Capítulo 1 - ''Que criaturazinha dramática, eu''
''Feche os olhos e contemple quão infinito todos somos''.
Abriu os braços. As mãos. Pisou na borda do precipício acertado por ondas. Gotas de água salgada e fria pintando-lhe roupas e pele.
Lágrimas a nascer no canto dos olhos.
— Eu amo estar viva! - gritou, riu.- Declaro, aqui e agora, que nunca morrerei! Me ouve mundo além mar?! Me escutam povo e bestas desta terra?! Minha morte acaba de ser definitivamente enterrada! Se contorçam de medo!
Gargalhou. Deixou-se cair de costas na grama. Demônio do sul. Ouroboros. Chifres longos, olhos púrpuras.
''O mal encarnado'', ''vil aberração', ''a cobra que devorará o mundo''.
''E a coisa mais linda a pisar nessa terra, sempre esquecem este último''. Quase foi diferente. Cinco dias atrás. Eles estavam vivos e não os mataria.
— Essa última parte foi meio preocupante - ele.
De pé acima e a frente dos cabelos negros dela. Jurandir, usando óculos sem lente. Uma camisa branca sob uma de abotoadura. Verde, aberta.
Ela riu. Fechou os dedos nas canelas dele. Depiladas. Tivera que amarrá-lo para conseguir.
— Isso foi eu sendo razoável. Seria muito cruel não avisar - contou. Jurandir não sorria. - ''Hahaha'' deveria soltar. O que foi? Não me contamine com sua tristeza.
O licantropo desviou o olhar. Castanho. Íris, fios. Orelhas lupinas erguendo-se as laterais da cabeça. Sem pelos como Enzo e lobos. Apenas a barba e o cabelo.
Olheiras negras. Odor azedo misturado a canela.
— Morreram há cinco dias. Por minha... - Jurandir, os lábios comprimiram-se. Olhos fecharam, face pendeu a esquerda.
Não. ''Minha culpa, o demônio com longos chifres''. ''Eu disse que estava tudo limpo e sai do casarão''. ''Os pondo a sós com aquela mulher que deixei meio morta...''.
O licantropo havia ido atrás de um pacote. Documentos do governo da cidade ''Semiramis''. A oni e mais dois terminavam de cruzar os cômodos em busca de remanescentes. Dos rebeldes que cometiam assaltos e sequestravam civis. Se alcunhavam de Chei de Sal e tinham a teoria que Enzo, um dos três governantes de Semiramis, era um imortal de mil anos. Que ele fizera as grandes crises econômicas ocorrerem intencionalmente.
Acharam-os, mataram quase todos. ''Matei, para ser mais preciso... minhas companhias só saquearam o lugar''.
Uma pirralha correra com o pacote. Segredos de estado. Cirilo não especificou. Talvez sobre Enzo ter oitocentos anos. Sobre ter guardado parte da colheita, enquanto dizia que estava estragada, trinta anos atrás.
A maga de quem arrancara braços e pernas também não morrera. No chão de seu aposento. No andar mais alto, no cômodo mais largo. Começara aquela manhã com a criatura com chifres abrindo-lhe a porta.
''Serviço de quarto!'' a oni pronunciara.
Ela, elfa negra, pôs-se sentada na cama. Tinha pele escura, marcada por tatuagens vermelhas. Caveiras atadas em correntes partidas. A expressão tensionou. Os olhos azuis e semicerrados fitaram a intrusa.
Que vestia macacão cinza, acoplado a calças e calçados. Com uma marca oval branca cobrindo a área da barriga e centro do peitoral. Mãos sob luvas dotadas de quatro largos dedos. E linhas negras desenhando três nos pés da roupa.
Manchada de rubro e pedaços escuros e claros de... carne? O coração da elfa negra acelerou duas batidas. Energia mágica expandiu-se núcleo a fora. Gotas de suor nasceram na pele, estômago comprimiu.
— Quem é você? - vociferou, baixo. Pondo as pernas a deslizar para o assoalho. Devagar. Fitar fixo na intrusa.
A oni sorriu. Girou de lado, esticou o tronco a frente e ergueu a bunda. Ornada com um semicírculo felpudo e branco. E sujo de carmim.
Deu um tapa nele. E deixou a mão pairando ali. No ainda quente de sangue rabo da fantasia. Dedilhando com o olhar a face da maga. O corpo despido e tenso dela.
A língua passeou entre os lábios. Deslizou sobre a presa direita. Gotas de excitação agitando-se no sexo.
''Que desperdício. Adoraria poder prolongar isto''.
— Coelho de Salomé. Não é óbvio? - as íris apontaram para cima, aos chifres sós além de seus cabelos negros. A boca torceu um desânimo caricato. - Bom, acabei perdendo as orelhas do traje no caminho.
— Saia - a dona do cômodo. As paredes, teto e assoalho moveram-se tenuemente. Apontando farpas de madeira e concreto rumo a intrusa.
''Oh, eu saí. Deixei-a desmembrada... e saí. Deveria ter sido uma criaturazinha mais desobediente''.
A elfa negra matou Laís e Patrício depois que saíra. Usando magia de dugeon que permitia manipular a estrutura do quarto. Depois encontrou seu último suspiro.
''A fiz encontrar, em nome da precisão do relato''.
Lábios comprimiram. Suspiro.
''Deveria tê-la mantida viva mais um pouco''. ''Arrancado os órgãos enquanto a pobre olhava impotente''. ''Drogando-a para sentir dor e não poder apagar''.
Sorriu. ''Que pena ter esmagado-lhe a cabeça imediatamente ao ver meus amiguinhos mortos, sou tão sentimental''. Bateu na grama a esquerda de si.
— Deite aqui comigo. É uma bela manhã em uma bela vida. Mas nenhuma delas tão bela quanto eu - encontrou o castanho das íris dele com seu lilás. - O quê? Tenho olhos para olhar em um espelho. Sou uma benção de cabelos negros, olhos purpura e um metro e cinquenta e sete de altura. Mais o extra de dois lindos chifres com manchas vermelhas no topo.
Jurandir deitou. Antebraços feitos de almofada. Próximo. Os chifres dela tocando-lhe os bíceps.
Ar entrou e saiu mais relaxadamente. Para a oni. Enquanto mar e vento cantavam.
— Você está me assustando, sabia? - Jurandir disse.
Virou de frente para o licantropo. Os olhos dele semicerrados, lábios em linha. Fitando o céu.
— Eu sou muito de um perigo. Olhe. - puxou a lateral da boca com dois dedos. Expondo caninos. A língua desceu até metade do caminho ao queixo.
Soltou. Jurandir descera o castanho na direção da oni sob roupas folgadas. Um quimono lilás de bordas negras, estampado com a silhueta branca de uma serpente. Aberto em cima de camisa alva sem mangas. Shorts negros com estampa de flores roxas.
Fedia a violetas. Álcool e mato.
— Quer tentar? Se bem que seus dedos são maiores... - segurou e puxou a mão dele. Jurandir praguejou ajeitando-se lateralmente. Chegou aos lábios dela. - Um só, certo? Mais e vou considerar como um lanche.
Obedeceu e esticou a boca da oni com o dedo. Ela não queria nomes há três dias. Dissera-o que não gostava mais do anterior. E que iria escolher com cuidado o próximo.
A língua esfregava o indicador. Saliva fazia sua descida por ele. Dentes encontravam a pele macia. Era quente.
Empurrou mais fundo. Observado pelos olhos lilases. A grama fazendo tênues coceiras na pele. E tirou o dedo.
Todo babado.
— Que nojento - Jurandir comentou e pôs às costas no chão.
— Ei, isso foi cruel! - a oni riu. - Leve meus sentimentos em consideração antes de falar.
O licantropo soltou um breve gargalhar e cobriu a boca. E descobriu soltando um ''huh...!'' caricato.
Vagabundo. Terminara de estudar administração e matemática há dois anos. Fugira da esgrima e magia. Se unira a oni maligna. Se unira a uma loira que vestia camisas pelo avesso e um elfo negro do tamanho de um urso.
Para correrem pelas ruas. Atrás de gangues. De monstros e cenas de crimes.
— Acho que peguei seus germes.
O chamara de ridículo quando Jurandir pedira para entrar no grupo.
Ele insistira. Fora uma manhã movimentada na rua do rio Fafa. Um carregamento de peixe chegara em longa canoa. Evento ocorrido com intervalos de trinta dias. Pessoas subiam e desciam. A pé e em montarias nas ruas, em barcos menores no rio. Para comprar a mercadoria que venderiam na feira três dias de caminhada dali. Ou para consumo.
Eram animais exclusivos do mar. Chamados ''sargentos salgados'', de cor negra e tocado por estrelas amarelas. Pesavam em média um quilo e eram vendidos por cinco ex de bronze cada. Preço de mercadoria que sobrou das vendas de exportação nas docas.
— Eu só... quero ser um jovem idiota um pouco! Por favor!
O trio encarou o licantropo. Com suas orelhas lupinas em pé, as sobrancelhas erguidas. Cauda balançando da esquerda a direita.
— Não somos idiotas - a oni respondeu. Estavam de frente ao casarão cinzento. Com manchas negras sobre os tijolos e telhas. O teto da varanda segurado por duas colunas marcadas por rachaduras. A passagem do vento fazendo a estrutura chiar, a luz matinal refletida pela janela riscada.
— Isso! Somos muito idiotas! - Laís, erguendo o punho com o polegar para cima. Mãos marcadas por pequenas feridas de costura. Vestia uma camisa amarela de tecido fino e mangas longas. Short escondido sob a aba dela.
O elfo negro e a criatura demoníaca a fitaram. Fitaram um ao outro. Fecharam os olhos.
— Bom... dois de nós não são. - refez sua resposta inicial. O elfo a encarou. Ela retribuiu. ''O quê?'' murmurou. ''É que você vendeu treze litros daquele 'negócio' por um ex de bronze e comeu aquela moça rica''. ''Ah'' respondeu e tornou a Jurandir. - Um de nós não é.
— Qual? - a garota em amarelo perguntou sobre o ruído das vendas no outro lado da via. As íris castanhas indo do lilás da oni ao azul de Patrício.
Jurandir deu um passo à frente. As sobrancelhas pressionaram os olhos castanhos. Tinha uma larga cintura e barriga ligeiramente proeminente. Cabelo penteado para trás.
— Eu não sou idiota! - contou. Mão caindo sobre o peito.
''Tá'' Patrício vestindo macacão sem mangas, com uma mancha rosada começando no lado esquerdo do pescoço e terminando no canto da boca. E a oni com puída blusa branca e quimono vermelho atado a cintura.
Faces neutras.
Laís deu um passo à frente e pousou a mão no ombro dele.
— Parabéns! Bom trabalho! - ela disse, tom amistoso. A mão subindo e descendo no licantropo.
— Posso colaborar!
— Você pode acabar morto. Ou preso - Patrício, timbre austero falado do alto de seus dois metros e meio de altura. O sol delineando os cabelos escuros e a marca de queimação química na garganta. Ele voltou a íris a oni por um instante. - Ou pior.
Ela o cutucou no quadril. ''O quê?'' o elfo perguntou. ''Pior?'' a pequena criatura. ''Estou mentindo? Ainda lembro do Fred três dedos'' ele murmurou. Ela ergueu o dedo indicador, ''Ah, mas... hmmmm...'', baixou a mão, ''...''.
— Eu não ligo - Jurandir, empurrando Laís para o lado pela cabeça. Os braços da humana mestiça balançando. Pés rumando na direção do licantropo que a impedia de conseguir o agarrar. - Vamos agora investigar um crime! Bater em bandido! Ou... o que mais fazem?
— Esse cara é da polícia, né? - a oni para Patrício, cruzando os braços. Cabeça pendeu e virou de leve em sentido ao grande homem. Olhos fixos no licantropo.
— Certeza - o elfo respondeu e repetiu o gesto. Pálpebras um pouco baixas.
— Eu tenho dinheiro!
As sobrancelhas do trio subiram em sincronia. Laís parou e pôs-se ereta. Cabeças no entorno da canoa com peixes de baixo custo viraram para eles.
A oni e o elfo fitaram mãos abrindo e fechando do outro lado da rua. Dedos indo a algo escondido sob camisa. Olhos deslizando pelas costas sob tecido xadrez do licantropo.
''Esse cara já era, pensei na hora. Estava até prestes a verbalizar uma despedida... mas Laís foi mais rápida ''.
— Eu sou burra, ele é grande e ela é má! - a humana mestiça em voz alta. Então abrindo um abraço. - Seja bem vindo, Juvenildo! Meu amigo do peito, irmão camarada! Coisa mais linda desse mundo!
— É Jurandir.
A oni chutou-o para dentro de um canil na segunda semana de convivência. Na primeira atirou ele no rio.
No trigésimo dia o vendeu para um casal de idosos. Queriam um prostituto. E a criatura demoníaca forçou-o a desempenhar o papel. Sabia quem eram os pais dele e conhecia o avô.
E o dera um punhado de outras provações. E já planejava dezenas mais... até que Laís e Patrício morreram.
O lábio bambeou por um momento.
Apoiada no peito de Jurandir cujos membros superiores pairavam as laterais. Encarando as íris além das olheiras. O odor de suor a entrar pelo nariz. ''Você é o próximo?''. Apertou-o contra si.
Para que ele não caia nas vias da vida e morra.
O semblante dele tensionou acima. Ela sorriu abaixo.
— Por que tão sério? Se for pelos germes, posso pegar um pouco de volta - beijou a garganta de Jurandir. Lentamente arrastando-se para cima. Tocando-lhe a barriga com a mão esquerda. A direita contra o solo ao lado das costelas do licantropo. - Talvez mais que um pouco... e mais que germes.
Parou a face dela com a palma da mão. Quente. Cobrindo quase todo o rosto.
Vendo-o pelas frestas dos dedos. Castanho e pele de fraco tom de bronze. Quis saber quando o veria morto. Fedendo a decomposição.
Punhos fecharam. Pálpebras subiram por completo.
''A qualquer momento''. Frio, torcendo seus órgãos. ''A vida é algo incrivelmente frágil''.
— Eles morreram há cinco dias. E está agindo normalmente. É isso que está me assustando - licantropo. Baixo e claro.
A boca da oni uma linha. ''Deveria afundar minha mão em seu peito''. Pôr o coração dele entre os dedos. E então na boca para que siga ao estômago. Sorriria feliz. Certa de que já passara. Que ele já morrera e não havia mais o que fazer sobre isso.
Deitou a bochecha sobre a garganta de Jurandir. Olhos fechados. Grama tocando-lhe os membros inferiores. Tronco sobre o tronco dele.
— Que razão mais boba para estar com medo - falou. Seguido de curto riso escapando como ar.
— Só me diga que sente a perda deles... para eu saber que se importa - calmo, distante. Deslizou o dedo pela boca do homem. Ergueu-lhe a ponta.
— Se eu disser será verdade. Se for verdade vai doer. Não sou fã da minha própria dor, obrigado - respondeu e deu dois leves tapas na testa do licantropo. ''Ai'' ele deixou escapar e a mão foi para frente da cabeça. - E agora é oficialmente meu travesseiro. Fique quieto, bons travesseiros não falam. Deixarei passar a sua falta de maciez.
O ar quente do suspiro de Jurandir tocou-lhe a nuca. Estava em posição diagonal para não empalá-lo com os chifres. Desconfortável.
Em três minutos silenciosos de qualquer coisa que não mar e vento e batimentos cardíacos... adormeceu.
Patrício mexia a panela com uma grande colher de pau. Alto, rechonchudo. Laís cortava legumes. Baixa, cabelos longos e amarelos. Atrás do balcão. Em um restaurante com pedaços espalhados pelo piso. De mesas, cadeiras. Cacos de vidro, restos de arroz e carne, manchas de vinho.
Estava sentada no banco próximo ao balcão. Jurandir bebia a sua esquerda trajando um vestido verde e óculos escuros gigantes. Sem pessoas caídas no assoalho.
Apoiou a bochecha no punho. Aquele sonho não estava se esforçando para imitar a realidade. Uma banda começou a tocar em um palco na extremidade esquerda do salão.
''Cinco dias em um''. Melodia lenta, letra sobre uma sequência de perdas de uma mulher fugindo da Cidadela.
E a comida de Patrício. Vivo seus pratos eram capazes de matar um homem, morto... não se atrevia a imaginar. As rodelas cortadas por Laís eram grandes e irregulares.
Rezou para não acordar. Comida e música ruins eram um preço pequeno. Já tentara pescar e continuou sã. Poderia sobreviver ali. Onde continuavam vivos o gigante elfo negro versado em alquimia, a humana loira especialista em droga nenhuma... exceto costurar e pechinchar.
Mas os olhos abriram para nuvens em um céu alaranjado. Grama e ondas atingindo pedra. Um vazio infinito. Preenchido por um infinito de coisas. O mundo dos acordados e dos mortos que continuam mortos.
Mas ainda vazio. A mão caiu sobre o peito abaixo do fim de tarde. ''Talvez seja só aqui''.
''Embora o coração ainda soe''. Riu. ''Que criaturazinha dramática, eu''.
Suspirou. O bardo no sonho tinha chegado na parte onde a protagonista torcia o tornozelo. Que seria seguido da criança que trazia no colo sendo arremessada ao chão coberto de destroços afiados.
''Que sonho mais feliz...''. Risada oca. Tão verdadeira quanto sonhos e a vida dos mortos neles.
Estava só. Abaixo de céu e acima do inferno.
Chorar. Gargalhar?
Sentou e gotas de água tocaram-lhe o rosto. Lágrimas. Não suas. Mar arrebentando contra a encosta.
Ruído de onda contra terra. De ventanias. Risos. Dela. A oni em silêncio.
Ergueu a mão na direção da linha do horizonte. Aberta. Marcada por linhas próprias.
Se pudesse escolher um objetivo com qual encerrar a vida... qual seria? Se pudesse agarrar o horizonte conseguiria receber a morte com um sorriso?
Fechou o punho.
Muito longe. Assustadoramente longe. Da linha e da resposta.
Jurandir a chamou. Balançou um aceno para ele sem virar-se. A boca foi percorrida por um tremor surgido no peito. Medo.
Iria morrer tão subitamente quanto Laís e Fabrício. Sem ter sentido qualquer nível de satisfação com a vida que teve. Sozinha.
Expirou e inspirou. Cinco, sete, treze vezes.
Até levantar e o encontrar ao redor de uma mesa de pedra. Coberta com toalha xadrez vermelha e branca. Comendo um sanduíche de peixe.
Barriga, sob a blusa branca, doía. Pernas pesavam. As bordas e mangas do quimono roxo balançavam marcadas pelo laranja do crepúsculo.
Dez passos da encosta e a esquerda de uma árvore solitária. Folhas rosas e tronco alvo sob finais de luz. Ele fedia a mato e mar. O bronze da pele e castanho dos cabelos e íris intensificados. O porte beirando entre atlético e magro.
Sorriu enquanto dedilhava Jurandir com o olhar. Mirrados fiapos de excitação escapando do frio no estomago.
Sentou no colo dele. Que resmungou e empurrou-a pela testa. Agarrada com a mão esquerda no ombro dele, não saiu. Jurandir não fez a tentativa durar.
Os lábios dele abriram para dar passagem.
E o dedo da oni subiu e os encontrou. Impedindo o que quer que fosse. Palavras de certo.
— Bem cruel da sua parte me deixar dormindo naquele chão frio - calma. Ele fez o sanduíche pela metade pairar sobre o prato. Sobrancelhas ligeiramente arqueadas acima das íris castanhas. - Não me deixe só. Posso acabar perdida... ou bem perdida. Lembra da festa na casa daquele elfo caolho de cento e quinze quilos?
"Eu sou gay, ele é preto e nós viemos trabalhar!" dissera alto na ocasião. Pondo olhares das pessoas na fila atrás de Patrício a buscarem-na.
Era noite, trajava vestido negro com decote descendo até quase despir umbigo. Luvas compridas de renda que iam da palma a metade do braço. O segurança da festa arregalara os olhos. Erguera as mãos próximas ao peitoral, palmas voltadas a ela.
— Senhorita, por favor... - começara.
A oni pousou uma mão no peito, outra na coxa sobre calça de Patrício. O elfo negro, um passo a retaguarda dela, cruzou os braços. Fediam a hortelã e limão. Tinham exageradas expressões de ''nunca fomos tão ofendidos''.
Laís e Jurandir observavam e trocavam murmúrios atrás de ambos. Dividindo um pacote com amendoins e uma garrafa de vinho branco. O restante da fila parara subitamente seus diálogos. Várias cabeças esticando-se para enxergar o súbito elevar de tom.
— Eu como buceta no café da manhã! Sou considerada referência entre especialistas em buceta! Quase fui afogada por algumas! E... - as íris lilases percorreram o terno do segurança, o rosto marcado por olhos azuis e longas orelhas. As colunas pálidas sustentando o telhado alvo da varanda. A iluminação laranja de pedras de mana cortando breu. O colar dotado de ametista que ela mesma trazia no pescoço. Até voltar a face do homem careca. - Ele é muito preto!
— Deveras negro - Patrício completou, firme e claro. - Sem pegar sol.
— Cem por cento natural! - a oni, dando dois tapas sonoros na coxa dele. - Uma besta sagrada! Aquela mancha rosada ali no pescoço dele?! Aquilo é porra de dragão!
O elfo negro tensionou a face de leve. ''Quase podia ouvi-lo dizer: 'quê? Calma lá'. Hahaha''.
— Olha, eu realmente não posso... - o segurança, desviando o olhar para direita. Duas gotas de suor descendo pela testa. Timbre baixo, quase trêmulo.
Avançaram a entrada na esquerda do homem. Passos rápidos. Firmes.
O segurança ergueu a voz, girou até eles. Mão subiu até a gola do blazer de Patrício.
— CUIDADO! - Laís gritou. Estridente, urgente. Arrepios de agonia adentraram as orelhas mais próximas. Jurandir pôs as mãos na cabeça, se agachou de leve, e soltou um caricato som de susto. O segurança parou. Desviando o olhar, em um quase espasmo, para trás. - UM POMBO QUE AVOA PASSO AQUI AGORA!
''Eu e Patrício desaparecemos palácio adentro. Bebemos, confraternizamos com um monte de pessoas ricas. Conhecemos Zaus, um elfo usando tapa-olho e pesando centenas de quilos. Ele falava sobre navios, sobre um projeto que tinha para construir um capaz de se afastar do continente. Depois acabei me perdendo em meio a camas... a pessoas boas e ruins nelas. Algumas viraram comida ''.
— Lembro de ficar do lado de fora porque você perdeu os convites - Jurandir após afastar o dedo da oni de sua boca. Encarando a face capaz das mais doces e das mais cruéis torções. Cheirando o odor de mato atado a pele dela.
Olhos rumo a olhos. Fechou os próprios. E pôs o sanduíche contra os lábios da criatura em seu colo.
— Calada você é uma poeta.
Ela fez a comida sair da frente com um pender de cabeça.
— Foi um desperdiiiiiiiiiício de cena romântica - a oni avisou, esticando um sorriso no rosto cor de cobre dele com o indicador. - O que houve com o calar com um beijo? Perdeu meia dúzia de pontos na minha escala de pessoas de estima.
— Isso não tem graça - ele fechou a expressão. Ela sorriu.
— Nada terá com essa atitude - pressionou a parte debaixo do maxilar de Jurandir. Coberto por barba rala e castanha. O pôs o queixo a subir. Lilás deslizando pelo pescoço, pelas veias. O pomo de adão dele foi acima e abaixo. O estômago da oni demandou alimento. A genitália umedeceu. - Repita comigo: prometo solenemente não fazer nada de tedioso. Vamos, te darei uma recompensa muito prazerosa. Você soltará doces gemidos, garanto.
Sanduíche contra a boca da mulher demoníaca. Sobrancelhas subiram sobre olhos púrpuras. As mãos dela foram erguidas e Jurandir pôs-se de pé. Deslizando lateralmente do banco.
Caiu sentada na pedra, sanduíche na mão. Dentes de cima chocaram com os de baixo. Água ameaçou subir aos cantos dos olhos.
Estava se afastando. A evitando. Dizendo que não a queria. Lembrando-a que estava sozinha para todo o terror do vazio.
''Por que?!'' preso na garganta. Quente.
— Qual o seu problema?! - ela deixou sair. Sobrancelhas pressionando as íris. O ar balançando e terra tremendo sob o escapar de energia mágica. - Apenas esqueça, droga! Acabou, já era! Aceite e dê a merda de um passo adiante seu lixo de homem...! - dentes cerraram-se, punhos pairavam fechados sobre o banco. Afundando na pedra. O pão e pedaços de peixe triturados entre seus dedos. - Ou morra como eles.
Arfava. No banco frio e rígido. Manchada por iluminação quase rubra do final da tarde. Sombra da árvore marcando-lhe metade traseira do corpo. Folhas rosadas caindo e sendo esfareladas pelas violentas partículas de energia emitidas.
Tênue vermelho propagava-se na face dela, ligeiras veias nas bordas e mãos. A falta de um sorriso, a falta de um toque caricato.
Jurandir nunca a vira com nada parecido no rosto. Toda raiva era zombeteira e frieza, toda malicia sorrisos. Mas aquilo... o licantropo respirou fundo. Com semblante imóvel, lábios quietos, esperou.
O lilás o fitou. Enquanto rachaduras surgiam na terra e mesa e banco. Enquanto as bolsas atingiam o chão e os talhares e pratos e copos se aproximavam de mesmo destino.
A morte encarnada teria roubado a cor de Jurandir mais lentamente. Uma faca pressionada em sua garganta teria feito o fim menos certo.
Então pálpebras desceram sobre o púrpura. O cenário tornou ao som de mar e brisa. A imobilidade.
As mãos da oni subiram as coxas, devagar. O semblante relaxou.
— Desculpa. Pensei que não se importava - o licantropo, um tom mais alto que murmúrio.
A oni atirou o prato mais próximo nele.
O tronco de Jurandir inclinou em um movimento súbito. A porcelana passou, relando-lhe a bochecha, e caiu no mar.
Um traço vermelho. Gemido abafado sob dentes cerrados. Acima de grama, a frente de mar e abaixo de céu.
— Só cale a maldita boca e finja que isso é a droga de um conto erótico tosco - ordenou para o homem num mundo infinitamente maior que ele.
Que a encarou. Mão acima de corte. Testa enrugada por tensão.
— Não. Isso doeu.
— Sério? - braços abertos, palmas segurando uma massa de incredulidade vinda de cima. - Por que?!
O fitando. Desesperada. Sozinha e incapaz de diferenciar cima de baixo. Esquerda da direita.
Diante dos próprios olhos. Então viu. Era risível.
Após segundos de silêncio, riu.
— Você está destruindo minha auto confiança com toda essa rejeição... - comentou com o tronco dobrando para frente e mão no rosto. - Que saco, não sabia que estava viajando com um eunuco. Não pode ao menos me emprestar seus dedos?
Gargalhou quando Jurandir balançou um ''não'' com a cabeça. E ele a acompanhou nisto.
Comeram peixe e pão com cerveja preta.
Horrível. Carne de homem ou mulher. Ou teria um tempo ruim à espera de sua língua.
A bebida era boa.
— Vamos a borda do continente pelo Paraíso Gelado? Aquele careca do Ishun diz ser impressionante. Flores de gelo, lampejos do futuro pintados no céu à noite, feras falantes e cavernas cheias de histórias perdidas após a queda dos Ortos e Sun Tzu. Água negra, sereias, árvores que emitem calor. Não soa divertido?
Ele estava deitado no banco de pedra. Largo. Uma dura cama. Travesseiro feito do saco de dormir.
A oni sobre sua barriga. Quimono roxo fechado e olhos púrpuras tornados rumo à lua.
— Não quero. Chame esse humano... Ishun? O Hozoin Ishun?
O fitou de esguelha. Migalhas de pão pontilhavam as bochechas do licantropo.
— Vou te bater. Está estragando meu bom humor. - acertou o peito dele com o punho fechado. Fraco. - Então o que, Jurandir de tão difícil agrado, deseja?
— ... silêncio seria bom.
Desviou o olhar. Os dedos da oni rodearam o copo na mesa e tornaram a bebida na boca.
— Desisto - falou. Pernas cruzadas. O subir e descer do peito dele erguendo e baixando-lhe o canto do joelho. - Nunca mais te convido para viajar.
As pálpebras do licantropo subiram.
— Sério? - animado.
''Haha'' entregou a ele curto e seco.
— O engraçadão. Se eu sumir vai derramar rios pelos olhos.
— Mares, claro, certamente. Vamos testar? - a cauda dele remexeu-se sob a bunda. Curta, castanha e lupina.
— Haha - apertou o mamilo do licantropo. Jurandir gemeu. Pediu desculpas. Para parar. Empurrando a mão da pequena mulher com ambas as suas. - Tá, tá.
Soltou. Massageou.
— Eu gosto muito de você, sabia? - A oni disse.
Um cristal branco cortando o breu. No meio da mesa de pedra coberta por dois pratos, três mochilas. Uma cesta de piquenique ao lado. Frações de luz refletidas pelo vidro das duas taças.
Álcool e peixe. Vociferar do vento e ondas.
— ''Sou irresistível'' - Jurandir a citou. - ''Tem a honra de poder aproveitar a minha companhia''.
— Começo a achar que é mais agradável quando é rabugento - murmurou. Sorriu. Se esticou até meio mindinho de um beijo do sujeito com orelhas lupinas. Íris enchida pela visão de íris. - Acho que me deve alguns germes.
— Será?
— Bom, vou te beijar de qualquer maneira, então não importa de verdade.
— Ah, estou sendo estuprado - exclamou caricato. E as bocas encontraram-se. Seguidas de língua e saliva.
Saciaram a libido um do outro até que dormissem. Quando acordou, ele continuava ali.
Mas continuava só.
Havia colocado a camisa de abotoadura verde de Jurandir. Ar entrava pelas mangas folgadas e pela borda inferior. Sol fincado no alto, terra no baixo. Mar, horizonte e futuro em seus devidos lugares.
Destruir tudo aquilo. Matar tudo que ousar existir. Seria um bom final, certo? Grandioso e barulhento.
Sem sentido e oco.
Olhou para o licantropo deitado. Ele tinha a boca aberta, olhos fechados. Saliva descendo até o queixo. O short negro da oni na cabeça a única veste em si.
Família. Dezenas de filhos. Centenas de netos. Inúmeras pessoas para amá-la e abraçá-la todos os dias.
Jormungand Ouroboros? A oni que rejeitava este nome era um demônio. Amava carne de humanos, licantropos, anões, elfos, vampiros. Amava os ver gemer de dor. Expressar terror.
Odiara não ter sido quem matou Patrício e Laís. Detestara não ter os comido ao achar seus cadáveres.
Fechou os olhos. Breu que não estendia-se além das pálpebras.
'' Baixa as pálpebras e verá. Somos infinitos'' dissera Takezo. Um velho bêbado da cidade dos humanos.
Um maldito mentiroso.
De olhos fechados continuava tão terrivelmente pequena quanto com olhos abertos.
Quis chorar e voltar para casa. Vê o rosto duro da mãe, os olhares orgulhosos, quietos e desdenhosos dos irmãos, tios e primos. Arranjar um marido qualquer, ter alguns filhos e morrer dentro de muros escuros. O réquiem da vida que repete-se desde sua bisavó e antes. Desde os primeiros membros da família dos demônios de longos chifres e olhos lilases.
A cabeça pendeu para trás. Uma risada escapou.
''Nem que eu tenha que comer minha própria merda''.
— Surenc-cio... - murmurou Jurandir de seu sono.
— Então o que eu quero? Mais sexo, mais lugares lindos e estranhos? Mais criminosos? Monstros? Mistérios? - comentou em voz alta. O lilás fitando de canto a tensão no nariz do licantropo. - Eu quero um cachorro. Mijar no topo de uma montanha. Pintar alguma janela do Grande Templo dos elfos com sangue élfico... nossa.
Os olhos se arregalaram. Era tudo estúpido.
— Exceto o último, definitivamente arranjariam espaço para comentar nos livros do meu insulto ao templo daqueles orelhudos. Embora não possa deixar saberem que fui eu se quero viver para mais algumas heresias.
Apoiou a bochecha no punho. E quem conseguiria matá-la? Se lutar não houvesse se mostrado um meio fraco de divertimento faria como Yagyu Sekishusai. Sairia por aí espancando pessoas fortes para aperfeiçoar a capacidade de espancar pessoas.
Ser chamada de invencível, montar uma escola de esgrima e ensinar alguns perdedores a balançarem suas espadas.
— Talvez eu faça isso. Poderia deitá-los na porrada, então fodê-los e depois devorá-los.
''Ha''. Até que aquilo soava bem. Sua mãe torceria o nariz. As pessoas normais a desprezariam. Seu último amigo se afastaria.
Mas soava bem.
— O que acha, Jurandir de tão difícil agrado?
''E-eu n-num vô... abaia''.
— Sensato. Deveria conversar com você enquanto dorme mais vezes - acertou um tapa na perna dele. O licantropo se contorceu sobre a grama. Soltou alguns gemidos. Não acordou. - Eu deveria conhecer mais coisas. Ver e experimentar mais. Sei tão pouco...
A boca pendeu aberta por um momento.
— Nunca aprendi a tocar nenhum instrumento. Nem fiz parte de um grupo de pantomineiros. Não sei como funciona o corpo de uma pessoa além do banal - fez a mão direita cair sobre o peito. - ''Se o problema é um copo vazio, o preencha''.
O coração ficou leve. Tinha uma infinidade de coisas para conhecer. Prazeres a descobrir. Pessoas a matar.
— O quê? - encarou Jurandir. Esticou o tronco e abaixou o short que pairava na cabeça dele. Até cobrir os olhos. - Devia experimentar a carne de alguém recém morto antes de me julgar. Enfim, isso não é o importante.
''Abaia... vrag-gabrun-do...'' murmurou o licantropo e abanou o ar a frente do rosto.
— ''Eu quero conhecer todos os prazeres e belezas desse mundo''. Eu sai de casa pensando exatamente assim. Ou quase. Me pergunto em que momento desses cinco anos esqueci. ''E então morrer''... mas prometi que não iria agora pouco, não foi? Que pena para todas as criaturas vivas.
Gargalhou e acertou a coxa de Jurandir.
— Por onde começar? Pelo cachorro? As montanhas mais próximas estão bem longe e a cidade élfica ainda mais... acho que tinha um flautista na vila de pescadores lá atrás. Podia começar por aprender a tocar flauta. E comer o flautista.
Risada cortou o ar.
— Vamos, músicos tem uma carne boa. Como eu poderia resistir? - encarou o mar, a grama que cobria o solo até a encosta. O infinito onde céu e água encontravam-se. Acertou o solo com ambas as mãos. - Ah! Não consigo mais ficar aqui parada! Não vai acordar?
Sem resposta. Além de um outro balbucio sonolento.
Pôs-se de pé. Pegou as roupas, exceto a que Jurandir usava na cabeça, e, após vestir sua roupa íntima e calças largas demais dele, colocou o restante na mochila. Agarrou também a outra bolsa.
E foi embora. Para trás um licantropo nu com um pequeno short preto sobre os cabelos.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro