20. CHOCOLATE MEIO AMARGO - PARTE IV
- Maldito celular – esbravejei quando o aparelho estridente me despertou.
Por que eu fui colocar isso pra carregar? Porque não coloquei no mudo?
- Alô?
- Oi, Sofia.
Sentei na cama abruptamente.
- Daniel?
- Sou eu. Abre a porta. Já bati mil vezes e eu sei que você tá aí.
- Tô indo...
Levantei meio cambaleante ainda com os olhos inchados de sono.
Quando abri, era ele mesmo. Mas ainda não era ele. Era aquele novo Daniel que estava me dando nos nervos.
- Entra – ofereci já que ele não se moveu. – Desculpa minha cara, eu tava dormindo.
- Você está bem? Eu fui ao café e a Madalena me contou que você estava mal.
- Contou, é? – queria saber até que parte da história ela tinha chegado.
- Contou que passou a noite no hospital com crise de cólica renal.
Ufa.
- Sim. Eu sou ou não sou sortuda? Eu devia jogar na loteria, provavelmente ganharia duas vezes.
Ele não riu. Nem esboçou a menor vontade de fazer isso.
- Qual é Daniel?
- Oi? – ele pareceu não entender.
- Eu perguntei qual é – repeti enfaticamente. – E não me venha com historinhas que eu não acredito. É óbvio que tem algo errado. Ou você me diz logo, ou pode ir embora.
Meu coração se apertou depois que eu despejei tudo sobre meu amigo. E quase implodiu quando ele se virou e foi caminhando até a porta.
- Eu já estou indo.
- Isso mesmo. Vai lá – continuei inconformada e segurando o choro.
Não me movi. Vi ele estender a mão e tocar a maçaneta. Então espremi os olhos de raiva e uma lágrima brotou dos meus olhos.
- Eu só não agüento – ele falou ainda de costas me fazendo arregalar os olhos molhados.
- Não agüenta o quê?
- Não agüento te ver o tempo todo e não poder ter você.
- Daniel... pensei que você fosse meu amigo.
- Eu sou seu amigo, mas você sempre soube, Sofia. Sabia que sempre fui louco por você. Não me diga que não, porque eu não vou acreditar em historinhas – falou ironicamente.
- Eu sei – disse num tom muito baixo. – Mas por que isso agora?
- Eu sempre tolerei tudo. Afinal, eu realmente sou seu amigo. Sempre estivemos juntos, e tua presença sempre me fez bem. Você teve seus namoros, e eu sofria sempre, mas depois acostumava e não duravam muito de qualquer forma – fez uma careta.
- Ah, claro – repeti a careta também.
- Mas aí, chegou teu amiguinho Cristofer.
Bufei ao escutar o nome dele.
- O que tem ele?
- Eu vi Sofia – ele parecia enorme parado no meio da sala, me olhando com os olhos cor de mel.
- O que você viu, Daniel?
- O dia que você me apresentou a ele, achei você diferente, não tem como explicar. E então um dia, tarde da noite, vi vocês dois andando juntos vindo pra cá. Eu ia passar lá no café pra me oferecer pra te acompanhar, mas já tinha perdido o lugar. Eu vi no teu jeito, nos teus olhos, uma coisa que nunca vi antes. Nunca te vi daquele jeito por ninguém. Então me dei por vencido.
Me encolhi toda e sentei no sofá.
- Não estou te culpando – falou se sentando do meu lado.
- Desculpa – pedi, mas não sabia direito o por quê.
- Não quero que se desculpe. Quero que me entenda. Que saiba o quanto eu sofro quando vejo o amor que você sente por ele. É egoísmo da minha parte, eu sei. Mas o amor é fundamentado no egoísmo, segundo a nossa cultura horrível – sorriu.
- Não estamos mais juntos.
- Não? Eu adoro saber da noticia, mas vou tentar ser um pouco menos egoísta e perguntar o porquê, já que o cara também arrasta as duas asas por você.
- A doadora do meu coração era noiva dele – quis ir direto ao ponto.
- Como é que é? – se espantou.
- Pura coincidência. Sempre soube o nome da doadora. E esses dias vi uma foto nas coisas dele com o nome dela. E logo ele ligou os pontos.
- Meu Deus! – disse colocando a mão na boca.
- Então ele achou que eu já sabia de tudo, reclamou por eu ter mexido nas coisas dele... – segurei o choro.
- Nem preciso perguntar se está bem, não é?
Então contrariando tudo que eu esperava, me abraçou.
- Desculpa, Sofia – falou sobre meus cabelos despenteados. – Me perda por não poder ser o seu amigo de sempre, mas saiba que eu quero seu bem, nem que seja ficar com esse palerma.
Deu um beijo na minha cabeça.
- Tudo bem, eu entendo.
- Você vai ficar bem?
- Vou sim. Uma hora a gente sempre fica. E você? Vai ficar.
- Uma hora – falou levantando.
Parecia um até nunca mais.
- Pode vir aqui quando quiser, sabe disso.
- Eu sei – ele sorriu. – Mas vou tirar uma "férias".
Levantei e caminhei até ele.
- Eu te amo, Sofia.
A confissão que eu já sabia e que era tão óbvia me fez abraçar Daniel de uma forma tão apertada que não imaginei que ainda podia fazer aquela força toda estando tão debilitada.
Ele se soltou do meu abraço e sorriu genuinamente para mim, também chorava.
Implorei com os olhos para ele não ir, mas ele deu a volta e desceu as escadas.
***
Quanta tristeza um coração é capaz de suportar? Pensei sentada no sofá da janela enquanto olhava lá pra fora. Parecia que a tristeza não ia mais deixar meu corpo. Deveria existir um antibiótico para tristeza.
Não conseguia mais tomar meu chá com limão. Não queria ver morangos, não queria comida que não tivesse carne. O que eu não queria estava bem claro para mim. Mas afinal, o que eu de fato queria? Isso era um mistério.
Reage. Meu cérebro gritava, mas meu corpo não queria ouvir.
Demorei alguns dias até parar de me sentir tão mal. Ensaiei diversas vezes sair de casa para trabalhar, mas desistia no último momento. Mas então, minhas comidas acabaram. Já estava enjoada de pedir comida, e com saudade de cozinhar. Não tinha mais alternativa.
Me vesti toda e, como sempre, a hora de calçar os sapatos era decisiva. Era sempre ali que eu desistia de tudo. Mas dessa vez me forcei ao máximo e enfiei o pé depressa no sapato para não ter perigo de fugir pra baixo do edredom.
- Supercalifragilisticexpialidocious¹! – exclamei quando parei na frente da minha porta antes de sair de casa.
O Corredor deserto. Um silêncio. Só o barulho das minhas chaves.
Sai apressada escada a baixo. Cheguei lá fora e pensei finalmente.
Eu precisava parar com essa bobeira de querer ficar em casa o dia todo e sofrendo pelos cantos. Coisa ridícula. Finalmente estava fazendo a coisa certa. Fui fazer compras e por conseqüência, voltei a fazer minha própria comida também. Talvez mais tarde a vontade de fazer qualquer coisa tivesse uma queda significativa na minha corrente sanguínea, por isso precisava aproveitar quando alguma faísca de vontade e ânimo aparecia.
A tristeza crônica parecia estar se diluindo com o passar dos dias, mas eu adquiri novas manias.
Quando ficava em casa, podia escutar Cristofer saindo. Algumas vezes esperava ele aparecer lá embaixo para poder vê-lo pela janela com seus óculos e cachecol no pescoço.
Tinha vários conflitos e discussões internas a esse respeito, tudo o que eu mais queria era ficar perto dele, mas estava com medo e com muita raiva. Talvez ele mesmo não quisesse mais saber da minha presença depois que eu fui grosseira com ele no hospital.
Fiquei espantada por ele não ter mudado de casa. Bem o tipo dele tentar mudar de planeta para não ser mais obrigado a me ver, mas não. Ele ainda era meu vizinho.
Havia só uma verdade nisso tudo, eu ficaria arrasada se não pudesse mais vê-lo. Mas ainda assim decidi que não iria procurá-lo. O orgulho é uma doença que também precisa de um antibiótico.
Então, evitava de todas as maneiras encontrar com ele. Madalena me ligou avisando que ele passou pelo café antes de trabalhar, pediu uma Madonna e foi embora. Fiquei aliviada por não estar lá nesse dia. Mas não conseguia tirar da cabeça o fato dele não estar evitando o café. Será que tinha ido me procurar? Queria me ver?
Eu podia escutar o som da sua voz algumas vezes quando ele falava ao telefone, o som do chuveiro ligando, seus passos... Prédio péssimo que eu escolhi para morar. Por várias noites dormi toda torta tocando a parede como se assim pudesse tocá-lo também.
Queria saber o que passava na cabeça dele, como era sua vida agora, se ele sentia minha falta. Primeiro mantive esses pensamentos egoístas, depois comecei a pensar em como ele devia estar se sentindo agora que descobriu que o coração da ex-noiva estava ali, tão perto, em alguém com quem ele estava mantendo um relacionamento. Me senti péssima.
Fui egoísta só pensando em mim, não levando em consideração tudo o que se passou na cabeça dele. Ainda que eu não tivesse culpa, não devia ser fácil para ele saber de uma notícia dessas sem se desesperar. Como eu poderia imaginar que ele era tão amargo por ter perdido alguém que amava? Agora tudo fazia sentido, seu comportamento hostil, sua personalidade bipolar. Mas a verdade é que nada disso justificava a forma grosseira com que ele me tratou.
Eu já havia voltado a trabalhar normalmente quando esse assunto passou a martelar minha cabeça sem parar, queria pedir desculpa para ele por tudo, mas não conseguia. Mesmo porque eu ainda não tinha perdoado. Lembrava dele me olhando como se fosse um monstro e sentia raiva. Ele tinha sido injusto demais e eu estava sofrendo de orgulho crônico.
Ensaiei ir até a casa dele algumas vezes, mas desisti. É um processo incrivelmente difícil perdoar pessoas. Você perdoar, não significa que a culpa dela vai sumir. É um exercício pesado. Perdoar em alguns casos, pode parecer auto-traição.
Orgulho e saudade mantinham uma batalha constante no meu peito.
Mesmo assim, a vontade de ver ele entrando pela porta do café era constante. No fundo, eu virei uma contradição ambulante.
Havia uma parede mais grossa que a do apartamento entre nós e saber que ele estava tão perto de mim sem poder vê-lo ou tocá-lo estava acabando comigo.
O trabalho na patisserie era a única coisa que fazia meu cérebro se desligar um pouco dessa parte da minha vida. Voltei a ser a primeira a chegar e a ultima a sair. Quando eu estava em casa, o fantasma de alguém que ainda estava vivo me assombrava, então eu preferia não estar por lá.
¹ Supercalifragilisticexpialidocious é uma expressão utilizada por Mary Poppins no filme de mesmo nome da Walt Disney. A palavra, teoricamente, serve para definir algo indescritível.
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