Round 30
Os rounds costumam ter uma duração baixa de dois minutos. Para alguém que o vê de fora pode ser algo rápido, mas quem está dentro sabe. É tempo o bastante para sentir o inferno te exaurir. Tão cansativo quanto ficar na posição de prancha. Ou aguardar algum ônibus para a baixada fluminense — ou Bangu, se preferir.
Zeca tinha a mania de expandir o limite do tempo. Para ele, aguentar o triplo era o mesmo que aguentar dois minutos numa luta oficial. "Sua mente se desgasta mais rápido que o corpo, pois ela tem que lutar por ela e pelos músculos" ele me dizia. — Podia discordar do vício por bebida, mas não da a inteligência para o boxe.
Então se imagine em meu lugar, durante seis minutos — ou sete, ele perdia o tempo do round às vezes — contra Jubilado. O veterano tinha tempo e estratégia, coisa que eu precisava me ater.
— Controle la respiración, ninõ! — Me dava dicas enquanto espancava meu rosto como um saco de areia preso no corner.
Tomei ação e escapei pelas cordas. Veteranos não costumam ter brechas. Então o dei um direto forte na guarda dele. Ele não perdia o balanço dos socos — Parecia um tanque de guerra. — Tentei forçar a abertura, mas a defesa de Jubilado era densa. Os músculos do braço pareciam paredes.
Ele tomou conta dos ataques outra vez. As pancadas faziam meu braço recuar. — mas precisava fazer. — Quando ele soltou o cruzado imaginei que um soco mais rápido surtiria efeito. Destilei um jab fraco, apenas para o atordoar.
Ambos os socos se encaixaram, mas a força dele me deixou tonto. — Boa garoto! Você pode dar contragolpes fracos para retomar o ritmo, mas saiba que não pode fazer isso para sempre! — Zeca me avisou.
Estava difícil de administrar minha respiração. — Algo importante para qualquer boxeador que queira sobreviver a mais de um round. — Tomei a ação de chama-lo ao centro do ringue, para iniciarmos um embate mais próximo. Desviar do Jubilado era impossível. Então tinha que achar o momento perfeito para um contragolpe severo.
Como esse homem, cego de um olho, pode ser tão forte?
Ele forçava socos na minha barriga. Os cruzados faziam meu tronco balançar. Enquanto eu surrava a guarda alta. Fazia os braços darem brechas para encaixar uma pancada. Ali estava. Em tempos áureos, o cruzado de direita aberto devia ser rápido como uma bala. Mas atualmente, eu era capaz de enxergá-lo.
Preparei um gancho longo, para forçar a guarda de baixo para cima. Encaixei o soco. O gancho ergueu o queixo dele. Havia despejado ali minha força, e isso o havia desnorteado. Mas ele não interrompeu o cruzado. Pelo contrário. Desviou o ataque para minha área exposta. Acertou minha costela, fazendo o barulho da carne sendo batida a seco.
Meu abdômen doía, mais que o normal. Zeca parou o round para me descansar por alguns segundos. Ele e o veterano conversavam como se tivesse algo de errado comigo. — De fato, havia.
— Ninõ, o que está acontecendo?
O que estava acontecendo?
— Nada, eu só preciso... — Meu corpo não permitiu concluir a frase. Era como se estivesse entrando em torpor. A visão na minha frente subiu rápida enquanto se turvava. — Por que tudo ficou tão embaçado? Por fim, preto.
Tirei um repouso, estava cansado demais.
Despertei. Os olhos pareciam pesar toneladas. Piscava em sequência para tentar erguê-los. A clareza das luminárias e do teto me deixava irritado, mas tinha cansaço até em proferir xingamentos. Logo me dei por conta. O colchoado macio e o tubo fino que entrava no braço carregando gotículas de um líquido num saco suspenso num cabideiro de metal.
— Acordou garoto. — A voz do Zeca era amarga por conta da bebida, mas passou uma preocupação que me deixou aflito.
— Onde estamos?
— No hospital. Você sofreu um desmaio. — Ele chegou do meu lado, e puxou os lençóis com amargura nos dedos. Eu não havia visto o bêbado tão emotivo. A careta tentava prender o choro nos olhos fechados a força. Mas a boca soltava murmúrios de um lamento profundo. — Você está há quantas horas sem comer, garoto?
A pergunta me pegou em cheio. Tímido, não tive coragem de falar enquanto via as lágrimas caírem em cima do meu braço. Virei o rosto. — Hoje é um dia que há muita entrega, e isso dá uma renda extra para mandar para minha mãe... e... eu acabei me esquecendo.
Zeca limpou, na camisa, as lágrimas juntas à meleca. Ele se recompôs para poder falar com mais tranquilidade comigo. — Você está tentando lutar muitas lutas ainda garoto. — Ainda não tinha coragem de encará-lo, mesmo achando os soluços engraçados. — Eu liguei para o Na Chapa, e pedi para te desligarem nesse último momento.
— Você o quê!? — Ergui meu corpo abruptamente, desesperado com a notícia. Mas a fraqueza ainda era soberana em minha pele, não tinha capacidade de me manter sentado. Zeca me segurou, auxiliou-me a deitar outra vez.
— Olha seu estado, garoto. — Ficou quase vinte e quatro horas sem comer.
— Eu comi! — Falei alto, mas logo abaixei a entonação. Sabia que a explicação não seria o suficiente. — Comi... alguns salgadinhos.
— Sabe que não é o suficiente. Por isso tem até medo de me responder.
— Mesmo assim. Você não tinha o direito de se meter na minha vida!
— Desde que está se matando, tenho direito sim. — Soluçou. — Você tem ultrapassado a dieta e deixado de comer alguns dias durante esse campeonato inteiro? Para levar dinheiro a sua família?
Zeca me questionou. Tão pouco sabia rebater a pergunta. E isso era a confissão da minha culpa. — Sai daqui. — Evitei encará-lo, mas deixava as lágrimas caírem. — Eu não quero vê-lo mais. Sai, por favor.
— Mas garoto.
— Sai! — Gritei.
Pude sentir as mãos desprenderem os lençóis com melancolia. Ele se afastou em minha visão periférica. Ficou apenas a sensação de uma sombra viva. — Eu não podia te ver se matando e apoiar, garoto. — Soluçou. — Assim que estiver recuperado, trate de comer, e treine com o Jubilado. Se for o desejo não me ver, vou respeitar seu espaço.
Ele saiu. Deixou-me aos choros solitários no hospital. Não sabia o que havia doído mais. A verdade, ou tê-lo machucado.
Havia uma luta marcada daqui a cinco dias. E já estava derrotado.
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