Exoesqueleto
Na hora do recreio, sou abordado pelo garoto ruivo.
–Ei! Nunca te vi antes – diz ele, a título de cumprimento.
–Engraçado, também nunca te vi antes – respondo, meio desaforado.
Ele me lança um olhar entre divertido e especulativo.
–Eu quis dizer que você não fez o curso com a gente, até agora – ele reformula o comentário.
–Eu estava sendo educado em casa – revelo, com evidente má vontade.
O garoto balança a cabeça, como se tivesse entendido tudo.
–O Estado obrigou a sua matrícula.
–Isso.
–Bem, até onde eu sei... Ninguém discorda do Estado. Se os seus pais discordam, em breve você vai ficar órfão.
–Hã? – Eu o encaro, chocado. – Qual é a sua? Seu merda!
–Desculpa, cara – ele tenta me apaziguar, sem sucesso.
Eu só quero que ele suma da minha frente. Mas ele não some. Nós nos encaramos num silêncio desconfortável.
–Meu nome é César, sou do Nível Seis – ele estende a mão, que eu faço questão de ignorar. Ele suspira, baixa o braço e comenta: – Relaxa, cara! Foi só um alerta. Você e os seus pais devem ser cuidadosos...
–Tá, entendido. Só não fala mais dos meus pais – aviso, antes de me apresentar: – Eu sou Otávio. Moro no Nível Cinco.
–Prazer, Otávio. – Menos tenso, o ruivo dá um sorrisinho. De repente, ele olha para cima. – O sol está tão escuro, hoje.
–Alguém já deve ter pedido para clareá–lo – resmungo.
–Quê? – ele baixa os olhos do sol para mim. Nesse momento, o sol fica mais brilhante.
–Viu, só? – Aponto para o céu.
–E como você sabe disso? – O menino esfregou as palmas das mãos na perna. – Como é possível?
Acho engraçado o espanto dele.
–Como se lida com o ar condicionado, ora... ou a televisão. – Tento explicar sem parecer metido. – Os raios solares são a mesma coisa. Existem satélites–lâminas posicionados na estratosfera. Eles servem para coletar energia limpa; ao mesmo tempo filtram os raios nocivos e controlam a intensidade da luz visível. Isso é certamente um problema para os astrônomos.
–Como assim?
–Os astrônomos medem coisas além dos raios eletromagnéticos, tais como raios gama, ondas de rádio, etc. Provavelmente, dependem de um sistema de redirecionamento de imagens acoplado aos satélites.
–Ah...
César me encara com renovado interesse no olhar.
–Nossa... Como você sabe de tanta coisa?
Dou de ombros. Talvez não fosse uma boa ideia que as pessoas percebessem as coisas que eu sou capaz de fazer.
–Você vivia mesmo trancado num apartamento? – Ele insiste. – Não tinha internet?
–Meus pais só permitiam que eu visse filmes antigos – minto, sem qualquer remorso.
–Sei. Seus pais são malucos e criaram um ET inteligente demais para o próprio bem.
–Como assim? Ser inteligente deveria ser uma coisa boa, não má.
O outro dá de ombros.
– Não para se viver em sociedade. Por que das três situações, acontece uma: – ele começa a enumerar nos dedos – letra a, você vira um lobo solitário, repudiado pela alcateia; letra b, você vira um líder perigoso, que os outros vão querer eliminar; ou letra c, você leva na cabeça, porque vê coisas que as pessoas menos inteligentes, ou menos atentas, não veem. O que os olhos não veem, o coração não sente.
Eu cruzo os braços, fazendo minha melhor cara de tédio.
–Isso quer dizer que...?
–Dããã – o garoto arregala os olhos. – Que ser inteligente faz você sofrer mais do que o necessário.
Fico sem palavras, diante dessa lógica ridícula, embora desconcertante.
–Em poucas palavras, – ele acrescenta, desnecessariamente – você está despreparado para a vida.
Deixo que ele pense o que quiser. Não me interessa.
–––
Depois do recreio, somos enfileirados diante do gabinete médico para a inserção dos tais implantes cerebrais. Estou nervoso, mas sinto que não tenho muita escolha.
Acabei de falar com o meu pai. Depois de uma áspera discussão com mamãe, por videoconferência, ele finalmente aceitou que eu me submetesse ao procedimento simplificado. O argumento de mamãe, de que o Estado poderia revogar a guarda deles sobre mim, foi decisivo para que ele se convencesse. Parecendo derrotado e triste, ele me disse para comprar o exoesqueleto. A transferência dos créditos para o meu cartão foi feita em seguida.
E cá estou eu, esperando a minha vez de ser "chipado" como um cachorro.
A enfermeira olha o cartão do garoto da frente, o pequeno retângulo colorido ostenta o valor monetário que seus pais podem pagar, em termos de créditos virtuais. O sorriso dela se amplia – o que significa que o valor é alto – e ela trata o garoto como se fosse o próprio filho: oferece suco, biscoitos, e o encaminha para o gabinete do médico. Então, ela chama o próximo da fila, que sou eu. Sua voz é neutra. Ela espia o meu cartão e seu sorriso se apaga. Por um instante, eu fico atordoado em descobrir que a simpatia dela varia conforme o poder aquisitivo expresso nos cartões de nossos pais.
Bem, por mais belo que seja o sorriso dela... Eu não faço questão de ter um chip na minha cabeça.
–Vejo que seus pais só podem liberar o pacote básico – ela fala o óbvio... Epa! O que é um pacote básico, afinal de contas? Como se estivesse "ouvindo" os meus pensamentos, ela informa:
–Linha de celular "pai de santo" – ela revira os olhos, de costas para as câmeras – GPS e rádio.
E não tá bom? Eu vou ter tudo isso dentro da minha cabeça? Como será que funciona esse lance de exoesqueleto?
–Você quer programar os aplicativos básicos? – ela me pergunta, indiferente.
Lembro que papai disse para não permitir qualquer tipo de programação, ou formatação. Ele falou algo sobre o perigo de programarem aplicativos ocultos...
–Eu posso simplesmente declinar?
Ela dá de ombros.
–É um bônus do seu pacote – alerta, como quem diz que sou eu que vou sair perdendo.
–Tipo promoção? – Eu me faço de idiota.
Ela bufa.
–Algo assim – responde, irritada. – Vê se escolhe logo, garoto. Não tenho a tarde toda.
Eu balanço a cabeça em concordância, e opto pelo exoesqueleto sem a formatação promocional oferecida pela "gentil" enfermeira. O médico ao lado dela estranha, mas não faz comentários. Como não vejo nenhum outro garoto pedir um igual ao meu, estou nervoso diante da possibilidade do que vai me acontecer... Será que dói?
Arregalo os olhos, quando ele tira a armação de sua embalagem original. O médico sorri, reparando no meu estado de desespero silencioso, e adota um tom tranquilizador: – Não dói nada, campeão. No começo, você vai se sentir um pouco desconfortável. Mas logo se acostuma.
–Certo – observo enquanto ele rodeia a minha cabeça com uma estrutura que mais parece um emaranhado de arames.
Ele posiciona o tal "arame", seus olhos disparando de um lado a outro, como se estivesse me analisando.
–Isso, quietinho... – Ele me olha nos olhos brevemente, com um sorriso frio. – Não se mexa... Em hipótese alguma!
Eu engulo em seco e esqueço até de respirar. Os arames começam a se desdobrar sozinhos, dando a volta na minha cabeça, como um capacete que vai se expandindo e me envolvendo; ele desce, como se estivesse sendo atraído pela minha pele e, então... cola! Eu sinto a pressão sobre a minha testa, ao redor das orelhas, e sobre os cabelos. Sinto uma breve queimação que me deixa em pânico.
–Pronto. Pronto! – o médico diz, como quem fala com uma criança de cinco anos. – Já acabou, campeão. Agora pode ir para sua sala de aula.
Eu me levanto, meio desorientado com o bip baixo e intermitente que ouço perto do meu ouvido. Tenho vontade de correr para o banheiro e ver como ficou aquela coisa na minha cabeça. Quando entro na sala percebo duas coisas: a primeira, é que sou o único com exoesqueleto; a segunda, é que todos me encaram, apontam o dedo, e riem da minha cara.
A garota de olhos bonitos que senta na fileira ao lado da minha abre um sorriso maldoso e diz:
–Olha só o cabeção de lata!
–Parece o Robocop! –comenta um garoto de óculos que, eu fui saber mais tarde, era fissurado em filmes pré–históricos.
Já é demais! Fujo da sala e corro para o banheiro. Preciso ver a minha imagem refletida no espelho. O que eu vejo me faz sentir profundamente humilhado.
–––
Depois do implante, fomos reagrupados na sala de aula. Eu sou o último a chegar, porque perdi um tempo gritando diante do espelho do banheiro. A professora foi me buscar, furiosa. Agora estamos sendo conduzidos em duas filas organizadas até a sala do consultor religioso.
–Cara, você ficou horroroso – meu mais novo e único amigo César me disse o óbvio, olhando com desgosto para a minha cabeça – se prepara para não ser o cara mais popular das atividades sociais da turma.
Dou de ombros. Não faço ideia do que sejam as atividades sociais da turma, por isso, não posso lamentar por algo que não conheço. Talvez eu lamente no futuro... Mas, no momento, estou muito puto com os meus pais, com o Estado e com a vida para me preocupar com isso.
César me informa que o consultor vai nos apontar as opções religiosas, baseando–se em nosso perfil, procedência e família. Ele ainda vai nos orientar quanto aos acessos que teremos direito, na internet, dependendo da seita para a qual ingressamos. Geralmente, a escolha da seita é determinada pelos pais. Mas alguns pais deixam a cargo do conselheiro escolar.
As seitas são sete, assim como sete são os níveis. De acordo com meu pai, desde a Idade Média até a Era Contemporânea (que não é mais contemporânea, se considerarmos o significado da palavra "contemporânea"), as seitas ficaram conhecidas como igrejas, que foram grandes organizações. Elas comandavam diversas iniciativas, em diferentes ambientes, inclusive o político. Na Idade Caótica, durante a construção dos níveis, algumas religiões foram abolidas definitivamente, e, consideradas proibidas. Ou seja, não poderiam ser cultuadas, sob pena de seus adeptos serem enviados aos presídios, em solo.
As religiões que permaneceram tinham representantes nos governos de todos os países. Foram mantidas, receberam verbas para ampliar seu grau de acesso, e passaram a ditar o perfil de trabalhador, o tipo de produto cultural oferecido às massas, e até as ideologias que deveriam prevalecer. Enfim, passaram a ditar as cartas da política e da verba pública.
Nossa, eu tenho que escolher uma religião, entre as oferecidas pelo Estado? Corrigindo, eu tenho que me submeter a uma delas...? Para alguém educado na tranquilidade de seu lar, era muita coisa para absorver, num único dia de aula. Eu quero voltar correndo pra casa!
–––
Coisas curiosas e chocantes aconteceram, naquele meu primeiro dia na escola. Um turbocóptero explodiu em frente ao terraço norte, e ninguém parece ter achado o fato extraordinário. Depois, quando cheguei em casa e relatei os fatos do dia, meu pai decidiu que estava na hora de eu conhecer os fatos da vida.
Ele já havia me explicado os fatos da vida... Então, o que mais haveria para entender? Seja o que for, devia ser algo muito... Punk!
–––
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