I. A FACE DO MONSTRO
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PRIMEIRA PARTE: O EXTERIOR
A face do monstro
"Tenho o coração bom, mas sou um monstro."
— A Bela e a Fera, de 1756, por Madame de Beaumont.
Há muito tempo, mesmo antes de o Sol ser nomeado, duas forças moldavam-se de forma coexistente pela imensidão do mundo, gerando o equilíbrio da vida. O bem e o mal não eram vistos como rivais e trabalhavam em equipe, andando de mãos dadas dentro de cada ser vivo. Os dois eram responsáveis pela personalidade e pelo caráter. Afinal, nada poderia ser somente bom ou somente ruim.
Entretanto, esse elo foi partido quando, ao desviar a atenção do propósito inicial, o mal quis ser maior do que o bem e acabou desfazendo tal harmonia, começando uma guerra interminável cheia de batalhas injustas das quais uma inspiração surgiu. O bem, percebendo que o mal estava cego pela ganância e pelo poder, criou um sutil jeito de fazer com que as pessoas escolhessem o caminho da bondade: elas deveriam aprender a enxergar com o coração.
Não seria fácil, mas também não seria impossível ser luz em meio à escuridão.
Dessa forma, assim como as estações, as pessoas poderiam mudar. Não importava o quão resistente fosse a armadura da malignidade, a linha tênue entre o bem e o mal continuaria existindo dentro de cada ser humano e essa seria a única escolha capaz de definir o interior e o destino de alguém.
Havia esperança e era justamente esse inspirador sentimento que dominava o coração da jovem camponesa Arabela, uma garota que sonhava além da compreensão de todos. Os moradores do vilarejo onde ela nascera e crescera não entendiam como alguém podia ser tão otimista diante da pobreza que os cercava. A fome gerava a escassez da felicidade e, como consequência, tirava a beleza da simplicidade, do que realmente importava. Mas não aos olhos da "garota esquisita", como costumavam chamá-la.
Para Arabela, eram encantadoras as tonalidades de cores dos campos e dos céus. Amante dos pequenos gestos, todos os dias, sob qualquer clima, ela gostava de ir até uma das colinas mais altas que conhecia, a favorita dela, para vislumbrar o pôr do sol. A jovem observava os tons de laranja se misturando aos tons de azul no tecido crepuscular como se estivesse vendo-os pela primeira vez. Ficava hipnotizada pelos degradês coloridos, sendo eles quentes ou frios. Ela sentia que nunca enjoaria daquela paisagem, mesmo que houvesse um boato tenebroso a respeito daquelas terras que ficavam fora do reino do Sul.
Criada somente por Bernard, seu pai, Bela, como também costumavam chamá-la, foi ensinada a cultivar o hábito da leitura desde criança, tendo-o como um legado da falecida mãe, Cécile. As vívidas recordações dos momentos mágicos que tiveram com a literatura ficariam com a jovem para sempre. Em especial, as que envolviam a história que ela mais gostava.
Por mais que lesse outros livros, a lição contida naquele conto, o qual ela carregava consigo para todos os lugares, iluminava os olhos da camponesa de modo incomparável. Para manter as lembranças da falecida mãe brilhando em sua memória, Bela o relia todas as noites antes de dormir. Era o seu bem mais valioso e, apesar da saudade, sentia-se reconfortada, aquecida, ao fechar os olhos e imaginar-se de volta aos braços da mulher que a ensinara a ter um coração sonhador.
Bela sorria, mesmo em meio às lágrimas de dor.
Em uma noite de inverno, ao ir dormir, ela concluiu que havia perdido o seu livro favorito. Em desespero, após muito procurar dentro de casa, Bela decidiu que sairia para procurá-lo na colina, o primeiro lugar no qual pensou. Receoso, o pai a pediu para esperar pelo nascer do sol, mas ela estava irredutível. Ele até insistiu que iria com ela, no entanto, teve que deixá-la partir sozinha, obrigando-a a levar pelo menos um cavalo.
Bela colocou uma capa de veludo por cima do simples vestido azul que trajava e, às pressas, saiu pela noite. Adentrou a floresta com determinação, até chegar ao espaço aberto que desejava, indo para o topo da elevação de terra. Nunca havia visitado aquele lugar em outro horário que não fosse ao pôr do sol, então, ficou temerosa pela escuridão e pelo silêncio que a cercavam. Desceu do cavalo e, segurando firme o capuz em volta do rosto, vasculhou todo o espaço ao redor, sem encontrar o que procurava.
Cansada, com frio e com uma angústia crescente no peito, Bela recusava-se a desistir. Respirou fundo. Quando estava prestes a voltar à busca incessante, ela ouviu um relinchar ao longe, virando-se imediatamente na direção do som. Foi então que notou as outras pegadas pelo chão, além das que pertenciam ao seu cavalo e a ela.
Sentindo a adrenalina pulsar em seu corpo, Bela montou em seu cavalo e começou a seguir os rastros deixados pela fina camada de neve. As pegadas saíam da trilha, formando o próprio caminho, mas ela não se importou. Cavalgou o mais rápido e discretamente que conseguiu, notando, após um tempo, parte de uma capa surgir e desaparecer atrás de um rochedo.
Bela possuía convicção de que estava na direção certa, seguindo o que o coração dela gritava.
Gradativamente, depois de mais uma elevação rochosa, o solo ficou inconsistente e perigoso, obrigando-a a diminuir o ritmo e a descer do cavalo. Guiou o animal pelas rédeas até as pegadas... desaparecerem. De forma súbita, Bela viu-se diante de uma paisagem verdejante e ensolarada, à beira de um precipício. Piscou e esfregou os olhos várias vezes, buscando ao redor alguma explicação para o que via.
Era como uma gigantesca redoma guardando uma das mais deslumbrantes paisagens naturais do mundo.
Ficou fascinada.
Antes que pudesse decidir o que faria, uma figura alta, coberta por uma longa capa de lã marrom, surgiu em seu campo de visão, fazendo-a se retrair e se esconder atrás de uma imensa rocha. Bela puxou seu cavalo pelas rédeas, mas não soube se foi rápida o suficiente.
Como não escutou nada, resolveu dar só uma espiadinha...
A alguns metros, a pessoa de capuz marrom fazia carinho na crina do próprio cavalo ao deixá-lo sob uma das macieiras espalhadas pelo campo. Em seguida, caminhou até a pequena montanha que ficava quase no centro do local e cessou o passo, dando batidinhas incertas pelas vestes como se estivesse procurando algo pelos bolsos. Quando, enfim, pareceu encontrar o que buscava, estendeu à frente, com uma mesura. Bela, ao reconhecer de imediato o objeto, soltou uma involuntária exclamação:
— MEU LIVRO! — Ela logo voltou a se esconder e cobriu a boca com as duas mãos, arregalando os olhos.
Apreensiva, Bela esperou, mas nada aconteceu.
Ninguém surgiu.
Então, resolveu dar só mais uma espiadinha...
— Por que me seguiu? — A pessoa de capuz marrom estava próxima à rocha, encarando Bela com uma das mãos sobre o cabo da espada. — Responda.
— Porque você pegou algo que não lhe pertence. — Bela endireitou-se, já que havia sido descoberta. — O livro... — murmurou, dando um passo à frente para ficar mais visível. — O livro que está com você é meu... — Engoliu em seco, mas não desfez a postura decidida.
Por alguns instantes, não houve resposta. Bela desejou poder enxergar o rosto de quem estava diante de si, mas não conseguiu.
— Entregue-me o livro e eu partirei. — Bela retirou o próprio capuz, certificando-se de que a sinceridade pudesse ser vista e ouvida por meio dela.
— Contará sobre o que viu aqui?
— Será como se eu nunca tivesse visto este lugar, eu prometo — Bela respondeu, com um aceno de cabeça.
Mais alguns instantes de silêncio.
— Sinto muito, senhorita, o seu livro não está mais comigo — murmurou, retirando a mão da espada. — Se quiser tê-lo de volta, terá que pedir pessoalmente.
Bela olhou ao redor, confusa, porque não avistou mais ninguém ali. Mesmo hesitante, seguiu a pessoa de capuz marrom que já caminhava a alguns passos à sua frente, até pararem diante da pequena e única montanha da redoma. Soltando as rédeas de seu cavalo, ela permitiu que o animal se juntasse ao outro sob a macieira.
Fascinada, Bela não conseguia conter o encanto por cada detalhe do lugar, pois, há tempos, sonhava em conhecer uma paisagem tão mágica quanto as que eram descritas nos livros.
— Apresente-se, por favor — pediu a pessoa de capuz marrom, tirando Bela de seus devaneios.
Sem saber ao certo o porquê e como fazer aquilo para uma montanha, Bela virou-se para a profunda cavidade diante de si e falou o seu nome, de onde vinha e o que queria.
— Não posso permitir. — A voz baixa, porém firme e melódica, ressoou do fundo da caverna, fazendo com que Bela desse alguns passos para trás, assustada. — Não posso deixar que leve embora a minha única esperança de continuar vivo. Por favor, deixe-me.
Notando a expressão da jovem camponesa, a pessoa, até o momento, desconhecida, retirou o capuz marrom da cabeça e pediu com o olhar para que Bela ficasse calma. Todavia, ao reconhecê-lo como o marquês que era o melhor amigo do príncipe perdido, ela ficou ainda mais perplexa.
De imediato, Arabela lembrou-se da infância que partilhou com os dois meninos, os quais fugiam do Castelo com frequência só para brincarem com ela. Os três corriam livres e felizes pelo vilarejo, aprontando com os feirantes e descobrindo novas trilhas pela floresta. Por ser uma menina, tal comportamento não era bem-visto e, com o tempo, o trio teve de ser desfeito.
Poucos anos depois, espalhou-se pelo reino a notícia de que o Castelo havia sido invadido pelos inimigos do Norte e que o príncipe havia desaparecido em meio ao atentado. A pequena Arabela ficou arrasada, refugiando-se ainda mais nos livros.
Os feirantes que cruzavam a fronteira dos reinos começaram a não retornar, nunca mais sendo vistos, o que gerou os boatos sobre aquelas terras afastadas serem amaldiçoadas. O rei até discursou a respeito, limitando-se a acusar os inimigos do Norte, mas como nenhuma prova jamais foi encontrada, a lenda do "Monstro Real" começou a se alastrar.
Todos, inclusive Bernard, começaram a acreditar que o príncipe, na verdade, estava morto e que o espírito dele havia ficado preso nas terras dos inimigos, com a intenção de obter vingança pelo sangue inocente que havia sido derramado, devorando qualquer alma maldosa que cruzasse o seu caminho.
Arabela nunca quis acreditar que o príncipe estivesse de fato morto, mas...
— Eu preciso vê-lo — Bela sussurrou, desviando os olhos do marquês para a caverna.
— Bela... — O rapaz aproximou-se dela, com os olhos verdes cheios de aflição. — Lohan não é mais o mesmo garotinho que você conheceu... Ele está... diferente. Há muita coisa que você não sabe.
— Cresci achando que nunca mais os veria, Aaron — murmurou ela, sentindo os olhos arderem pelas lágrimas e lembranças reprimidas. — Só preciso confirmar se ambos estão bem, entende?
— Não basta ouvir a minha voz? — O tom firme vindo da caverna voltou a ressoar pelo lugar. — Não seja tola, Arabela. Você não vai querer me ver. Não recorda-se de como eu só olhava para cima, para bem alto? A ironia é que agora eu só desejo olhar para baixo. Nem mesmo eu consigo me encarar... — Fez uma pausa ao respirar fundo. — Se veio recuperar o seu livro, esqueça.
— O quê? — Bela indagou, ouvindo o eco da própria voz servir como resposta. — Conte-me, Aaron. Por favor, explique-me o que está acontecendo. — Virou-se para o marquês, vendo-o umedecer os lábios, esmorecido.
Aaron pediu para que ela se sentasse sobre a grama fofa e seca, pois a conversa seria, em demasia, reveladora. Primeiro, esclareceu a respeito do atentado, dizendo que era apenas uma forma prática de o rei e a rainha esconderem de todos o que realmente havia acontecido. A verdade era que os inimigos não vieram de fora, mas, sim, de dentro.
Depois de os dois meninos serem obrigados a ficarem trancados nas dependências do Castelo por causa das leis a respeito da separação dos nobres e dos plebeus, Lohan começou a mudar. O príncipe ficou furioso por perder a liberdade. Ele sentiu muita falta da melhor amiga e, mesmo com a presença constante de Aaron, a solidão e o peso da vida real o consumiram pouco a pouco. Sentia que poderia ter tudo e, ao mesmo tempo, não tinha nada.
O primogênito não aprovava as atitudes egoístas do pai e, a partir do desejo irrefreável de ser diferente, acabou trilhando o caminho que o tornaria pior ou igual ao monarca. Lohan começou a agir de modo agressivo, nutrindo rancor pelas atitudes da família real. Maltratar os empregados, quebrar e sujar os objetos de valor, faltar às reuniões e simular os incêndios pelos jardins eram apenas algumas das atitudes maquiavélicas que o príncipe utilizava para enganar os sentimentos de protesto e de ódio que o engoliam.
Ele questionava-se como poderia ter tanto poder e, ao mesmo tempo, não conseguir fazer nada. Lohan só queria ser ouvido, queria ajudar o seu povo.
Desse modo, não demorou para que o príncipe resolvesse desafiar o próprio pai em um duelo de espadas. O rei tentou de diversas formas repreender o comportamento do filho, mas não teve escolha a não ser assumir que a situação estava insustentável. A intenção do monarca era apenas ensinar uma lição ao primogênito, mas, ao receber um golpe certeiro no ombro, ele soube que a batalha seria longa e definitiva.
Ao final, os dois estavam exauridos e ensanguentados. O choro e as lamúrias incessantes da rainha não indicavam qual tinha sido o resultado da batalha, todavia, marcavam o final de um ciclo.
Alguns dias depois, o príncipe despertou na escuridão, pois um de seus olhos foi atingido pela espada do rei, assim como várias outras partes de seu corpo, e estava coberto por ataduras. O pai havia perdido o movimento do braço esquerdo.
A rainha ficou profundamente deprimida, mas ela sabia que os dois não poderiam viver sob o mesmo teto, aceitando, assim, o destino do filho. A ira e a ganância de Lohan precisavam ser detidas, senão o príncipe continuaria a ameaçar a vida do pai. A única solução viável era tornar impossível que o primogênito retornasse ao reino.
Então, foi decretado que o príncipe seria exilado, perdendo o direito ao trono.
Com isso, a rainha ordenou que uma de suas criaturas mágicas fizesse um feitiço para conter o filho irado. Explicou que não queria retornar a vê-lo enquanto ele fosse aquele monstro. A contragosto, a fada colocou o príncipe em uma redoma encantada, fora das terras do reino, mas deu a ele, em segredo, uma esperança. Havia uma forma de salvá-lo e seria encontrando a flor mais rara e bela já vista, a rosa negra, antes que o rei falecesse.
Aaron suspirou, passando a mão pelo cabelo preto e úmido devido à recente viagem sob a neve.
— Desde então, eu venho procurando essa rosa por todos os lugares e nunca a encontrei... até agora. — Com intensidade, o marquês olhou para Bela. — Vejo que está obstinada — proferiu o rapaz, desviando o olhar para a caverna. — Mas suponho que tal objeto é de igual importância para vocês dois. — Levantou-se e a ajudou a fazer o mesmo.
A camponesa respirou pesadamente e estreitou os olhos em direção à caverna, ponderando sobre a situação. Ainda havia muitas perguntas que ela queria fazer, mas a principal delas foi respondida antes mesmo que ela pudesse verbalizá-la.
Sem qualquer aviso, o príncipe perdido fez-se real sob a luz fora da caverna.
Lohan estava com um imenso chapéu sobre a cabeça, um Sat Gat¹ que tornava quase impossível ver seu rosto. Mas ele estava ali, em pé, trajando longas e folgadas peças de roupa em tons de bege, semelhantes a um hanbok².
— A boa intenção realizada pelo mau sentimento é como regar em excesso uma plantação, afogando a semente antes de vê-la brotar. Os seres mudam como as estações. Portanto, ao encontrar a rosa negra, também encontrará o equilíbrio, já que o maior poder de transformação é aquele que começa de dentro para fora. — Lohan parecia estar lendo aqueles versos, mas o livro que estava em suas mãos permanecia fechado. — Esse é o enigma por trás do feitiço e, nem que seja por um instante, eu quero acreditar que a rosa ilustrada na capa desse livro é uma chance real de eu recuperar a minha vida, o meu reino. Então, espero que entenda o porquê de eu não permitir que arranque essa esperança de mim.
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¹ Sat Gat (삿갓) é um estilo de chapéu que serve tanto para alguém esconder o rosto quanto para se proteger da chuva.
² Hanbok é um traje tradicional coreano.
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