Capítulo 32 - As duas faces do fogo
Ano de 1710, Inverno. Cidade Branca.
Finamente era o dia do exame. Para não me atrasar, acordei bem mais cedo, afim de limpar as mesas da taverna. Geralmente era a senhoria Ruth quem fazia isso, mas ela não estava se sentindo muito bem desde a última semana. Provavelmente tinha se adoecido por causa do frio rigoroso do inverno.
Com um sorriso no rosto, eu limpava a última mesa, fazendo movimentos circulares com o pano. Estava tão limpa que era possível ver meu reflexo em sua madeira escura. Eu quase não notei quando a porta da taverna se abriu. Um homem loiro, esguio e de olhos azuis, vinha até mim. Sir Erwin, um dos capitães dos cavaleiros.
— É um pouco cedo para beber, cavaleiro — disse a Sir Erwin, que tinha um semblante sorridente. Seus ferimentos em seu rosto já tinham sarado, mas podia-se notar algumas finas cicatrizes, as quais, sumiriam com o tempo.
— Não vim aqui para beber — respondeu o cavaleiro. — Eu vim até aqui para agradecer a você.
— Me agradecer? Pelo o quê?
— Por ter me ajudado naquele dia. — Ele sorriu de volta e andou até mim. Em seguida, se curvou em sinal de agradecimento. — Fico muito grato pela ajuda.
— Espera, não precisa se curvar, sério não foi nada demais — respondi, completamente sem jeito com a situação.
— A propósito, qual é seu nome, garoto? — perguntou Erwin.
— Me chamo Jack.
O cavaleiro retirou um saco pequeno de couro de seu bolso e colocou em cima da mesa. O barulho de moedas batendo na mesa, reverberou num som pesado. Franzi o cenho, sem entender muito bem o porquê daquelas moedas.
— Isso aqui é pelo inconveniente daquele dia. Pela mesa e toda a bebida derramada também. — Seu tom era firme e sincero. Ele realmente parecia estar arrependido. — Sinto muito por ter extrapolado naquele dia. Quando bebo, às vezes passo do limite.
— Isso é muito dinheiro, não posso aceitar — neguei, fitando o saco de moedas em cima da mesa.
— Então aceite por eles. — Erwin apontou para Hughes, que descia as escadas da taverna. Ele tinha um semblante triste por causa de Ruth estar adoecida. — Tenho certeza de que será de grande ajuda para eles.
— Nesse caso, eu é que agradeço Sir Erwin. — Também devolvi seu agradecimento, me curvando.
Ele acenou com a cabeça e se aprontou a ir embora. Parecia aliviado por ter feito seu pedido de desculpas, como se tivesse uma obrigação moral.
— A propósito, Jack. — Erwin parou em frente a porta. — A Sarah falou algo sobre estar treinando um garoto. É você, não é? Fico feliz de que ela tenha feito um amigo. Ela não é muito sociável e, saber que você faz bem para ela, também me faz feliz. Por isso, meus sinceros agradecimentos.
— Mas eu não fiz nada demais, na verdade, quem me ajudou foi ela. Se não fosse pela Sarah, eu não teria alguém para treinar para o exame de admissão.
— Exame de admissão? — Erwin franziu o cenho, um pouco pensativo. — Entendo... sabe Jack, vocês são muito parecidos.
— Como assim?
— Quando chegou aqui, Sarah estava completamente sozinha e conquistou tudo com seu próprio esforço. — Erwin chegou mais perto e colocou as mãos sobre meus ombros. — Para ela foi tudo mais difícil, por ser uma menina, muitos não a levavam a sério. Mesmo assim, ela não desistiu, continuou lutando e conseguiu alcançar seus objetivos. Vejo que você também se esforça tanto quanto ela e, com toda a certeza, conseguirá alcançar o que deseja.
Seu olhar parecia sincero. Nem mesmo aparentava ser o mesmo bêbado de antes, agora realmente se portava como um capitão dos cavaleiros brancos.
— Obrigado pelas palavras, Sir Erwin. — Devolvi um sorriso. — Farei o meu melhor.
— Nesse caso é melhor correr, Jack — disse Erwin. — Tem um certo limite de inscrições, se chegar atrasado pode perder a sua vaga.
Arregalei os olhos, assustado. Eu não sabia sobre aquilo. Olhei para Hughes, que meneou a cabeça em sinal de afirmação. Ele me soltou um fino sorriso, como se dissesse: "Vá logo, moleque!".
Passei por Erwin em disparada. O cavaleiro sorria de forma empolgada, como se ele acreditasse realmente em mim.
· · • • • ✤ • • • · ·
Minha visão se ofuscava em borrões coloridos, enquanto eu corria pelas ruas da cidade alta. Eu posso dizer que, nem quando eu me atrasava para o trabalho na oficina de Ludwig, eu corria tanto quanto corri naquele dia. Senti o suor escorrendo pela minha testa, e meu cabelo encharcando.
A corrida não durou muito, quando uma cena me chamou atenção. Uma movimentação estranha, na rua mais abaixo.
Três homens de aparência estranha conduziam uma mulher ruiva com um semblante assustado até um beco escuro. Não aparentava ser algo normal ou rotineiro. Provavelmente, pretendiam fazer algum mal àquela mulher.
Eu continuei correndo, não era da minha conta e não valia a pena perder o exame por algo que não me dizia a respeito. Sem contar que, estávamos na Cidade Branca, o lar dos cavaleiros. As ruas continham centenas deles, provavelmente algum iria aparecer e salvar a mulher daqueles homens.
Como eu era ingênuo.
Parei em frente ao beco escuro e fétido, recuperando o fôlego da corrida. A mulher e os três homens estavam ao fundo do beco, de costas para mim, sem notarem a minha presença.
Eu tinha voltado, não sabia o porquê, mas eu tinha voltado. Não era da minha conta, mas eu tinha voltado. Eu não deveria estar ali, mas mesmo assim eu tinha voltado.
Que idiota eu era.
Vendo mais de perto, percebi que a mulher tinha um cabelo de um vermelho vivo, lembrando uma mistura de sangue e chamas. Vestia uma capa vermelha que escondia seu corpo. Seu olhar também não era um olhar assustado, mas impaciente. Um dos homens segurava o braço dela, de forma brusca.
O homem tinha o braço repleto de cicatrizes e um semblante sombrio e feioso. Os outros dois homens não ficavam atrás, também eram bem feios.
Pelo visto, pareciam mercenários ou bandidos que escaparam de alguma prisão e buscavam se divertir com aquela mulher. Eu não deixaria outra crueldade acontecer na minha frente, como com aquela família. Eu jurei a mim mesmo que nunca mais ficaria parado, apenas assistindo, assustado e acovardado. Não importava se não era da minha conta, ou se eu perderia o exame. Eu não deixaria aquilo acontecer.
O bandido mais robusto e careca puxou a capa daquela mulher, revelando seus braços repletos de inscrições estranhas em forma de letras e símbolos. Aquelas inscrições me pareciam familiares.
— Nossa missão era apenas capturar você. — O bandido começou a desabotoar a calça, enquanto outros dois a seguravam pelos braços. A mulher não reagia, nem mesmo gritava. Seu olhar então encontrou o meu. — Mas antes, acho que irei me divertir um pouco. Não se preocupe, minha querida. Isso vai acabar logo, e você pode até mesmo gostar — disse o bandido, colocando a mão no rosto da garota, e seu dedão na boca dela, de forma nojenta. A outra mão dele, descia até o vestido dela.
Os outros dois bandidos arregalaram os olhos, quando uma pedra atingiu a careca daquele homem. O bandido perdeu o equilíbrio e caiu espatifado no chão com as calças arriadas. Os outros dois largaram a mulher e começaram a andar em minha direção. Um deles tirou um punhal da cintura.
— Não sabe com quem está brincando, moleque — vociferou o bandido com o punhal. Ele soltou um sorriso desprovido de dentes e veio correndo para me atacar.
O bandido tentou me furar com o punhal. Eu usei a técnica que Sarah me ensinou para desarmá-lo. Nem mesmo acreditei, quando o punhal agora estava na minha mão e ele desarmado. Aquilo tinha funcionado! Eu quase não escondi a felicidade.
— Muito bem — falei, fitando os dois bandidos, que agora pareciam assustados, me aproveitando disso. — Deixem essa mulher em paz, ou eu não vou ter piedade de vocês.
Eles se entreolharam e pararam por alguns segundos. Pensei que iriam começar a correr, mas não foi o que fizeram. Eles foram para cima de mim. Não me imaginaria matando alguém, por isso joguei o punhal fora e me preparei para ir no soco contra os bandidos.
O primeiro tentou me acertar com um golpe de direita, mas eu consegui desviar. Era incrível como eu estava bem mais rápido e conseguia ver seus golpes com tamanha facilidade. Todo aquele treinamento não tinha sido em vão.
Antes que eu tivesse tempo para pensar, o outro bandido também tentou me socar. Eu desviei do segundo soco, me abaixando e subindo meu punho no estômago do bandido. Antes que ele caísse, desviei de mais um soco do outro bandido e afundei meu punho em seu rosto. Ele voou com tudo contra a parede suja do beco.
Minha mão estava dolorida por causa dos golpes e eu arfava. Mas aquela cena valia a pena. Eu tinha salvado aquela mulher, e ver aqueles bandidos no chão, era uma sensação indescritível de contentamento. Eu olhei para a mulher, esperando um olhar de agradecimento.
— Atrás de você — ela apontou.
Senti uma pancada forte nas costas que me levou ao chão. Bati forte com a cabeça e tudo começou a girar. O primeiro homem que eu tinha acertado com uma pedra, tinha se levantado e eu nem percebera. Pensei que ele estivesse desacordado, talvez esse tenha sido meu maior erro.
Eu tentei me levantar, mas ele chutou minha costela, me jogando de lado. Em seguida, subiu em cima de mim e começou a me socar consecutivamente no rosto. Eu tentava desesperadamente evitar aqueles socos, mas ele era muito mais forte. Um soco atrás do outro, fazia minha visão ficar cada vez mais vermelha.
Ah... Depois de tanto me ferir, pensei ter acostumado com a dor, a verdade é que não.
— Você vai pagar por ter se intrometido nisso, seu pivete — urrou o bandido.
Ele colocou as mãos em meu pescoço e começou a apertar. Não conseguia mais respirar, senti o ar se esvaindo de meus pulmões. Eu tentava desesperadamente tirar suas mãos de mim, mas estava sem forças.
Enquanto eu desvanecia, uma voz familiar ressoava. A voz de Nara, dizendo aquelas mesmas palavras:
"Você é fraco. Apenas morra. Não há lugar para fracos neste mundo."
Minha visão se escurecia. Sentia minhas forças indo embora. Meu braço finalmente ficou leve e caiu, juntamente com minha vontade de lutar. A morte novamente ao meu encalço, e novamente, me vencia.
— Papai, um dia, quero ser um cavaleiro tão incrível como você.
Lembranças... Memórias de um tempo distante, na qual minha inocência era o meu único e melhor sentimento. Me lembro bem daquele dia. Eu e meu pai, assistindo ao pôr do sol, de cima de uma das torres do castelo branco. Me lembro de seu jeito imponente e ao mesmo tempo carinhoso. Como eu tinha orgulho de ser seu filho... E pensar que tudo isso se foi tão rápido quanto a minha inocência.
— Não Jack, você não será — ele me respondeu, fitando aquele horizonte, em uma mistura do branco da cidade e o laranja do céu.
— Como assim papai? O senhor não acredita em mim? Eu sou seu filho, é claro que serei tão bom quanto o senhor — retruquei, fazendo careta, bravo por ele ter dito aquilo.
Ele se virou para mim, se agachou e colocou a mão em minha cabeça. Em seguida, soltou um sorriso. E pensar que, aquele dia, seria a última vez em que eu o veria sorrindo daquele jeito.
— Você será muito mais do que eu um dia já fui e serei. Afinal, você é meu filho. E você será forte.
Meus sentidos voltaram. Aquelas palavras, aquelas memórias. Eu não sabia o que aqueles sentimentos queriam dizer e por que lembrei logo daquilo, mas eu sabia de uma coisa:
Eu não desistiria ali.
Minhas mãos subiram até a face do bandido. Enfiei meu dedo no olho direito dele com tanta força, que senti estourar em meus dedos. Sangue esguichou-se para todo lado. Ele me soltou, levando as mãos aos olhos e gritando de dor.
Você estava errada o tempo todo, Nara. Você disse que neste mundo não há lugar para fracos, mas eu ainda estou aqui. Eu ainda não morri. Não até eu te provar o que eu posso fazer.
O bandido tirou uma faca de seu cinto. Ele guinchava de dor e de ódio. Sua face rubra de sangue, tanto o seu quanto o meu, era de uma visão demoníaca. Eu tentei me levantar, mas minhas pernas falhavam.
— EU VOU TE MATAR! — gritou o bandido.
Mesmo com as pernas falhas e totalmente ensanguentando, eu me levantei. Preparei para lutar. Independentemente de como acabasse aquela luta, eu não o deixaria encostar um dedo naquela mulher.
— Nunca mais... — Tomei todo o restante de fôlego que eu ainda tinha para falar. — Eu nunca mais irei fugir!
Senti um calor vindo de minhas costas. O outro olho que ainda estava inteiro do bandido, se tornou em um olhar incrédulo e assustado. Ele caiu sentado para trás. Sua raiva deu lugar ao medo.
Eu olhei para trás e vi uma cena familiar.
A ruiva queimava em chamas. De seu braço direito, saíam labaredas de fogo, como se fossem asas de uma águia em plena caça. Seus cabelos em chamas, como a de uma tocha, em uma mistura de cores vermelhas, laranjas e azuis. Seu olhar imponente, era como se quisesse consumir tudo em sua volta.
Ela andou calmamente na direção do bandido. Ele estava totalmente paralisado, apenas assistia ela se aproximar. Os outros bandidos se levantaram, também assustados, tentaram correr. A mulher apenas afastou o braço, e um muro de chamas se formou na saída do beco.
— Vocês não sairão vivos daqui — disse a mulher.
— Tenha piedade, nós só estávamos seguindo ordens. — Os bandidos se ajoelharam e começaram a pedir clemência. — Por favor, a gente promete te deixar em paz.
— E assim irão — ela respondeu.
Um dos bandidos pegou o punhal no chão e a atacou, tentando pegá-la com a guarda baixa. A mulher apenas apontou com sua mão e a faca derreteu. Em seguida, pousou a mão sobre o rosto dele. Chamas começaram a implodir, em uma mistura de azul e laranja. O cheiro de carne queimada tomou o beco. Quando ela finalmente terminou, não restava nada no lugar de sua cabeça, além de cinzas negras.
O bandido sem um olho tentou correr, mas foi a vez de ele ser incinerado. Ele caiu no chão, gritando, enquanto as chamas o consumiam.
O outro bandido tentou saltar o muro de chamas, mas uma bola de fogo o atingiu nas costas, o incinerando também. Ele nem mesmo teve tempo de gritar.
— Zjarr! — gritei alto o bastante para que a mulher ouvisse. Eu estava recostado no canto da parede. Os símbolos, a cor do cabelo e o fogo. Era coincidência demais.
Ela se virou para mim e começou a andar em minha direção. Suas chamas reverberando em seu braço direito, formando uma espécie de asa, remetia a uma visão divina. Eu não sabia se ficava assustado com aquilo, ou admirado.
— O que sabe sobre ele? — ela perguntou.
— Eu sei que irei matá-lo — respondi, soltando um riso com dificuldade, devido ao sangue que saía de minha boca.
Ela levou sua mão até mim. Eu me preparei para o pior, provavelmente seria incinerado vivo também.
Suas chamas me cobriram, mas não sentia dor. Esperava que ser incinerado doesse, mas não. Na verdade, era aconchegante. Suas chamas, agora eram uma mistura de cores brancas e azuis. Elas percorriam todo o meu corpo, como um abraço. Senti minha dor indo embora e minhas feridas se fechando.
Quando abri meus olhos, a dor tinha sumido. Eu fiquei em pé. As mesmas chamas que tinham matado aqueles homens, de alguma forma, tinham curado minhas feridas.
— Você vai me contar tudo que sabe sobre ele — ordenou a mulher de forma impaciente. Seu cabelo e sua mão não estavam mais em chamas. —, ou eu vou te matar do mesmo jeito que fiz com eles. — Ela me segurou pela camisa, e uma pequena bola de fogo saiu de sua mão direita.
— Eu também tenho muitas perguntas a você — falei, fitando-a nos olhos.
— Parece que temos um objetivo em comum. — Ela me soltou, parecia um pouco mais calma. Estávamos prontos para começar a conversar, quando algo a desviou a atenção
— Jack? — Erwin apareceu na entrada do beco. Seus olhos percorreram a cena de morte. — Espera, quem é você?
A mulher correu até o fundo do beco. Erwin foi atrás dela, mas sem sucesso. Ela usou suas chamas contra o chão e subiu em um impulso até o topo da casa. Seu olhar encontrou o meu, era como se ela aparentasse querer tantas respostas quanto eu. Ela se virou e correu, sumindo por entre os telhados.
— Droga, mas que merda foi essa? — praguejou Erwin.
— Eu não sei — respondi, também impressionado com tudo que acabara de acontecer.
— Jack. Essa mulher matou esses homens? — Erwin parecia totalmente irado.
— Sim... — Olhei em seus olhos. — Se ela não tivesse feito isso, provavelmente eu estaria morto agora.
— Como assim? — Erwin fitou os cadáveres pretos como carvão. Alguns ainda em pequenas brasas. — Achava que bruxas do fogo não existiam mais. Por que eles estavam atrás de você?
— Eles estavam atrás dela. Eu acabei tentando salvá-la, mas acho que ela não precisava muito de ajuda.
— Entendo, pelas tatuagens e cicatrizes, me parecem mercenários, mas isso não muda o que ela fez. — Erwin examinava um dos cadáveres incinerados. — Preciso dar um jeito de encontrá-la. — Ele se virou para mim. — Jack, deixarei que vá para o exame, mas após isso iremos conversar e você contará exatamente tudo o que aconteceu aqui. Este é um voto de confiança que lhe darei.
Meus olhos se arregalaram. Eu tinha perdido muito tempo ali, e provavelmente não chegaria a tempo. Eu não teria outra opção, a não ser correr.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro