4. CREME BRULÈE
A sensação de tomar o primeiro copo de água após a cirurgia foi um momento único, como se tomar um simples copo de água fosse um acontecimento. E foi assim que passei a maior parte das duas, talvez três semanas seguintes depois que saí do hospital. Tudo o que acontecia me enchia os olhos de água, eu ficava arrepiada, tudo me emocionava. Nada era trivial.
O primeiro banho que eu tomei sozinha quando já estava me recuperando foi hilário! Eu cantava meio que desafinando por não querer fazer força. Depois, numa tarde fria e cinza, fiquei horas sentada na janela olhando para a chuva que caia torrencialmente lá fora, hipnotizada. Às vezes, via os pingos em câmera lenta, outras me detinha com gotinhas numa poça. O som da chuva era espetacular, como música, era um mantra que eu não enjoava de ouvir.
O dia que pude sair de casa pela primeira vez foi um feito. Convenci minha mãe a me deixar ir ao mercado. A condição dela foi levar Daniel comigo. A desculpa dela era de que eu precisaria de alguém para me ajudar a carregar as coisas, mas eu sabia muito bem qual era o sonho dela. Não me incomodei, passar algum tempo com ele é uma coisa que jamais me irritou.
Queria comer tanta coisa que levaria horas fazendo compras. Mesmo assim, com tantas coisas em mente foi quando cheguei à parte da feira que fiquei fascinada. Sentia tantos cheiros excitantes que parei por ali mesmo. Experimentei todo tipo de fruta, todo tipo de verdura, e coisas que nem sabia que existiam. Algumas azedinhas me faziam espremer os olhos e chamar a atenção de outros clientes. Alguns sabores eram tão deliciosos e únicos que me faziam rir. Daniel vez ou outra ria de mim, e não comigo, mas eu estava contida, na medida do possível. Tinha acabado de sair do hospital e não queria ser internada novamente, ainda mais se fosse num hospício.
- Como pude passar tanto tempo sem comer um kiwi?
- Que absurdo! – ele ironizou.
- É sério. A textura é incrível, o gosto é maravilhoso.
Levei quase tudo pra casa e quando cheguei fiz uma salada de tudo. Inventei receitas absurdas. Algumas não surtiram efeito, outras fizeram até minha mãe, com toda sua exigência de perfeição ficar satisfeita (depois de repetir o prato umas duas vezes). Em alguns dias eu me surpreendia me sentindo mais feliz preparando do que comendo as receitas.
Qualquer coisa que eu fizesse me animava, nada era tedioso e cozinhar estava virando meu passatempo favorito. O trivial do dia-a-dia acabou se tornando o creme brulèe da minha vida.
Meus pais estavam contentes com a minha recuperação, não apenas física, mas mental também. Eu me sentia incrivelmente bem e disposta. Quando saí do hospital chegaram a sugerir terapia, caso eu me sentisse mal, mas não precisei.
Talvez se meus pais soubessem o que eu fazia no meu quarto quando eles já estavam seguramente dormindo no conforto de suas camas, eu precisasse ir para a terapia, ou me confessar para algum padre.
Procurei na internet todos os cemitérios existentes na cidade, e liguei para cada um deles todas as vezes que ficava sozinha em casa em busca da sepultura do ex-dono do meu coração. Rezava para não ter ido para outra cidade, e por sorte não foi o caso.
No dia em que descobri qual era, me assegurei de não ter um ataque cardíaco de nervoso, precisava honrar o que eu carregava. Precisava mais ainda ir até lá. Não sabia o que me impulsionava tanto, apenas aceitava.
Umas duas vezes quase deixei escapar para o Daniel. Ele sempre esteve do meu lado, e parecia muito seguro dividir com ele, mas achei melhor guardar só para mim. Eu tinha prometido guardar o segredo.
Com minhas idas freqüentes aos mercados e feiras, não foi difícil despistar meus pais. Eu tinha um álibi perfeito.
***
Minhas mãos estavam suando frio. Eu estava com uma sacola carregada de fruta quando cheguei. Nem pensei em flores, que estúpida. Nem pensei em nada na verdade, apenas fui.
O nome era o mesmo que eu carregava anotado num papel. Inteirinho. Não havia foto, mas muitas flores. Perdi um pouco da sustentação das minhas pernas. Tremia bastante, e meus olhos queimavam de vontade de chorar. Então chorei, chorei muito. Agradeci sussurrando e prometi que iria sempre visitar e que iria cuidar do seu coração o melhor que pudesse. Nem me preocupei com o fato de que algum familiar pudesse aparecer. E ninguém apareceu mesmo.
Deixei uma maça sob a lápide e fui para casa.
- Você demorou hoje. Não me deixe preocupada, Sofia.
- Me esqueci da hora, mãe. Mas estou bem e inteirinha, quer conferir? – brinquei.
- Muito engraçada. A janta está quase pronta.
- Vou só tomar um banho rapidinho e volto logo.
Dei um beijo no seu rosto a desarmando completamente e fui para o refúgio mais seguro que um humano pode ter. O banho. No banho até as lágrimas se camuflam na água que escorre do chuveiro, é um lugar muito seguro.
Entre uma garfada e outra de uma torta maravilhosa que minha mãe tinha feito, tive coragem de falar.
- Mudei de ideia sobre a faculdade.
- É mesmo? – meu pai perguntou com curiosidade.
- É sim.
- O que pretende fazer?
- Quero ser chef... – respondi com um pouco de medo.
- Acho uma ideia muito legal. – minha mãe falou me deixando surpresa.
- Sério? – consegui falar depois de tomar um gole grande água.
- Sim, não vejo problemas. – meu pai também concordou.
Eu sabia o que eles estavam fazendo. Talvez se eu fosse uma pessoa "normal", com uma vida comum, eu levasse um sermão de horas provando como ser advogada seria melhor para o meu futuro. Mas não, eles estavam me apoiando. Acho que sentiam pena. Apesar de eu estar bem e estável, com certeza estavam com o mesmo medo que eu tinha de não ter todo o tempo do mundo.
- Algumas coisas fazem a gente abrir a mente, Sofia. – meu pai interrompeu meu devaneio.
- Eu amo vocês... – falei antes de uma lágrima salgada cair no meu prato.
- Tenho certeza de que coloquei sal o suficiente na comida, mocinha. Não precisa salgá-la. – minha mãe brincou sorrindo para me confortar.
No dia seguinte, eu já estava procurando por cursos de gastronomia. A sensação era a de que eu estava correndo contra o tempo. Mesmo que eu soubesse que estava bem, continuava com um medo estranho e não parecia certo jogar tempo fora.
Algumas vezes fazia dois cursos ao mesmo tempo e trabalhava também. Minha mãe chegou a pedir para eu diminuir o ritmo, mas eu estava obcecada por viver.
- Você precisa sossegar um pouco – Daniel falou numa tarde.
- Eu preciso é viver, Daniel. To com essa estranha obsessão pela vida...
- Eu notei. Teus pais notaram. Todo mundo notou. Mas sabe, eu to feliz de te ver assim – disse se aproximando demais de mim.
Me distanciei de forma sutil para que ele não se chateasse, mas ele percebeu o movimento.
- Talvez você tenha virado o Capitão América mesmo, cheia de superpoderes – brincou para aliviar o clima.
- Posso te dar uma surra para testar, quer?
- Não quero ser o responsável pela sua volta ao hospital – riu e então ficou quieto ao meu lado como a gente fazia quando eu ainda tinha meu antigo coração.
No final da tarde, quando ele tava indo pra casa, confessei.
- Estou tão realizada que chego a pensar que o meu problema de saúde talvez tenha me salvado de uma vida monótona e triste...
E com certeza tinha. Mas não ousei contar isso para mais ninguém, principalmente para minha mãe. Pretendia ficar viva para convencer ela e meu pai de me deixarem viajar para a França. Ia precisar de muita energia para isso.
Certo dia, durante uma aula, notei um rosto que me parecia familiar. Demorei a reconhecer aqueles olhos redondos e cabelos volumosos. Depois de muito esforçar a memória o nome veio à ponta da minha língua como se quisesse ser cuspido para fora. Madalena! Esse era o nome daquele rosto. Madalena havia estudado comigo no colégio, mas não éramos próximas. Na verdade teve um tempo que eu era próxima apenas da minha cama e do meu gato. Mesmo assim, durante o seguimento do curso, acabamos nos tornando grandes amigas. Ela sabia muitos truques e tinha paciência para dividir seu talento enquanto eu estava louca para absorver tudo que podia a minha volta.
Depois de muita insistência, meus pais permitiram que eu fosse para a França. Mais de um ano havia se passado desde que senti vontade de ir, então, mostrei a planilha de gastos que eu tinha feito para poder viajar e pagar o curso. Trabalhei muito para juntar o dinheiro e eles acharam válido, mesmo com um pouco de medo, me deixaram ir, e Madalena foi junto.
Eu já não era mais uma menina, mesmo que eles me vissem como uma. E dei a sorte deles adorarem Madalena, e talvez eu tenha conseguido meu alvará de soltura graças à companhia da minha amiga. O tempo todo eles estavam em busca de um tipo de guardião parar mim. Já tinham feito isso com Daniel, agora era a vez de Madalena. Ainda que Daniel fosse o número um no coração da minha mãe.
Foram quinze dias incríveis (de telefonemas diários para informar minhas condições físicas e resumos de tudo, mas incríveis).
Depois que voltamos, eu e Mada acabamos nos tornando inseparáveis, quase irmãs. Quase pelo único e exclusivo fato de que não compartilhávamos a mesma mãe, já que vivíamos grudadas, e para ser bem sincera, algumas vezes eu compartilhava minha mãe com ela.
Começamos bem, trabalhando em um restaurante que tinha uma das melhores cozinhas da cidade. Mas, ainda não era suficiente para os meus planos. Ainda assim, trabalhei lá por mais de dois anos. Juntei um bom dinheiro, ganhei alguns prêmios e como ainda morava com meus pais consegui guardar uma boa reserva.
Meus pais, apesar de me apoiarem, estavam sempre me trazendo de volta para realidade e me puxando para o chão. Com o tempo, o deslumbramento de viver foi ficando mais manso dentro de mim e eu aprendi a viver novamente. Pouco mais de cinco anos após o meu transplante parei de sentir medo de não ver o próximo dia nascer, mas antes disso, acordava com o pensamento grudado em mim todas as manhãs.
Sinceramente, eu preferia sentir que tudo era uma aventura, mas um sentimento assim não dura para sempre. Ajustei o matiz da minha vida que logo foi tomando nuances mais neutras.
Sempre me batia uma satisfação enorme de estar viva de tempos em tempos, mas eu tinha voltado a ser normal, mais contida, menos impulsiva. Até pensei em transformar minha televisão num aquário para não ter distrações inúteis na vida, mas televisores não têm mais tamanho e forma para isso. E na verdade eu adorava assistir tranqueiras na TV, por tanto desisti da ideia. Afinal, quem eu iria enganar com um computador, celular e toda a modernidade que eu confortavelmente não conseguiria viver sem? O importante é que eu tinha voltado a ter futuro e isso era algo maravilhoso.
Estávamos voltando para casa juntas depois de um dia cansativo quando lembrei de uma noite minha e de Madalena em Paris.
- Mada...
- Hm? – ela resmungou em resposta por causa do cansaço.
- Lembra dos planos que fizemos na França?
Ela sorriu claramente se lembrando dos nossos sonhos deslumbrantes afetados fortemente pela influência da cidade luz.
- Claro que lembro.
- Talvez esteja na hora.
- Talvez esteja.
- Você está concordando por que está cansada? – perguntei rindo.
- Talvez esteja – riu.
- To falando sério!
- Sim, sim... Estou cansada. Mas não cansada de um dia de trabalho. Acho que está na hora de mudar mesmo.
Meu coração deu um salto. E senti um frio intenso na barriga.
Em Paris, fizemos um pacto de que teríamos nossa própria pâtisserie, e agora, talvez fosse a hora da gente tornar esse pacto uma realidade.
Não foi fácil, nem rápido, mas ficar numa fila de transplante é ótimo para te ensinar a ser paciente.
Quando parei pra pensar em tudo que a gente ia ter que fazer para abrir algo do tipo, me deu um certo desespero, confesso. Capital para investimento, um lugar legal em uma localidade bacana, funcionários, fornecedores... Mas foi o tipo de esforço gratificante.
Aos poucos fomos transformando a pâtisserie e ela ficou como eu sempre havia imaginado. Não era um espaço muito grande, mas era perfeito. Era nosso.
Nossa especialidade sempre havia sido o doce, por isso, ficamos famosas pela confecção de cupcakes, feitos por nós como verdadeiras obras de arte. Eram nosso carro chefe.
Madalena e eu criamos a receita e o design de todos os doces. Também batizamos todos eles com nomes nada convencionais. Temos até uma especialidade da casa carinhosamente nomeada de Madalena Sofia, diga-se de passagem, uma verdadeira delícia de banana com morango e o clássico glacê. Madalena insistia que morango era a melhor fruta, enquanto eu teimava que preferia banana, e assim, nasceu o doce.
Há também edições especiais que fazem um sucesso tremendo. No dia dos namorados, quase todos os bolinhos do cardápio ganham o formato de coração e de um tempo pra cá começamos uma campanha e parte das arrecadações é doada pra o hospital em que fui operada.
As celebridades também estampam seus nomes em nossos cardápios. Michael Jackson é um dos mais pedidos: cupcake meio chocolate e meio baunilha, com uma delicada cobertura de chocolate meio amargo e tem a opção acompanhando sorvete de pistache. Madonna está logo atrás com seu recheio de frutas vermelhas e seu tablete de chocolate branco. Talvez eu e Madalena não devêssemos beber na hora de fazer a escolha de nomes para os doces do cardápio...
A cada dia que passa surge uma nova receita ou uma nova criação. Com freqüência temos que aumentar o cardápio. Madalena brinca sempre que logo ofereceremos novas edições do cardápio, e que organizaremos por volume tantas obras. Brincadeiras desse tipo me enchem de orgulho, na verdade.
Mesmo sendo suspeita, confesso que fica difícil decidir qual é o mais gostoso. É uma tarefa árdua que os clientes enfrentam quando abrem o cardápio, sem modéstia alguma, é claro.
Como meu coração, a pâtisserie se estabilizou. Era bastante freqüentada, tinha clientes assíduos e famintos. O que era ótimo para mim. Certa vez vieram me perguntar se eu não tinha interesse de abrir franquias ou de aumentar o tamanho do lugar, mas eu gostava daquele ar de lugarzinho pequeno e aconchegante. Senti medo dos meus doces perderem a qualidade se fossem produzidos em escala. Eram exclusividade e exclusividade não se encontra em toda parte. Madalena e eu queríamos que continuasse assim.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro