Para um garoto de onze anos, a agressividade dos colegas pode se converter numa grande humilhação... Num assassinato social para a vida inteira. No final das contas, o exoesqueleto não me ajudou a fazer amizades. Ao contrário... Os outros já me achavam bocó, apenas pelo fato de ter sido educado em casa; isso, aliado ao fato de que eu sabia de coisas que ninguém mais sabia... Fez com que me apelidassem de "Cultura–Inútil".

O que eles não sabem é que tenho um laboratório em casa. Quer dizer, meu pai tem. É de onde ele acessa a internet oculta, denominada de ambiente virtual clandestino – avc. Trata–se de um ato ilegal, de acordo com controladores e rastreadores do Governo. Eles caçam aqueles que fazem isso. Meus pais acreditam que eu não devo me contaminar com os valores da escola estatal, por isso, permitem que eu me atualize por meio da rede oculta.

–Cuidado, filho – meu pai alertou, na ocasião. – Se detectarem a sua navegação, os hackers do governo irão rastreá–lo. E o governo considera a navegação oculta um crime grave. Podem te tirar de nós para terminar de ser criado pelas mães solidárias.

Mães solidárias são funcionárias do Estado que servem para educar filhos subvertidos por pais considerados irresponsáveis, ou sem condições morais de cuidar deles. Papai estava tão preocupado com isso, que me ensinou todas as manhas de como navegar sem ser detectado pelos hackers. Na verdade, eu acabei me tornando um hacker, no sentido antigo da palavra (quando os hackers eram livres e subvertiam o sistema). Hoje, os hackers fazem parte do grande esquema das coisas e, consequentemente, fazem parte do Estado. De acordo com o meu pai, o nome certo para pessoas que manipulam a rede para seus próprios interesses é "malicioso".

Bem, então, acho que sou um malicioso desde pequeno. A pena para isso é, dependendo da gravidade do ato, de cinco a dez anos de internação com direito à checagem e programação mental, implantação de chip redutor e até, segundo dizem, lobotomia. Ser malicioso alimentava o meu "gosto" pelo proibido. Sou um cara curioso por natureza, o que não é algo bem visto pela maioria. Gosto de observar as pessoas; tentar adivinhar o que se passa em suas mentes; quais músicas ouvem naqueles fones; quais livros gostam de ler na tela do seu hiper ipad; que tipo de mensagens elas trocam em seus iapphones, etc. Descobri já nos primeiros dias de aula que minha espontânea curiosidade deveria ser omitida. É perigoso manifestá–la. A não ser que você seja um sortudo morador do Nível Sete.

Meu pai incentiva a minha curiosidade e procura alimentá–la sempre que possível. A única coisa que meu pai me restringe é o acesso aos programas da Vivirlavida (VLV). Ele diz que é como o "canto da sereia". As pessoas são seduzidas a fim de adotarem um estilo de vida que encobre os problemas sociais, deixando os seguidores, leitores, e telespectadores entretidos por uma vida fútil e vazia.

Todo o comércio e a indústria se adaptaram aos modos de vida estabelecidos dentro dos níveis. A maioria das pequenas e grandes empresas, das distribuidoras e das pequenas e grandes lojas, foi se aglutinando a fim de garantir as vendas. Descobriram que o truste era a melhor forma de assegurar o lucro e o capital. "Uma mão lava a outra" é um sistema inventado pelos políticos que passou a funcionar muito bem para as corporações. Meu pai chamava de "coerção amigável".

Atualmente, existem quatro corporações importantes: a SafetyAuth Corp (SAC); a Vivirlavida Ent. (VLV) ; a Precmed (PrM); e a Bперёд Tex (BTx). Cada qual focada em atender e gerenciar determinada "área" da vida das pessoas.

A SafetyAuth Corp cuida da movimentação financeira; da segurança pública e privada; do armamento das divisões táticas militares e paramilitares; e controla as entidades que lidam com o andamento da Ordem Pública. A Vivirlavida Ent. detém todos os canais de televisão, programas de internet, editoras, produtoras de shows, espetáculos e exposições artísticas. Nada pode ser apresentado ao público sem passar pela aprovação dentro da hierarquia da Vivirlavida Ent. E para isso, os artistas precisam ter seus contatos, ou ficam à margem da cultura de massa. A Precmed controla o sistema de atendimento à saúde do cidadão; os medicamentos, remédios, e substâncias químicas utilizados em tratamentos de saúde; permite, ou não, a terapia, a consulta, e/ou o tratamento das moléstias, de acordo com o hall de serviços oferecidos aos sete níveis; controla o abastecimento de drogas, das mais fortes às mais leves. A Bперёд Tex fornece tecnologia para tudo o que é desenvolvido nas demais corporações. De celulares à aparelhos de tomografia computadorizada. De Smart uzzis e revolveres lasers, bem como televisores inteligentes.

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Meu pai é analista financeiro do mercado de cotação de valores, algo similar à bolsa de valores de antigamente, ou seja, antes da construção dos níveis. Eu não sei como devia se parecer uma bolsa de valores... Só sei que ele analisa as idas e vindas do dinheiro das corporações.

Ele diz que não é autônomo. Aliás, ninguém pode ser autônomo, em nenhum dos sete níveis. Quando você ingressa no mercado de trabalho, deve se apresentar a uma das Quatro Grandes, como são chamadas as corporações. Depois de passar por uma pré–seleção, o perfil organizacional do candidato começa a ser construído. Não é o candidato que o constrói, mas a Grande Corporação para a qual ele se apresenta. E isso depende da família de origem, da área e do nível em que vive, e das qualificações que apresenta. O perfil vai ditar as redes sociais que pode ter acesso e os espaços culturais em que pode interagir, etc.

Papai trabalha para a Safety. Por meio dela, obtém senha e acesso à interface virtual do mercado. O Dinheiro Virtual, ou simplesmente DV, aparece com diferentes "caras" – bitcons, astrons, contas, não importa – DV é a moeda oficial de todos os níveis. De sua circulação são extraídas as participações de lucro das Quatro Grandes. A cotação de valores é isto: negociar com as expectativas, com a manipulação do consumo, e principalmente, com as tendências psicológicas coletivas. E embora o dinheiro não seja físico, é muito real. Mas a cotação é negociada por meio da antecipação do dinheiro, não do seu montante real.

Minha mãe é uma executiva da Olliecon – subsidiária da Safety. O que faz a Olliecon? Eu não tenho ideia. O que faz a minha mãe lá dentro? Eu também não tenho ideia. Quanto mais alta é a posição dentro da hierarquia, mais as regras do jogo se tornam duras. O sigilo é tudo no negócio.

Mas mesmo que o cidadão não esteja no topo e sim, na base da hierarquia, a vida de todo mundo gira em torno das corporações. Tudo é controlado por elas. Em todos os níveis. Quando terminar a escola, eu terei que me apresentar a uma delas, também. A julgar pelo histórico de trabalho de nossa família, acho que será a Safety.

O nível sete é o topo da escada em termos de bem estar e qualidade de vida; é onde está concentrado o dinheiro e onde, ironicamente, ocorre a melhor distribuição de renda; é onde o poder aquisitivo é maior. O que isso significa? Eu não faço ideia. Eu só sei que nosso professor fica um pouco nervoso quando tenta nos explicar como os níveis funcionam. Ele olha furtivamente para a câmera posicionada sobre sua cabeça a cada frase pronunciada.

Mas eu entendi que é por concentrar o poder e a renda, que as sedes das Quatro Grandes estão localizadas no Nível Sete.

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Na segunda semana de aula, a rotina escolar transcorre sem alterações, ou perturbações imprevistas. Eu desembarco do metrô vertical para o paraíso do sétimo nível, onde o céu é claro e o ambiente limpo, fresco, acolhedor... Ainda não me acostumei com o contraste de sair de um ambiente apertado e marcado por trincheiras, para aquele espaço amplo, planejado e arborizado. (As trincheiras a que me refiro são barreiras de transposição, que servem para garantir que ninguém escape de um nível para o outro, usando os ductos de ligação dos trens, os fossos, ou os tubos dos metrôs verticais.)

Aqui, no sétimo, enquanto caminho até a escola, percebo o quanto é agradável caminhar... No Nível Cinco é difícil percorrer o trajeto entre a nossa habitação e a plataforma de transporte, em meio ao aglomerado de pessoas, que vem e vão já acostumadas ao aperto e à algazarra, sem se preocuparem se trombam umas nas outras. Algumas simplesmente enfiam o cotovelo na cara das outras, especialmente daquelas que, distraídas, não olham por onde andam por causa dos dispositivos que as conectam às redes sociais. Acredito que ninguém está livre de hematomas, exceto no Nível Sete. Com certeza, eu terei várias manchas roxas enquanto estudar na escola. E os moradores do sétimo reconhecem o pessoal dos outros níveis pela quantidade de hematomas.

Uma zombaria a mais outra a menos... Já me acostumei com as reações que o meu exoesqueleto provoca entre os coleguinhas. Os hematomas não farão a menor diferença na equação. Chamo–os de coleguinhas não porque sejam pequeninos, mas porque eu queria esmagá–los como se fossem... Sabe? Tipo: formigas. Eu nunca vi uma formiga ao vivo e a cores, mas deduzo que a sensação de pisar em cima delas deve ser mais triste do que se eu pudesse pisar nos meus... Coleguinhas.

É... A escola é cruel.

Preferia continuar estudando em casa.

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Ao final do período, durante meu retorno para casa, noto pela milésima vez o quanto as pessoas parecem apáticas. Estranhamente apáticas. Elas ficam concentradas em seus dispositivos, conectados na VLV, que funcionam também como intercomunicadores. Assim, a corporação tem controle sobre tudo o que é dito e acessado nas redes sociais. Olho ao redor e vejo que alguns dos dispositivos estão transmitindo vídeos de entretenimento padrão e que os passageiros sorriem feito bobos. Para mim, parecem robôs desligados do mundo real a sua volta. O que, segundo meu pai, é muito conveniente para a Cúpula, ou seja, o Governo.

As pessoas andam ao ritmo de seus fones de ouvido: cabeças baixas, nenhum contato visual; braços protegendo as mochilas e os dispositivos de possíveis ladrões. Se alguém ousa abordar alguém para pedir uma informação, acabava falando com as paredes, porque ninguém dá a mínima. Ninguém para a fim de ajudar. Aliás, o contato visual é proibido. Claro que não há lei contra fazer contato visual com as pessoas. Mas... Sabe aquele código implícito de comportamento que é adotado ou não, dependendo de época e do lugar? Pois é, puxar conversa e contato visual são dois itens que não se deve fazer. Os mandamentos são estes:

1) Usarás kkk ao final de todas as tuas respostas e comentários, a fim de parecer simpático ao teu interlocutor;

2) Não usarás caixa alta em teus comentários;

3) Não farás contato visual com "pessoas físicas";

4) Puxarás o saco das pessoas com mais visualizações na rede;

5) Nunca darás uma opinião sincera sob pena de ser linchado em praça virtual;

6) Não irás puxar conversa para parecer simpático, pois simpatia é coisa de bocó (só os kkk são permitidos como manifestação de simpatia).

Sei que estou esquecendo os outros quatro mandamentos, mas... Enfim...

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