II. A TERNURA DO MONSTRO
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SEGUNDA PARTE: O INTERIOR
A ternura do monstro
"É mais fácil raciocinar sobre o amor do que vencê-lo."
— A Bela e a Fera, de 1740, por Madame de Villeneuve.
Como os ponteiros de um relógio, as quatro estações passaram em um piscar de olhos. A notícia de que o rei estava doente espalhou-se por toda a região e a comoção entre os moradores do vilarejo só aumentava. A situação financeira dos mais pobres era pavorosa e até mesmo para os integrantes mais afortunados as preocupações sobre o futuro do reino eram inevitáveis. Todos temiam uma guerra.
Menos a "garota esquisita", aparentemente.
Bernard, por estar sempre atento à filha, observou que ela estava ainda mais radiante nos últimos tempos. Era comum vê-la cantarolando e sorrindo de modo gentil, mas, além disso, ele notou certo brilho nos olhos da jovem. Algo a mais estava acontecendo com ela e, como pai, ele queria descobrir o que era.
Porém, o que Bernard não sabia era que, desde o dia que Bela saiu para procurar o livro perdido, uma mágica aventura havia começado na vida de sua filha. Naquela madrugada, quando retornou para casa e foi questionada a respeito da demora, Bela apenas respondeu ao pai que não havia encontrado o livro e que continuaria procurando.
Seguiu-se, assim, o plano para quebrar o feitiço do príncipe.
Todos os dias, em horários alternados para não levantar suspeitas, Bela cavalgava até a redoma encantada e ajudava os dois melhores amigos de infância. Antes, quando Aaron fazia tudo sozinho, ele tinha de levar alimentos, roupas e itens de higiene pessoal para Lohan, além de dar conta da tarefa principal: procurar pela rosa negra. Tudo sem ser descoberto, ficando sobrecarregado.
No entanto, mesmo com os dois rapazes beligerantes sobre a escolha da jovem, Bela decidiu que participaria da "missão". Conseguiu convencer Aaron a dividir as obrigações com ela, utilizando o argumento de que ele poderia ter mais sucesso na busca pela flor se não ficasse tão cansado. E isso incluía deixá-la participar ativamente da "caçada", claro.
Aaron gostou da ideia, mas Lohan ficou preocupado, ainda mais por não conseguir sair da redoma. O príncipe não duvidava da capacidade da camponesa, nunca duvidou, mas temia perdê-los para algo horrível, o que o encheria de culpa e tristeza. Porém, Bela não mudaria de ideia e eles tiveram que aceitar e respeitar a opinião dela.
Havia dias que ela participava das "caçadas" e havia dias que ela preferia ficar na redoma. Com Aaron, Bela sempre aprendia alguma estratégia ou curiosidade nova a respeito da natureza, além de se divertir apostando corridas com o marquês. Já com Lohan, apesar de se sentir frequentemente desafiada a enxergá-lo de modo mais nítido, Bela era consumida por uma paz inexplicável ao estar perto dele, em especial, na "hora da leitura" que já era habitual para os dois. O príncipe e a camponesa conseguiam conversar sobre qualquer assunto, mas também gostavam de apreciar a companhia um do outro em um silêncio confortável.
— Sinto que estamos perto de desfazermos o feitiço — Bela contou para Lohan, sentando-se na frente da caverna, sobre a grama confortável. — Aaron e eu descobrimos um comerciante especializado em rosas e–
— Não há mais tempo — Lohan a interrompeu, com a voz soando fraca. — As notícias sobre o meu pai confirmam isso.
Bela suspirou e ficou encarando a capa do seu livro favorito, o mesmo que sempre lia para Lohan na "hora da leitura", mesmo que também lessem outras obras. No dia anterior, ela havia revelado ao príncipe que o rei estava acamado, o que significava que a contagem regressiva para encontrar a rosa estava se esgotando.
A jovem ficava mentalizando o enigma do feitiço e, no fundo, sentia que estavam mais perto de quebrá-lo do que imaginavam, mas também sentia que estava faltando uma peça importante do quebra-cabeça. Após encontrar a rosa, o que deveria ser feito? Quando questionados, nenhum dos dois rapazes se dispôs a respondê-la, deixando Bela cada vez mais intrigada.
Ainda encarando a capa do livro que estava em seu colo, Bela contornou com as pontas dos dedos a ilustração da flor pintada de preto e depois sussurrou o título só para si: "O âmago da rosa".
Refletiu sobre Aaron ter achado que aquela era a flor que procuravam. Ele havia dito que pegou o livro por causa da rosa negra destacada no centro da capa, ficando encantado pelos detalhes das pétalas aveludadas. Lohan também achava que descobririam alguma pista a respeito do enigma se lessem e estudassem a história. Mas nada aconteceu, e as caçadas continuavam.
Por ter lido incontáveis vezes aquele livro, Bela havia decorado cada frase da história. Sabia que a flor preta representava a quebra de um pensamento estrutural, o qual era desconstruído a partir das ações e das lutas da protagonista. A igualdade e o final feliz no enredo só foram possíveis por meio da consciência obtida pelos personagens, quando a venda invisível foi removida de seus olhos e eles puderam enxergar além das aparências, do superficial.
A moral da história parecia perfeita para resolver a situação do príncipe, mas os três amigos, mesmo tentando ressignificar cada parte da história em busca de alguma pista efetiva, não obtiveram êxito. Bela, pelo menos, havia conseguido que Lohan e Aaron apreciassem a obra tanto quanto ela. Os livros são poderosos, por isso, demandam responsabilidade.
Mais dias se passaram e a única pista visível era a do grande sentimento que florescia dentro de cada um dos três jovens. Aaron, sempre que chegava à redoma sem ser notado, descia do cavalo e ficava admirando Bela de longe, sem conseguir conter um sorriso bobo. Lohan ansiava pelos momentos que passaria com Bela, notando que poderia ouvi-la contar histórias para sempre, sem nunca se cansar. E, Bela... Ah, Bela não conseguia controlar a saudade que sentia quando estava longe...
Faltando um dia para o final da primavera, os três não tinham mais como ignorar que o tempo de vida do rei estava acabando. As notícias só traziam desesperança e o povo do vilarejo estava em alerta. A falência de alguns feirantes foi inevitável e muitas pessoas perderam as suas casas e as suas famílias para a miséria. Crimes constantes assolavam as terras do reino.
Era a última chance para o equilíbrio ser restaurado.
— Bela... — Lohan a chamou, com a voz rouca, parecia que a vida estava começando a esvair de seu corpo. — Quero que me veja.
Nesse momento, Aaron estava descendo de seu cavalo, acabando de chegar de mais uma busca frustrada, e franziu o cenho ao perceber a aproximação incomum de Bela em direção à caverna. Ao ver a jovem segurando a mão do seu melhor amigo, tudo o que conseguiu constatar foi que estava em uma zona proibida, na qual jamais deveria ter se permitido pisar. Sabia que não podia se apaixonar por Arabela, mas não teve forças para impedir que tal sentimento criasse raízes em seu peito.
Ele continuaria lutando contra aquela paixão, não importava o sacrifício que tivesse de fazer.
— Nunca deixou que eu me aproximasse o suficiente para vê-lo... — Bela murmurou para Lohan, sentindo o calor de suas mãos unidas. — Por que agora? Por acaso está se despedindo?
— Você já viu a minha parte mais real, a mais importante — ele sussurrou, ainda em pé sob as sombras. — Tentei evitar que visse o meu lado mais feio... Mas, agora que estamos perto do fim, não há razão para não deixar que você me veja por inteiro.
Havia entrelinhas no que o príncipe estava dizendo, mas o rapaz estava tomado pelo forte sentimento que nutria por Bela e só queria poder liberá-lo de seu âmago antes de partir. Há alguns dias, Lohan vinha sentindo uma crescente fraqueza tomando-lhe o corpo, mas preferiu guardar só para si, pois não queria preocupar ainda mais as pessoas que amava. Ele esperava, também, poder se despedir do melhor amigo e agradecê-lo por tudo.
Sentindo os olhos marejados, Bela agachou-se na grama junto com Lohan, tentando poupá-lo de qualquer esforço. Ela desejou que o fim não estivesse tão próximo e que pudessem desfrutar de incontáveis momentos felizes juntos, como os que compartilharam naquela redoma e durante a infância. Ela desejou poder acabar com aquele feitiço.
Quando Lohan tossiu fraco, ela o ouviu sorrir baixinho.
— Não sei se ajuda — sussurrou ele, e percebê-lo tão próximo provocou uma sensação diferente em Bela —, mas lembre-se de que, apesar de eu ter um bom coração, ainda carrego marcas do monstro que fui.
Ela sorriu como ele, sem humor, e atentou-se ao fato de que Lohan estava sob as sombras enquanto ela estava sob a luz do pôr do sol, o momento do dia que mais gostava. Era a prova de que nada era impossível, assim como o Sol e a Lua se encontrarem.
Bela queria responder que o amava de qualquer forma, no entanto, ficou paralisada quando Lohan inclinou-se com suavidade para a frente e retirou o chapéu, revelando a sua face. Os olhos dele eram pequenos e alongados como ela recordava-se, e adorou que eles estivessem focados nela. Observou cada traço do rosto dele como se fosse uma relíquia, erguendo a mão de modo inconsciente para tocar em uma profunda cicatriz que ia de seu supercílio até a metade de sua bochecha.
Havia outras marcas menores e menos densas pela face dele, todavia, nada havia mudado. Ao encarar os lábios de Lohan, notou-os entreabertos, sentindo as borboletas dançarem em seu estômago. Bela precisava dizer alguma coisa para ele, precisava expressar o que estava sentindo. Então, pegou o livro que a havia levado até ali e o abriu em uma das suas citações favoritas:
— A visão pode ser uma dádiva ou uma maldição. A venda da malignidade é resistente e a linha entre o ver e o enxergar é tênue, mas eu escolhi o que realmente é importante para mim. Os olhos do meu coração guiam a minha vida, mesmo que escolher o bem não seja fácil. Acredito que não é impossível ser luz em meio à escuridão de alguém, por isso amo até as partes invisíveis. — Vagarosamente, Bela inclinou-se para encostar a testa na dele, o que o fez prender a respiração por alguns instantes. — Eu amo você por inteiro, Lohan. Não se atreva a me deixar.
O príncipe ergueu a mão até o rosto da amada e acariciou-lhe a bochecha, sem conseguir forças para fazer muito mais do que sorrir em resposta. Lohan apoiou os braços ao redor dela e desmaiou. Aos prantos, Bela se endireitou e o deitou em seu colo. Passando os dedos pelos cabelos macios e castanhos do amado, ela gritou por ajuda.
Então, uma forte claridade e um impiedoso vento emanaram do livro, fazendo com que as paredes invisíveis da redoma se transformassem em fumaça e subissem ao céu, misturando-se às nuvens da noite. Toda a natureza que estava presa na cúpula transparente adaptou-se à paisagem ao redor, incluindo a caverna que, ficando por último, desintegrou-se. Não havia mais a luz que fazia daquele lugar um ambiente mágico.
Ao ouvir passos apressados, Bela avistou Aaron e Bernard aproximando-se, enquanto outra figura surgia. A mulher parecia um anjo, com trajes leves e esvoaçantes em tons de azul, e estava emocionada. A jovem camponesa mal podia acreditar que estava diante daquele rosto mais uma vez. E quando achou que os acontecimentos estranhos haviam acabado, Lohan movimentou a cabeça e abriu os olhos, abraçando-a instantaneamente.
— Eu a amo tanto... — sussurrou o príncipe, no ouvido da camponesa.
O casal levantou-se do chão e logo viu os pais de Bela se abraçando e chorando. Cécile era, na verdade, uma das inúmeras criaturas mágicas que haviam sofrido sob as ordens insanas do rei. Sua mãe contou que, anos atrás, os seres encantados foram obrigados a servir somente a família real, tornando-se escravos.
Bernard também não se lembrava da verdade, pois, antes de partirem, as criaturas foram obrigadas a manipularem as memórias de todos no vilarejo, para que pudessem servir de armas surpresas em qualquer conflito da monarquia. Cécile também contou que todos os dias pensava em uma forma de reverter aquela situação, mas nada surgia, até ela ter que fazer um feitiço para exilar o príncipe.
Cécile sabia que havia bondade no coração de Lohan, então, ao elaborar o feitiço, criou uma chance de o rapaz se redimir e salvar não só a si, mas o reino inteiro. Dessa forma, ela utilizou o antídoto perfeito contra o mal: o amor. Como mãe, não aguentou ver a filha ser separada dos melhores amigos e fez com que seus caminhos se cruzassem novamente.
O feitiço foi quebrado porque o príncipe aprendeu a lidar com a linha tênue entre o bem e o mal, utilizando o amor como a maior força. E a flor rara e bela fazia parte do enigma. Cécile decidiu que o segredo estaria visível apenas para aqueles que conseguissem enxergar além dos padrões. Então, qualquer frase daquele livro que fosse lida com um sentimento genuíno, de pura intenção, por qualquer pessoa, revelaria o poder da rosa negra de restaurar o equilíbrio perdido. E não havia melhor guardiã para tal relíquia do que Bela.
Cada detalhe havia sido uma prece no escuro e, apesar de algumas terem encontrado a luz e semeado a felicidade, outras brotaram em forma de tristeza. Aaron, por exemplo, havia escolhido partir para bem longe do reino onde viviam as duas pessoas que ele mais amava. O marquês continuaria lutando contra o que sentia por Bela e faria isso trilhando o próprio caminho.
O rei havia morrido e as últimas palavras que proferiu foram um pedido de perdão ao filho e ao reino.
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Olá, pessoas floridas!
Chegamos ao final do conto e espero que tenham gostado da história, pois foi um grande desafio colocar todas as ideias que eu queria em apenas 5 mil palavras! Confesso que estou insegura com o resultado e há detalhes que eu gostaria de explorar bem mais! Porém, deixei muuuuitas pistas para vocês nas entrelinhas da obra. Contem-me o que acharam e deixem a estrelinha para incentivar a autora!
Obrigada por tudo.
Beijos de flores!
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