O natal da pequena Danny
Nossa família sempre se reunia um mês antes do Natal para combinar os preparativos da ceia. As mais entusiasmadas eram minhas primas Alina e Simona. Danielle também gostava de ver nossa família reunida, mas naquele ano ela estava muito fraquinha, por causa do câncer, e talvez não viesse para casa do vô Nicolae e da vó Raluca, já que estava para ser internada.
Fui visitá-la em sua casa e vi o quanto minha prima preferida estava debilitada. Eu não podia acreditar que ela, antes tão linda com seu cabelo louro, liso e sedoso, igual ao de uma princesa, agora estava careca e com uma máscara cirúrgica. E sentada numa cadeira de rodas. Nos abraçamos e eu disse que a amava muito, entregando-lhe um cartão de natal com o desenho de uma bailarina usando um chapéu de Papai Noel.
“Para a prima que eu mais amo, desejo um feliz natal, um próspero ano novo e muita saúde. Te adoro. São os votos de sua prima Stefany”.
Danielle chorou ao ler a mensagem, e estendendo os braços para que eu a abraçasse, tivemos um momento de carinho entre primas.
— Te iubesc¹ — ela disse.
— Te iubesc — respondi.
Somos netas de romenos e fluentes nessa língua. O vô Nicolae ensinou seus seis filhos a falarem sua língua materna, e acabamos incorporando no nosso dia a dia.
Nossa religião é a cristã ortodoxa. Na Romênia, o natal é celebrado dia 25 de dezembro, mas por frequentarmos aqui no Brasil uma igreja ortodoxa de jurisdição russa, celebramos o nascimento do Menino Jesus no dia 7 de janeiro. O que é legal, porque podemos festejar nas duas datas.
Dizem que a diferença das datas tem tudo a ver com as discussões entre os velhos calendaristas e os adeptos do novo calendário, uma coisa que até hoje não entendo bem.
Sai da casa da Danny com lágrimas nos olhos. Porém, ao ver as guirlandas pregadas nas portas das casas, os enfeites nos pinheiros dos jardins e um céu estrelado, meu coração começou a sentir um calorzinho que só podia se chamar esperança.
As pessoas se transformam nessa época mágica. Elas querem abraçar, conversar, fazer as pazes e construir algo novo. Por mais que a Coca Cola tenha transformado o Natal numa época de consumismo, eu preferia acreditar que aqueles eram dias para sorrir e sentir esperança, e esquecer o passado, e acreditar que era tempo de perdão.
Como é bom quando a gente perdoa. Como é bom poder viver o natal de uma forma autêntica. Embora eu ainda só tivesse dez anos naquele tempo, sabia que muita coisa estava errada. Não conseguia entender como as pessoas mudavam da noite para o dia, de repente desejando algo inexistente dentro delas.
As lojas estavam cheias de pessoas comprando presentes para crianças, celulares, vídeo games. Tudo muito ocidental. Vez ou outra eu passava por um homem gordinho usando uma roupa de Papai Noel tilintando um sininho, dizendo Ho Ho Ho, Feliz Natal. Muito fofinho.
Essa era a parte bonitinha das festas de fim de ano.
À parte triste, poucos dão atenção. Preferem fechar os olhos para ela, porque fingir que não é com você poupa sua consciência de um exame moral.
Enquanto alguns se banqueteiam, cortam panettones e comem peru, famílias se contorcem debaixo de viadutos e marquises, sem ter o que comer e com o que se proteger do rigor do clima, que numa cidade como São Paulo, muda a todo momento.
Sempre quis fazer algo para melhorar o mundo, mas o máximo que até hoje consegui em termos de gesto altruísta foi recolher latas de refrigerante que as pessoas jogavam nas calçadas e atirá-las no lixo. Danielle também não suportava injustiças e chorava quando via uma criança pedindo dinheiro para comprar comida.
— Eu moro numa casa grande. Tenho um armário cheio de roupas e botas e tudo o que uma criança pode querer. Mas tem crianças como eu que não tem. Por que, Stefany? Por que o mundo é tão injusto?
Eu não tinha a resposta.
Também queria saber, e de repente, dar uma contribuição maior.
Dois dias depois dessa visita, nossa família se reuniu na casa do vô Nicolae, o velhinho da Transilvânia de quem ninguém tinha medo.
O tio Daniel foi o último a chegar, e trouxe a Françoise e a Danny. Ainda bem que o padrasto dela não veio. Meu pai, que era o filho mais velho do vô Nicolae, correu para tirar minha prima de dentro do carro e a colocou na cadeira de rodas, levando-a para dentro.
Todos nos amávamos como família, mas o carinho que sentíamos pela Danny era especial e só aumentava, já que ela estava enfrentando uma doença grave de cabeça erguida, como uma pequena guerreira.
— Salut², Danielle — vovô e vovó a abraçaram.
Os mais jovens se acotovelaram para dar um abraço na nossa prima bailarina e dar um beijo em sua cabeça pelada, branca como porcelana. Podíamos ver que ela estava sorrindo, mesmo usando a máscara. Os meninos eram mais cuidadosos, tinham medo de machucá-la, o que era um exagero.
— Como ela está? — a vó Raluca perguntou ao tio Daniel.
— Está melhor, mas ainda não tem forças nas pernas. A quimioterapia e o tratamento à base de radiação estão arrebentando com ela.
— Não encontraram um doador ainda?
— Ainda não. Muito difícil encontrar um doador de medula cem por cento compatível.
Meus avós menearam a cabeça pensativamente.
Sabíamos que o estado de saúde da Danny era grave, que somente um transplante podia salvá-la. Há um mês ela quase faleceu no hospital. Os remédios não estavam mais fazendo efeito, e o médico a desenganou.
— Vocês têm que ser fortes. Talvez ela não passe desta noite — o doutor chamou os pais dela num canto e deu essa informação da maneira mais imparcial possível.
A tia Françoise (mesmo ela nunca tendo se casado com meu tio Daniel, eu a chamava de tia) caiu de joelhos chorando e decidiu dormir ao lado da filha e viver os últimos momentos ao lado dela.
Eu não pude dormir naquela noite. Amava minha prima como se fosse minha irmã, minha vida não teria graça se ela partisse. Chorei muito, segurando meu ícone da Santíssima Mãe de Deus contra o peito. Pedi que Deus não a levasse.
Danielle decidiu ficar. Disse que não iria embora enquanto não realizasse seu sonho de ser a maior bailarina do mundo, que nada era mais forte que sua vontade de vencer, e que todo final é feliz.
— Eu vou vencer esse câncer idiota — ela prometeu.
Por alguma razão, eu acreditei nas palavras dela e nossa amizade se fortaleceu, à ponto de eu não conseguir ficar um dia sem vê-la.
Cada dia era uma vitória, tínhamos fé que algo muito bom estava para acontecer.
E ali estava toda nossa família, reunida em volta de uma árvore de natal incompleta após um almoço bem simples. Por estarmos praticando o Jejum da Natividade, não comíamos carne e laticínios.
Os meninos e meninas se sentaram no chão e vô Nicolae perguntou para cada um o que queríamos ganhar. Não que ele fosse dar presentes. Já imaginou fazer mimos para quase vinte netos? Meu irmão Florin pediu um Xbox, um iPhone e um Kindle. Que materialista! A prima Andreea queria uma viagem para Bucareste, um notebook e um tablet. Os outros teen Răducan seguiram uma linha parecida, fazendo pedidos bem tecnológicos.
Eu odeio o Ocidente, pensei.
— E você, Stefany, o que quer?
— Quero que a Danny fique curada — pedi. — Que ela possa voltar a dançar e a sorrir, que a gente possa andar de bicicleta, andar de cavalo no haras em Ibiúna e que ela seja muito, muito, muito feliz.
Talvez pelo fato de eu estar muito sensibilizada, sem chão, me sentindo pequena demais e não poder fazer nada pela minha prima, minha voz saiu embargada. Mas segurei minha vontade de chorar.
Os olhares de todos se concentraram em mim. Consegui quebrar o clima de descontração, fazendo com que todos se sentissem feridos em seu âmago. Um a um todos acrescentaram meu pedido às sua lista de desejos. Não que eu tivesse intenção de dar um tapa na cara de alguém. Às vezes temos que falar o que não pode ficar preso na garganta.
— E você, Danielle? — meu avô perguntou.
Agora os olhos se voltavam para minha prima. Fechando os olhos, um suspiro escapou por entre seus lábios. Ela baixou a máscara cirúrgica, olhou em sua volta. Semiabriu os lábios carnudinhos.
O tio Daniel, sentado no sofá ao lado da cadeira de rodas da Danny, segurou-lhe a mão. Raramente meu tio bailarino mostrava abatimento. Seu semblante era sempre sereno, irradiava paz, a gente se sentia amparada perto dele.
A Danny era muito parecida com ele, a começar pela cor do cabelo – que ela já não tinha mais. Os dois tinham uma cumplicidade bonita, sem muita conversa, e muito amor, e uma visão prática das coisas. O que a Danny queria fazer, simplesmente fazia sem se arrepender depois.
Os segundos de silêncio que se seguiram à pergunta que vovô fez deram tônica ao suspense.
Ela olhou para cada um dos tios e primos, e para os ícones religiosos na parede ao lado da qual estava a árvore.
— Eu não tenho nada o que pedir. Só a agradecer. Por ter uma família incrível que eu amo. Um pai e uma mãe mais do que especiais. Tios, tias, primos e primas amorosos. Dois avôs e duas avós que me deixam fazer tudo. E por ter o balé. Tudo isso é o que importa pra mim, é o que eu vou levar pra sempre. Deus me deu muito mais do que eu mereço, por isso sou grata e feliz. Do meu jeito, mas sou feliz.
Lágrimas começaram a brotar dos olhos de seus ouvintes.
— O senhor perguntou o que eu quero neste natal… Eu queria que nossa família se reunisse todos os anos na noite da Natividade e distribuísse comida, roupas e cobertores para famílias que não têm onde morar. Que déssemos brinquedos às crianças, e também nosso melhor sorriso e um abraço. Que as pessoas que vivem em casas confortáveis compreendessem que, muito mais importante que a festa de aniversário, com os presentes debaixo da árvore de natal e a mesa farta nas casas, é o aniversariante.
Danielle sentiu dificuldade para continuar e tossiu, sendo prontamente segurada por tia Françoise.
— Eu queria, mais que tudo, que por pelo menos uma noite no ano, nós fossemos ao encontro dessas famílias e as fizessemos se sentirem amadas e nos tornassemos o rosto misericordioso de Jesus, que é tão rico, que pôde nascer pobre, tão grande e cheio de poder, que pôde se fazer pequeno e fraco. Esse é o presente que eu quero.
As palavras da Danny modificaram o semblante de todos. Meus avós choravam, Alina e Florin cobriam os rostos para não serem vistos de olhos vermelhos e minha garganta apertou.
— Mas Danny — tia Ecaterina retrucou com voz embargada —, você não vai pedir a cura do seu câncer?
Os lábios da minha prima se enlevaram num meio sorriso.
— Não, tia. Eu não vou pedir, porque sei que Deus vai me curar.
Sem segurar minhas lágrimas e sob forte comoção, corri para minha prima e a abracei.
— É claro que vai. Eu sei que vai — explodi num choro sincero.
Ao invés de presentes materiais, nossa família começou a desejar com ardor que o sonho da Danny se tornasse realidade. Todo mundo descruzou os braços.
Se antes o natal do ocidente não tinha tanta importância para mim, agora eu contava os dias para que o dia 25 de dezembro chegasse logo e eu pudesse fazer uma coisa diferente e boa junto com a minha família.
O mais legal é que conheci o lado humano das pessoas. Quando meus primos e eu saíamos pelas vizinhanças pedindo doações, os moradores das casas nos recebiam educadamente e nos ajudavam de bom grado, sempre sorrindo. Os que não tinham dinheiro doavam pacotes de arroz, feijão e latas de óleo.
Para mim, aquele era o verdadeiro significado do natal.
Fazer o bem.
Assumir o protagonismo de fazer a diferença no mundo, e torná-lo menos triste.
O tio Daniel alugou uma toppic e uma van, e quem iria dirigir os carros seriam um dos meus tios mais velhos e meu pai. A vó Raluca comprou um fogão industrial e preparou vários pratos. Ela não era muito de sair de casa (só aos domingos, para ir a igreja), pois não aprendeu a falar português muito bem. No entanto, foi ela quem nos apressou para sair logo. E prometeu ir junto numa das vans.
Enquanto não dava oito horas da noite, meus primos e eu saímos pelas casas do bairro cantando músicas de natal e tocando sinos. Levamos a Danielle conosco na cadeira de rodas, ela estava feliz por a deixarmos participar.
— Os colindătorii estão chegando. — os moradores das casas diziam ao nos ver de longe. Na Romênia, colindătorii são as pessoas que na noite de natal cantam nas casas, recebendo em gratidão doces, frutas e às vezes dinheiro.
A van e a toppic saíram assim que as primeiras estrelas se apresentaram no céu como num balé, e começamos a distribuir as doações. Pratos de comida, cobertores e presentes.
Foi lindo ver os rostinhos das crianças ao receberem brinquedos das mãos do vô Nicolae vestido de Papai Noel, os sorrisos delas se iluminavam como as estrelas, e faziam com que eu sentisse esperança de que um dia todo mundo tivesse uma casa para morar, com um prato de comida na mesa.
Que não houvesse mais crianças andando descalças nas ruas e vendendo balas para ajudar os pais.
Que não houvesse mais fome, abandono, tristeza.
E que o amor fizesse morada em cada coração.
Os adultos choravam emocionados, nos davam abraços dizendo que nunca alguém havia se importado com eles.
— Deus abençoe vocês — uma velhinha agradeceu emocionada, recebendo uma marmitex das minhas mãos.
Danielle queria descer, porém tínhamos medo que ela pegasse uma infecção. Ela via pelo vidro do carro os frutos que ela ajudou a produzir. Me aproximei dela, toquei seu rosto coberto pela máscara.
— Você está feliz, Danny?
Ela acenou positivamente.
— É o natal mais feliz da minha vida.
Perto da meia noite, os sinos das igrejas tocaram anunciando o nascimento de Jesus, e o céu se reconciliou com a terra. Parecia que podíamos ver a estrela de Belém sobre nossas cabeças.
Votos de feliz natal eram desejados enquanto trocávamos abraços, as luzes piscavam em cores vivas e os fogos de artifício explodiam no céu.
Uma sensação de paz e alegria nos tomava, e eu desejei que aquele momento nunca acabasse e que ficássemos juntos para sempre, e pensei: isso é que é felicidade.
Natal é isso. Deixar os bons sentimentos aflorarem e dividir o que temos com quem não tem nada. Ser uma mensagem viva de paz e esperança para quem está triste. Amar nosso próximo como à nós mesmos.
Não importa que digam que o amor é um sentimento fora de moda. Quem diz isso há muito desistiu de ser feliz.
A Danny nos ensinou a linda lição de que se o mundo feliz que queremos não existe, temos que construí-lo. E que num mundo de iguais, temos que ser diferentes.
Porque o amor supera tudo e dá gosto à vida.
…
Danielle foi internada no GRAACC no dia seguinte. É o hospital do câncer, fica na Vila Mariana, e é a primeira esperança de crianças e jovens que têm essa doença. E muitas vezes, é a última.
Um doador totalmente compatível havia sido encontrado e estava vindo para São Paulo. Ficamos super felizes com essa notícia.
O transplante de medula realizou-se no dia 7 de janeiro. No natal ortodoxo. No nosso natal. A operação foi bem sucedida e não houve rejeição.
Minha prima estava livre do câncer. Iria viver e ter uma vida normal, e no próximo Natal, se Deus quisesse, sairia conosco distribuindo comida e presentes entre os pobres.
Junto ao pedido que nós duas passamos a fazer todas as noites, enquanto rezavámos para Deus diante dos nossos ícones de devoção, de que dali para frente dias felizes se tornassem rotina, ousei pedir algo igualmente ousado.
Que o câncer passasse a ser só um signo.
Crăciun Fericit!
Feliz Natal!
Te iubesc¹: Te amo
Salut²: Oi
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