Round 38
— Mãe! Voltei — Entrei em casa. Nada havia mudado. O portão de ferro precisava de uma pintura e os meus irmãos faziam a farra rotineira. Pulavam pelos sofás, corriam pela casa — e rua —, ou comiam bisnagas assistindo desenho. — Eu ganhei mãe! — Invadi o território de dona Marielle, a cozinha. Todo filho favelado sabe o quão sagrado é a cozinha de uma diarista.
Assim que cheguei no intermédio entre o corredor e a cozinha, separada por um simples murinho que servia de bancada, tive de ter reflexos. Uma vassoura voou em minhas mãos. — Matheus se quer conversar me ajuda a varrer a casa.
Esse era o jeito de Marielle dizer: bem-vindo de volta, estava com saudades. Expulsei meus irmãos do café matinal. O tempo avançou, mas eu ainda era arcaico. Criança ficava melhor brincando na rua do que presa em casa. Pela televisão colocamos uma música — pagode — e começamos a erguer o pó.
— E ele ficou lá no A.A? — Ela ajeitou o turbante, que prendia o Afuá que estava o cabelo pela manhã.
— Ele só precisava de alguém mãe. Vou esperar ele se resolver e vamos trilhar minha carreira profissional — Marielle não era de expressar tantas emoções. Uma mulher que foi enrijecida pela vida. Só outras Marielles compreendiam a sensação. Mas por um momento ínfimo, a vi abrindo um esmero sorriso.
— Finalmente parou de abraçar tudo. — Os olhos dela brilhavam de orgulho. — Há, tenho algo para te mostrar também.
Ela apoiou a vassoura na parede, e foi até o quarto. Dava para ouvir o ranger do armário e o remexer nas tralhas. Quando retornou, me deu um envelope. O peguei preso no suspense. Ela não dizia nada, apenas me motivava a ser curioso. Logo fui.
Ao retirar os papéis lágrimas desceram sem controle. Os lábios tremiam tentando controlar os murmúrios. Quanto mais nos encarávamos, menor era o controle sobre os sentimentos. Abracei minha mãe — precisava.
— Você conseguiu! Agora é advogada, coroa! — O toque de mãe nunca perdia o gosto, não é?
— Preciso te agradecer. Por tudo que fez para me ajudar a terminar essa faculdade, filho. — As íris tremiam, mas a mulher ainda cadenciava as emoções. — Eu sei o quanto batalhou para me ajudar.
— Merecia mãe. Se preciso, faria tudo de novo, só para ver o sorriso orgulhoso preencher este rosto outra vez.
Ela limpou um filete de lágrima que escorria nas rugas da bochecha. Mamãe não era mais diarista, não precisava ser. Logo, era um dia para se comemorar!
— Vamos fazer um churrasco?
— Filho, eu não tenho dinheiro.
A frase me fez recordar os motivos do antigo trabalho. Nunca fui alguém a almejar luxo, mas ver um irmão passar fome era tão doloroso quanto levar um tiro. — Neste momento me recordei — Existia no bolso algo que poderia dar luz ao momento de comemoração.
O lobo guará.
Levei a mão ao bolso, mas fiquei tenso. Evitei retirar a nota, enquanto ponderava sobre a atitude. Havia lutado contra pessoas fortes. Para somente desfrutar de um X-tudo Oriental Kung Fu.
Baiano compreenderia a ação.
Além do mais, a quem estou enganando? Era pelo X-tudo, mas tornou-se algo maior. — Vamos na mercearia mãe. — A puxei pelo braço, arrastando a velha até o mercadinho local. Lá, pegamos um cesto e começamos a fazer compras. Carne, refrigerante — umas latinhas de cerveja, pois a velha não era de ferro.
Compramos tudo que podíamos. E mais um pouco. O total da compra? Metade do valor. Não me daria oportunidade de comer o X-tudo, mas não fazia mal. Existiam coisas maiores do que o desejo besta.
Saímos do mercado. Só era necessário passar a via principal da favela. O sol estava de rachar, e o clima mantinha-se como de costume. Não o geográfico. Já pisou numa favela? — devia me recordar que nem todos fizeram isto. — A favela tem um ritmo agitado. Parece que toda noite é momento para relaxar, e todo dia trabalho, alegria e fofoca. As pessoas costumam sorrir por todos os cantos — menos em dia de operação policial. — Logo, caso cace a felicidade na vida, more numa favela.
— Matheus! — Alguém me gritou. Uma voz tão poderosa que chamou atenção de todas as pessoas presentes — até os fofoqueiros que saltaram das janelas. Quando virei o rosto para o distante da rua o avistei. Carregava nas costas um saco preto e largo, como se fosse santa Klaus. Sem camisa, expondo a perfeição corporal. E armado de luvas pretas.
— Diogo...
Encaramo-nos assim que ele chegou próximo de mim. Firmes, como se alguém tirasse fotos da cena. Ele jogou para o lado o saco preto. Deixou a dispor nos pés do público que assistia nossa conversa.
— Ali está todo o dinheiro que o organizador da competição roubou de outros boxeadores. — Ele girou os ombros, estalando as articulações. — Fiquei feliz em saber que você ganhou do Henrique. Ele é um ótimo pugilista.
— Eu fiquei triste em saber da desclassificação. — Meu corpo pegava fogo, animado em vê-lo tão próximo. Sentia a tensão que se estreitava entre nós.
— Desculpe-me por decepcioná-lo, é por isso que vim aqui. — Ele fez uma leve pausa. — Vamos lutar?
O convite avulso, no meio de um público que ia para o trabalho. Sem ringue ou regras. Quem seria o imbecil de aceitar um pedido tão ridículo?
— Vamos.
Eu estava muito animado para dizer não.
— Mãe. — Continuei — Leve para casa, e se puder, traga minhas luvas.
Dona Marielle andou a passos rápidos com as sacolas pesadas. Era só o momento de aguardar o retorno — já que a casa não era nada distante. — Traficantes subiam em barraquinhas ou escadas de casas para conseguir ter uma visão melhor.
— Posso te fazer uma pergunta? Antes de começarmos?
— Faça.
— Por que eu? Digo. Você retirou a magia, só para encarar um garoto numa competição amadora.
Diogo bufou, e riu logo em sequência. Devaneava das minhas palavras como se fossem questionamentos infantis. Como se nem mesmo eu fosse capaz de entender o que questionava.
— Por que você me lembrou do motivo do meu amor pelo boxe.
— Irmão! — A caçula da família me jogou as luvas.
Sem tempo há perder, as coloquei. Nós lutaremos sem protetor bucal.
— O vencedor ganha a bolada. — Diogo apontou para a sacola. — Pronto? Vira-lata?
— Pode vir. Lobo.
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