gelado, esfreguei um pouco os braços para esquentá-los e tentei agilizar o que eu tinha que fazer.
– Você está com frio? – Liam me olhou com seu sorriso de lado – Posso te esquentar se você quiser.
– Muito engraçadinho – falei revirando os olhos – Vou buscar um pouco mais de água para limpar aquele canto – apontei o local que eu tinha encontrado a mancha de xixi.
– Não – ele se levantou – espera, eu vou – ele tirou a jaqueta que estava usando, a colocou no meu ombro e saiu com um balde que eu havia deixado no canto do depósito sem me dar a chance de reclamar.
Quando ele voltou e eu fui limpar o chão, notei o como o nariz dele e os olhos estavam vermelhos e me perguntei se ele havia chorado, mas preferi ficar quieta.
– Quando eu encontrei o meu cachorro, eu o salvei de uns moleques que o estavam maltratando na rua – ele começou a falar sem virar seus olhos para mim – meu pai não o queria, tivemos uma briga feia esse dia. Ele não queria um cachorro vira-lata em casa. Disse que se eu quisesse, ele compraria um cachorro melhor para mim. Eu me irritei muito e comecei a gritar com ele. A gritaria fez com que Ashley fosse até onde estávamos e quando ela viu o filhotinho meu pai simplesmente não pôde mais separá-los.
Olhei para Liam que vagou seus olhos no filhote que havia cansado de brincar e foi morder o cobertor. Sua mente parecia reviver outros tempos e eu tive medo de tirá-lo daquilo, mas também tive medo de que ele ficasse triste. Ponderando minhas opções resolvi tirá-lo do passado e trazê-lo de volta ao presente.
– Eu estou surpresa de saber que você é assim, Liam – falei com um sorriso travesso no rosto.
– Por quê? Achou que eu fosse como?
– Achei que você fosse só um homem frio e sem coração, aqueles típicos rudes sem sentimentos.
– E eu sou – ele falou sorrindo maliciosamente.
– Pois é... infelizmente você acabou de mostrar uma fraqueza sua. Talvez eu tenha conhecido um lado sensível e gentil seu...
– Continue a se iludir que eu gosto de uma mulher iludida – ele apertou um pouco os olhos e eu senti novamente meu corpo esquentar, e com certeza não era por conta da jaqueta.
Sentindo o rosto ficar vermelho por conta daquele sorriso marcante e seus olhos verdes brilhantes, eu me virei de costas para ele e fui em direção a porta.
– Vamos, eu preciso de um banho antes da reunião – falei sem me virar.
– Quer ajuda com o banho? – senti seu olhar fixo na minha nuca e eu sabia que ele seguia sorrindo – Não seria um problema fazer mais isso por você. No fim, eu já te esquentei hoje, afinal a jaqueta que você segue usando é minha.
Fiz menção de tirar a blusa, mas ele me impediu.
– Não – ele falou quase em um sussurro – Não se preocupe, eu posso seguir te esquentando até entrarmos na escola de novo.
Sem falar nada eu puxei a porta onde os cachorros estavam, lembrando de deixar a porta somente encostada para que eles pudessem sair caso fosse necessário e caminhei em silêncio na frente de Liam. Enquanto subíamos a escada em um silêncio incômodo, acabei trombando com o Luciel.
– Nossa – ele falou pulando de susto – Desculpa, Eva. Não te vi aí.
– Tudo bem – falei tentando abrir espaço para passar – Eu estava distraída. Me desculpa.
– Não esquenta – Luciel sorriu – Ah, oi Liam – ele acenou olhando através do meu ombro – Eu estava atrás de você, preciso que me ajude com algo.
– Ah... – Liam pareceu sair de um pequeno transe também – Tudo bem, eu só quero tomar um banho e te encontro. Pode ser?
– Não, vai ser rápido. Preciso que você desça comigo até o térreo, é rapidinho – ele seguiu.
– Tudo bem... – Liam se deu por vencido, mas antes que ele voltasse a descer, eu o chamei.
– Ei, Liam. Sua blusa – fiz menção de tirar de novo.
– Depois você me devolve – ele fez um sinal qualquer com a mão e desceu.
Fui direto para o quarto e quando eu tirei a blusa dele, notei seu perfume tão particular impregnado na minha roupa. Seu perfume amadeirado inundou o ar do quarto e me segurei para não levar sua blusa até o nariz. Por que eu estava me sentindo assim? Como ele podia ser tão irritante, arrogante e ao mesmo tempo tão encantador e atencioso? Sentindo minha cabeça voltar uma e outra vez para o garoto sensível que havia brincado com os cachorros e falado algo de sua vida ou para seu sorriso marcante e malicioso sempre que queria me provocar, preferi tentar afastar esse sentimento que estava tentando me dominar e fui para o banho. Eu não podia gostar de mais ninguém, muito menos do Liam. Eu tinha a sensação de que se eu gostasse de alguém mais, eu estaria traindo toda a minha história com o Nick..., mas o Nick estava morto.
Tentando pensar em outras coisas eu enfiei a cabeça debaixo da água e escutei a Judy entrar.
– Eva? – ela me chamou – Vou trocar a Alana aqui e depois vamos para a reunião, está bem? Você sumiu um tempo. Está tudo bem?
– Estou bem Judy, espera um pouco que eu vou te ajudar com a Alana.
– Não se preocupe. Eu faço aqui tudo rapidinho. Você trabalha e eu cuido da Alana, lembra?
Sorri com a insistência dela, mas apressei o banho mesmo assim. Trocamos a Alana e fomos tranquilas juntas para a reunião e para ser sincera, eu deliberadamente "esqueci" a blusa do Liam na minha cama.
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