Capítulo 21 - O Cavaleiro Branco
Outro sibilo, e outra flecha passou cortando o vento, tão rápida quanto meus olhos conseguiam acompanhar. A segunda flecha acertou em cheio a mão de Grimes, o bandido mais esguio, quando ele tentou pegar Yllka como refém. O cavaleiro branco desceu de seu cavalo e começou a armar outra flecha em seu arco, mas Hollew, o bandido mais robusto, correu até ele. Hollew tentou estocá-lo com sua faca, mas o cavaleiro o desarmou, desviando e batendo seu arco com força na mão do bandido. Hollew se desequilibrou, em seguida, antes que pudesse perceber, levou outro golpe com o arco, dessa vez em seu queixo, caindo desnorteado no chão. Era incrível os reflexos daquele cavaleiro, sua precisão e frieza, como se calculasse cada segundo de seus golpes.
Grimes começou a correr na direção do cavaleiro com seu machado. Sem tempo para armar outra flecha, o cavaleiro simplesmente pegou uma flecha de sua aljava e lançou com as próprias mãos, perfurando o pescoço do bandido que caiu engasgando com o próprio sangue.
Só sobrava o bandido barbudo, ele levantou e soltou um olhar de assustado. As crianças choravam horrorizadas com a cena de matança, provavelmente era a primeira vez que viam alguém morrer. O bandido virou as costas e começou a correr, mas o cavaleiro friamente tirou outra flecha de sua aljava, colocou em seu arco e atirou, sem nem mesmo parar para mirar. Acertou em cheio a cabeça do bandido, fazendo com que caísse pesadamente no chão, como uma pedra.
Era incrível, o cavaleiro não parecia nem mesmo cansado, não tinha nem se sujado e muito menos usado uma espada. Eu ficava desacreditado com a habilidade daquele cavaleiro. Bashkim correu até ele, sua expressão de alivio era incontestável.
— Muito obrigado, meu senhor. Devo minha vida e de minha família a você — agradecia Bashkim segurando no tabardo do cavaleiro.
O cavaleiro o olhou fixamente com sua expressão fria e impassível, em seguida, olhou para a família do carroceiro e disse:
— Dois aurums de ouro, é o preço pelo serviço — respondeu o cavaleiro.
— Como? — perguntou Bashkim, sem entender muito bem o que acabava de ouvir.
— Está surdo por acaso? — O cavaleiro franziu o cenho, sua expressão parecia enojada. — Pensei que entendesse bem a minha língua, forasteiro imundo.
— M-mas senhor, nós não temos tanto dinheiro assim... — reclamou Bashkim, esvaziando seus bolsos. — Tudo o que temos está naquela sacola, no cinto do bandido caído. — Apontou para Hollew.
Eu não acreditava naquilo. Como podia um cavaleiro juramentado estar pedindo dinheiro por salvar alguém?
O cavaleiro andou até Hollew e procurou pela bolsa de moedas roubada. Em seguida, armou outra flecha em seu arco e finalizou o bandido inconsciente. Agim, quase soltou um grito, mas abafou a boca com as mãos. O cavaleiro começou a contar as moedas da bolsinha.
— Cinquenta armis de ferro e um arguis de prata? Está caçoando de mim, maldito forasteiro? — urrou o cavaleiro. — Levarei seus cavalos como ressarcimento, não são grande coisa, mas devem cobrir o restante.
— Por favor senhor, deixe ao menos um cavalo para que possamos chegar à cidade, tenho duas crianças, não posso andar com minha família nessa estrada perigosa a pé. Seríamos mortos por outros bandidos. A viagem ainda é longa, sem dinheiro e cavalos, certamente morreríamos — implorava Bashkim.
O cavaleiro se aquietou por um segundo. Bashkim olhava bem nos olhos dele, quando o cavaleiro simplesmente o deu um soco, jogando-o no chão. Yllka gritou e correu na direção do marido. Sangue escorria do nariz de Bashkim. Eu tentava me mexer, queria impedir aquilo, mas depois de ver o que o cavaleiro podia fazer, que chance eu teria contra ele? Apenas me sobrava rezar e esperar que ele os deixasse em paz.
— Como ousa olhar em meus olhos, seu ser desprezível? — cuspiu o cavaleiro.
Yllka, gritava em sua língua, parecia desesperada e se colocava à frente do cavaleiro. Ela segurava o tabardo do cavaleiro enquanto chorava. Sem hesitar, ele a pegou pelo pescoço, suspendendo-a no alto. Bashkim se levantou e tentou retirar as mãos do cavaleiro do pescoço de Yllka, mas o braço nem mesmo se movia.
Um estralo súbito, seguido de um silêncio. Os gritos de Yllka se cessaram. O cavaleiro simplesmente a jogou no chão, descartando-a como se não fosse nada. Bashkim correu até ela, chorando e falando várias palavras em sua língua, que eu não pude entender. O pescoço de Yllka jazia quebrado e seus olhos azuis, sem vida. As crianças gritavam e choravam.
Bashkim se virou para as crianças e gritou para que corressem, pelo menos foi o que pareceu ter dito. Agim estava completamente paralisada de medo, mas Besnik a pegou pelas mãos e se apressaram a correr. Eu comecei a me levantar, precisava ajudá-los, nem que para isso, eu precisasse dar minha vida em troca. Valeria a pena.
— Não Saia! — gritou Bashkim, sem olhar para onde eu estava. Eu parei na mesma hora, mordendo meus lábios de aflição.
Antes que o cavaleiro pudesse entender, Bashkim pegou um dos machados dos bandidos no chão e tentou atacá-lo. O cavaleiro pegou em seu punho, apertando, fazendo-o ajoelhar e largar o machado. Em seguida, usou a outra mão para dar outro soco. Parecia inútil lutar contra o cavaleiro, mas a estratégia estava dando certo, as crianças já estavam longe dele, provavelmente escapariam.
Mas eu estava errado.
O cavaleiro pegou o machado e jogou contra Agim, acertando seu pescoço em cheio. Tudo parecia ficar mais lento. Os gritos de terror de Bashkim, misturados com os choros de Besnik. O desespero do garoto tentando levantar a irmã em vão, enquanto Bashkim, tentava segurar o cavaleiro que armava mais uma flecha em seu arco.
Bashkim gritou.
Besnik, olhou para seu pai, e antes que tentasse falar algo, a flecha o perfurou. Bashkim guinchava, enquanto segurava o cavaleiro.
Bashkim caiu de joelhos no chão já com seu olhar distante e sem esperanças, totalmente inconformado com tamanha atrocidade. O cavaleiro começou a aprontar outra flecha em seu arco e puxar a corda. Colocou a ponta da flecha rente a cabeça de Bashkim.
— Amaldiçoado seja você, cavaleiro — proclamou Bashkim, olhando bem nos olhos do cavaleiro. — Você morrerá por sua própria espada, pelo seu próprio sangue. Eu o amaldiçoo por todos os deu... — Antes que terminasse sua frase, o cavaleiro soltou a corda.
— NÃO! — Eu não conseguia mais me segurar e gritei. — O cavaleiro olhou por cima dos ombros em minha direção.
— Vejo que ainda sobrou um cãozinho assustado à espreita — caçoou o cavaleiro, em um tom sarcástico. — Parece que hoje teremos uma caçada.
Corri para dentro da floresta. Novamente, a mesma cena se repetia. E novamente, eu não podia fazer nada a não ser fugir. As palavras de Nara ressoavam em minha mente:
"Você é fraco".
Um zumbido forte passou por minha orelha direita, uma flecha, acertando a arvore à minha frente.
— Vamos cãozinho. Corra bastante, pois não pode se esconder. — Ao fundo, o cavaleiro zombava, como se aquilo fosse algo empolgante para ele.
Outra flecha passou por mim, dessa vez acertando um galho, logo acima de minha cabeça. Por reflexo, me abaixei a tempo. Enquanto eu corria, sem saber minha direção em meio àquela floresta, o cavaleiro me seguia calmamente, como se fosse experiente em caçar naquele ambiente.
Galhos e espinhos cortavam meu rosto enquanto eu ia abrindo caminho entre a mata fechada. Continuei correndo até meu fôlego começar a diminuir, fazendo meu ritmo também cair. Outro sibilar de uma flecha, dessa vez passando de raspão pelo meu ombro direito, rasgando minha capa e fazendo um corte em minha pele.
— Eu estou vendo você! — bradou o cavaleiro. — O cãozinho já se cansou?
Mais à frente, uma luz. Parecia a saída da mata fechada. Continuei correndo na direção daquela saída até minha visão se ofuscar com a diferença de claridade. Ao alcançá-la, o alívio foi momentâneo, pois à minha frente não havia nada além de um penhasco. Olhei para trás. O cavaleiro, agora sem o seu elmo branco, com seu rosto a amostra. Olhos verdes, um cabelo negro e comprido.
— Parece que a caçada terminou, cãozinho. — Sua boca despontou um sorriso tão branco quanto a sua armadura enquanto ele tencionava a corda de seu arco. — Confesso que estou surpreso. Esperava que fosse um daqueles malditos forasteiros, mas agora vejo que não passa de um azarado que viu o que não devia. Infelizmente, minha caçada só estará completa quando eu matar até a última presa.
Ele começou a soltar a mão da corda de seu arco. Eu tinha visto o que ele podia fazer, sabia que não erraria. Então só me restava uma última cartada.
Pular.
Eu me virei para pular daquele penhasco, mas ele foi mais rápido. Uma flecha me acertou no ombro. Eu consegui pular, mas outra flecha já vinha em meu encalço, acertando minha perna direita.
Embora a cena já familiar, dessa vez não tive tempo de pensar, quando caí entre as árvores. Os galhos das árvores amorteceram minha queda, mas me cortaram por inteiro. A queda também não foi suave. Senti uma dor insuportável ao atingir o chão. A flecha em minha perna tinha cravado ainda mais fundo. Segurei o grito de dor, pois sabia que o cavaleiro estaria lá em cima observando se realmente eu havia sobrevivido à queda.
Eu me levantei, apoiando nas arvores próximas, caminhando com dificuldade, enquanto minha visão ia escurecendo aos poucos. Consigo me lembrar bem pouco do que acontecera em seguida, mas lembro-me que continuei andando até não aguentar mais, até que meu corpo parasse de responder.
· · • • • ✤ • • • · ·
Acordei subitamente com algumas gotas que caíam sobre minha testa. Eu estava encostado em uma grande árvore em meio a escuridão noturna da floresta. Meu ombro e meu peito latejavam de dor. Eu ardia em febre, provavelmente por causa das flechas em meu corpo. Eu sabia que deveria tirá-las rapidamente ou morreria.
Eu rasguei minha camisa com cuidado e coloquei em minha boca, mordendo-a com força. Em seguida, quebrei a flecha em meu ombro, sem hesitar um instante, para que não perdesse a coragem de fazer aquilo. A dor foi lacerante, mordi a camisa para não gritar.
Retirei a flecha de meu ombro e usei um pedaço da camisa como atadura. Então foi a vez da flecha em minha perna, dessa vez seria mais difícil. Por causa da queda, a ponta tinha adentrado bem fundo. A dor ficava insuportável a medida em que eu tentava arrancar a flecha da perna. Depois de muito sofrer, consegui tirá-la, mas já estava exausto. Minha consciência se esvaia, sendo levada junto com o sereno daquela noite. Caí para o lado exaurido e desmaiei.
Acordei algumas horas depois, ainda fraco e desnorteado, mas a febre tinha passado. Pelo visto, a atadura tinha funcionado melhor do que pensava. Me levantei, esperando sentir alguma dor, mas estranhei o fato de meu ombro parecer se mexer sem muitas dificuldades. Na verdade, a dor tinha sumido completamente.
Havia um grande lago azul cristalino logo mais à frente. Corri até lá e tirei as ataduras, e para minha surpresa, não havia nada lá. Apenas uma fina cicatriz branca no lugar do buraco da flecha. Meu ferimento tinha sarado em questão de algumas horas, como isso era possível? Me perguntei.
Ao olhar meu reflexo na água, levei um susto. Ele estava lá. O ser estranho de meus sonhos, com seu sorriso enorme e olhos esbugalhados. Como se ele fosse eu, e eu fosse ele. Eu dei um tapa na água, fazendo com que o reflexo se esvaísse. Quando a água começou a se acalmar, meu reflexo já revelava meu rosto novamente. Seria um sonho, ou era real? Perguntei-me. Aquele ser teria me salvado da morte? Mas quem era ele, e por que me salvara?
Me levantei, olhando fixamente para o pingente que brilhava em meu peito. Eu não tinha certeza, mas algo estava relacionado a ele. Eu o retirei, segurando firmemente em minha mão. Fitei o lago por alguns segundos. A paisagem tranquila, em meio a fina chuva daquela madrugada, me fez ficar relutante, mas tomei impulso e joguei o pingente no fundo daquele lago. Se aquilo era a causa de meus pesadelos, que seja, acabaria ali.
Dei as costas, peguei minha capa e comecei a andar em direção a estrada. Parei de repente, larguei minha capa no chão, tirei minhas botas e pulei no lago. Mergulhei durante alguns minutos até achar o pingente. Eu não sabia o que estava fazendo, mas não conseguia largá-lo. Era como deixar parte de mim para trás. Por mais que os pesadelos me atormentassem, eles eram parte de mim agora.
Eles eram a minha essência.
Caminhei durante aquela noite fria e chuvosa até a estrada. Foi uma noite bem longa, e ficou mais longa ainda, quando encontrei os corpos da família de Bashkim largados no chão da estrada. O cavaleiro não tinha nem se dado o trabalho de enterrá-los. Simplesmente os largou como se não fossem nada.
Não darei muitos detalhes sobre o restante da noite, pois nem eu mesmo me lembro muito bem. Só consigo me lembrar da chuva forte e incessante, e do quanto meus dedos sangravam enquanto eu abria covas com as minhas próprias mãos. Lembro-me da sensação de horror a qual eu sentira, como se fosse um gosto amargo em minha boca. O cheiro da terra, misturando-se ao da chuva, incrementava o gosto daquela noite. Talvez nem tenha sido a pior noite da minha vida, pois já passei por situações piores. Mas com toda certeza, foi a mais longa.
Ao clarear do dia, a chuva já tinha se cessado. Meus pés calejados doíam e minhas mãos em carne viva ardiam. Eu andava em direção a cidade, já totalmente exausto, encharcado e desorientado. Nem mesmo percebi, quando cheguei aos portões da cidade e desmaiei em meio a um estábulo.
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