Capítulo 1
Capítulo 1
Aqui estou eu, de joelhos, esfregando o chão depois de arrancar o carpete mofado. Não tenho dinheiro para comprar um novo piso no momento. Dispenso o carpete velho, porque junta mofo e acaro e eu tenho alergia. Sempre sonhei com aqueles pisos flutuantes do tipo Durafloor, mas agora preciso me contentar com o que tenho. Só que, cá entre nós, eu estou no meu apartamento! Ele já está quitado, então quem liga para o tipo de piso?
A companhia de mudanças deverá trazer meus móveis amanhã à tarde, então hoje eu estou aproveitando para dar os últimos retoques. A parede da sala antes cinza de tão encardida, já foi devidamente lavada e limpa por mim e agora eu sinto um cheiro delicioso de tinta azul bebê na parede. Sim, eu realmente acho cheiro de tinta uma delícia. Ainda mais porque é a tinta da parede da MINHA sala.
O apartamento é bem pequeno: sala e cozinha numa peça só, quarto e banheiro. A cozinha é minúscula. Mal cabe um fogão, uma geladeira e um armário. A mesa ficará na sala, quase em cima do sofá. Pelo menos eu imagino que ficará assim, porque todos os meus móveis tiveram que ser devidamente medidos antes de selecionados. Não pude trazer todos os móveis da minha mãe. Mãe...
Largo o pano dentro do balde. Suspiro. Que saudades... Mas sei que foi melhor assim...
Preciso me animar. Amanhã chegará a mudança e logo começo num trabalho novo. E depois, tem o meu pai. Pai... Novo suspiro. Que medo.
Pego meu celular e o abro. Nenhuma chamada. Quase ninguém tem esse número, até porque eu me afastei de todos os meus amigos há 2 anos. Não foi culpa minha, eu realmente não tinha o que fazer. Meus contatos sociais acabaram se limitando a minha mãe, suas enfermeiras e médicos e o Leo.
Bom, eu podia ligar para o Leo, mas não é justo fazer isso com ele. Ligar só porque eu me sinto sozinha não seria legal.
Continuo a esfregar o chão. Se ao menos eu tivesse trazido um rádio não estaria tão silencioso.
Meia hora depois, o piso está limpo e seco e eu começo a pintá-lo. Sim, com tinta mesmo. É mais barato e eu colocarei um tapete em cima para disfarçar. A tinta que eu escolhi é cinza escuro, como a cor de chão.
Prendo meus cabelos mais uma vez no alto da cabeça, quando eles ameaçam a se soltar. Só que é tarde demais. Vejo mais um fio marrom encaracolado com a ponta suja de tinta. Devo estar parecendo um gatinho malhado.
Com o chão pintado - foi rápido, o apartamento é mesmo pequeno - eu levanto e mentalizo a disposição dos móveis. O quadro da minha mãe acima do sofá marrom. A colcha rosa estendida e bem alinhada sobre a cama. Suspiro. Com passos vagarosos, meus joelhos estão definitivamente esgotados, eu me arrasto até o banheiro.
Franzo o rosto numa careta. Esses azulejos devem ser do século passado, que coisa mais démodé! Mesmo com tudo cheiroso e limpinho, tenho que admitir: meu banheiro é horroroso! Mesmo assim, me esforço para ignorar a mistura do azul e rosa dos azulejos com o verde do vaso sanitário. Pelo menos o chuveiro não é amarelo.
Abro o registro. Meu primeiro banho, no meu banheiro!
Bom... Não sei se posso chamar de banho. Um jato de água saiu para cada lado e eu fiquei parada do meio, com meu rosto quase seco. Foi difícil tirar o shampoo, tive que fazer uma ginástica aeróbica para catar os jatos de água.
Tá bom... Mais um gasto. Anoto no meu bloquinho que já tem uns dez itens: consertar o chuveiro.
Pego uma muda de roupas na minha mochila. Olho para o vestidinho branco amarrotado e faço uma careta. Mas não posso escolher outra peça, pois a mudança só chegará amanhã junto com a maioria das minhas roupas. E com o ferro de passar.
Minha barriga ronca, mas eu só tenho uma meia garrafa de água mineral. Quente. E um resto de sanduíche de mortadela. Não tenho forças para me movimentar e ir até o mercadinho da esquina. Como o que tenho e acabo adormecendo no colchonete emprestado. É daqueles fininhos azuis de ginástica, mas foi o que eu consegui trazer no ônibus antes da mudança.
Desperto com um som insistente. Primeiro a música vai invadindo os meus pensamentos ainda inconscientes. A minha memória alerta que o som é conhecido. Penso imediatamente em Jack Sparrow. Meu pirata preferido.
Enquanto sonho com um beijo de Jack Sparrow, o som continua e eu acordo. Meu celular! O toque do meu celular é uma da trilha do filme piratas do caribe. Sei que a música está meio ultrapassada, mas eu não ligo. Sabe? É que eu sou meio viciada. Meio fissurada mesmo no Jack Sparow. Talvez pelo fato do meu nome ser Jaque também. Ou talvez apenas porque eu acho o Jonnhy Depp lindo.
Meus braços tateiam ao redor do colchão. Não preciso me mexer muito, pois meu telefone está logo ali. Eu sempre durmo com ele do lado, porque ele é também o meu despertador. O meu despertador que está programado para me acordar em UMA hora. Puxa, ainda é muito cedo!
- Jaque?
- Hmmm...? - eu bocejo. Meu cérebro sempre acorda depois do meu corpo.
- Desculpa, querida. Eu te acordei? É que o caminhão de mudanças acabou de me ligar... - ele fala numa vozinha constrangida, sabe o quanto eu devo estar exausta. - Eles querem saber se podem ir mais cedo.
- Ah... - eu pisco, tentando acordar - Podem sim, já está tudo pronto.
- Tá. Vou ligar para eles.
Ele sabe que eu provavelmente estou com pouco crédito para ligar. Sim, meu celular é de cartão. Assim que eu receber meu primeiro salário, vou providenciar um de linha. Até porque não vou gastar muito com o meu novo plano já que não tenho ninguém para ligar.
O Leo não desliga. Sinto que ele quer dizer mais alguma coisa e tento pensar em algo mais para falar. Ele parece triste.
- Você está bem, Jaque?
- Sim. Eu estou. Estou no meu apartamento, Leo. Estou feliz. Quero dizer, mais feliz do que ultimamente. De qualquer forma, tenho certeza que essa mudança vai me fazer bem.
- Mas... - ele se cala. Parece pensar. - Você não se sente...hum... sozinha?
Olho para as paredes nuas. Eu estou sozinha e o vazio do apartamento parece acentuar essa solidão. Mas já estou tão acostumada com a estar só, que não ligo muito.
- Sinto falta do meu computador. - eu digo automaticamente.
Meu computador me conecta a um mundo virtual incrível. Era o que me mantinha unida com o mundo quando eu não podia sair de casa.
- Sei. - ele diz. Parece que quer falar mais alguma coisa, mas não faz isso.
- E você está bem, Leo?
- Não.
Eu logo imagino o motivo e me sinto mal.
- Sinto a tua falta, Jaque.
Há um silêncio meio constrangedor agora. Não sei o que dizer. Não sei como dizer de novo para o meu namorado de 5 anos que eu já não o amo mais. Ele sabe. Mas mesmo assim, eu não gosto de ter que repetir.
- Hmmm. Como está o trabalho? - eu pergunto para mudar de assunto.
- Tudo igual. - ele responde, sem ânimo.
Logo o imagino passando os dedos em seus cabelos castanhos. Seus olhos verdes antes risonhos, agora tristes. E por minha causa. Isso me deixa mal.
Eu gosto do Leo. Ele é meu melhor amigo e eu sinto bastante atração por ele. Mesmo nos últimos dias, eu ainda gostava de transar com ele. Era gostoso. Só que entenda... Eu gosto dele como um amigo com o qual eu fazia sexo. Ele é bonito e agradável, eu só não o amo mais.
Bom, agora não me lembro se eu já o amei um dia. Talvez no início de relacionamento. Ou talvez fosse só empolgação: porque ele era realmente lindo e estava olhando para mim! Ele, todo gato, estava interessado em mim, na Jaqueline pernas-finas!
Saí com umas amigas (naquela época eu ainda tinhas amigas e vida social) e foi então que eu o conheci. Fomos a um barzinho e a Magali me apresentou para alguns amigos da faculdade, eles faziam administração de empresas, e Leo era o mais gato. Gato mesmo. Daquele tipo que a gente nem perde muito tempo olhando, porque acha que não tem chances.
Fiquei bebendo cerveja e batendo um papo com um carinha mais feioso. Não que eu estivesse interessada nesse outro, mas para mim é sempre mais fácil conversar com os caras mais feios. Homens bonitos como o Leo me deixam nervosa.
Eu falava alguma coisa e dava um gole de cerveja. Cada vez que eu baixava a cabeça para o copo, eu virava para o lado e via o Leo. E ele estava me olhando. Céus! Nas primeiras vezes eu juro que fiquei vermelha e não ouvi o que meu novo amigo tagarela dizia.
Ele realmente me olhava, fixamente até. Mas por quê? Será que eu estava com o rosto sujo? Havia algo nos meus dentes? O que um homem como aquele pretendia olhando assim para mim? Será que ele pretendia ter uma noite de sexo caliente com uma mulher qualquer e achava que a Jaqueline só por ter as pernas finas e não ter sorte com os homens era uma presa fácil?
Quando eu vi, ele estava sentado do meu lado. Começamos a conversar. Nunca tinha conseguido conversar antes com um homem tão bonito, mas estranhamente com ele eu consegui. Ficamos no bar até que ele fechasse e não restasse mais ninguém. Só nós dois.
Ele me levou para casa a pé, eu morava perto. E depois pediu meu telefone. Não me beijou na primeira vez, só na segunda. Confesso que quase morri. Ele era muito lindo e eu fiquei deslumbrada com o beijo. Quando finalmente transamos... Nossa! Ele era todo lindo e perfeito! Todo lindo mesmo! Só que eu tive que pedir para apagarmos as luzes, ele era perfeito demais para aceitar meu corpo defeituoso.
Com o tempo, eu relaxei. Ele fazia com que eu me sentisse bonita. Hoje continuo com as pernas finas e com os peitos grandes, mas não me importo mais em ficar desfilando nua na frente do Leo. Ele diz que gosta. Mas... Sei lá, deve ser porque ele me ama.
Depois que a minha mãe morreu, eu me senti tão vazia... Um dia parei e fiquei olhando o Leo dormir e percebi. Ele era o meu melhor amigo. O cara que esteve ao meu lado e não me abandonou durante a doença da minha mãe. Que compreendeu que eu nunca podia sair de casa, que eu tinha que ficar com ela. Que me ajudava nas vezes em que minha mãe vomitava. Nossa... até me sinto mal agora, o Leo é tão querido, tão bonzinho... Mas naquela noite eu percebi que eu não o amava.
Por que eu não o amava? Me expliquem? Ele é lindo, querido e bonzinho, mas eu não me sentia feliz. Ele vivia me mimando e fazendo as minhas vontades, mas era tudo tão fácil, tão sem emoção... Sei lá. A gente não manda no nosso coração e o nosso coração às vezes é idiota. Mesmo assim, eu ficaria com o Leo. Ficaria sim. Eu não planejava ir embora e partir seu coração, mas depois da conversa definitiva que eu tive com a minha mãe antes dela morrer, tudo mudou.
E agora eu estou aqui, em outra cidade. Acordando com dor nas costas por causa do colchonete azul fininho. Com o Leo do outro lado da linha dizendo que sente a minha falta.
- Segunda-feira eu começo no meu trabalho novo - eu digo, para retomar a conversa, já que o silêncio constrangedor continua.
- Eu sei. - ele podia ser o tipo de idiota que encerraria a frase com apenas eu sei, porque ele realmente sabia, mas ele não faz isso. - E você está nervosa?
- Oh, sim! Estou sim. Mas estou tentando não pensar nisso.
Ele ri.
- E como está tudo ai?
Eu conto sobre o meu chuveiro, que tem um jato de água para cada lado. Conto sobre o vizinho do lado que ficou ouvindo música clássica alta até as 21 horas e sobre a vizinha da frente que tem trigêmios de dois anos.
- Será que ela fez algum tratamento de fertilidade ou foi natural? - eu pergunto, apesar de achar que um morador desse prédio não teria condições financeiras para pagar um tratamento.
- Eles são gêmeos idênticos?
- Não sei. Para mim eles têm todos cara de bebês.
O Leo acha graça.
- Teu pai vai estar viajando nessa semana, sabia? - ele pergunta com uma voz preocupada. Ele é o único que sabe sobre esse assunto.
- Sim. Eu vi a foto dele no jornal. Ele é bonito, Leo.
- Mas não tanto quanto você.
- Nem como você. - eu respondo com naturalidade, não para ser simpática, mas por ser a mais absoluta verdade.
Ele dá risada e mesmo do outro lado da linha eu consigo imaginar a melancolia de seus olhos.
- Vou ligar para a companhia de mudanças e você pode voltar a dormir, meu a... - ele se corrige a tempo - Jaque.
Depois que eu desligo, eu quase choro. Quase. Porque o sono chega antes e me derruba sobre o colchão fininho.
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