Desenterro
No nono dia de visitas ao túmulo, Jasmim se sentou sobre ele e começou a chorar. De repente uma mão com unhas negras tocou seu ombro, mas isso nem a fez erguer a cabeça.
— Vejo que você gosta daqui tanto quanto nós! — disse a mesma moça que Jasmim havia abordado anteriormente.
— Parece que gosto mesmo. — respondeu Jasmim e se apresentou, numa tentativa de ser amigável apesar de estar com um estado de humor vegetativo.
— Me chamo Violeta. — A moça se apresentou e as duas sorriram ao se reconhecerem como flores.
— Quer tomar uma bebida com a gente Jasmim?
Apesar de não gostar de bebidas e realmente não estar no clima para confraternizar, o convite foi aceito.
Jasmim sentou-se no chão, encostada em um túmulo, rodeada por oito adolescentes que tinham entre dezesseis e dezenove anos.
Jasmim bebeu até ficar alegrinha e logo se sentiu enturmada. Aquilo havia sido a melhor coisa dos últimos anos, fazia tempo que ela não ria, nem brincava e se divertia.
Quando então Jasmim, sendo muito perspicaz e não perdendo seu foco central, teve uma ideia deslumbrante.
— Vamos jogar o jogo da garrafa? Em quem a garrafa apontar terá de responder uma pergunta ou cumprir um desafio. — sugeriu Jasmim, cheia de segundas intenções.
Todos curtiram a ideia e foram jogando animadamente, até que o momento oportuno chegou!
— Você já beijou algum homem? — perguntou Jasmim para Renan de dezenove anos, o mais velho.
A resposta era muito óbvia, mas ele não quis confessar, era aquele tipo de situação que todos sabem mas ninguém comenta.
Então Renan teve de pagar um desafio, Jasmim possuída pela sua obsessão, olhou nos olhos dele e o desafiou.
— Se você não responder terá de vir aqui no cemitério de noite e abrir o túmulo que eu escolher, mas a tarefa só estará finalizada se você me der algo que esteja dentro do caixão.
— Isso é fácil, coisa de iniciante! — disse Renan e completou: — Já fiz isso!
Todos ficaram eufóricos devido ao desafio e no auge da energia da rebeldia juvenil, decidiram se encontrar à meia-noite no mesmo lugar.
Após as despedidas, Jasmim retornou ao hotel e foi descansar esperando o grande momento. Fora isto, a bebida havia dado um certo mal-estar e ainda eram três da tarde.
Acabou adormecendo e acordou com o som do celular tocando.
— Alô, Jasmim? É a Cibele, a enfermeira da comunidade.
— Ah! Oi.
— Eu entrei em contato com seu pai e ele me passou seu novo número, espero que não se importe. Andei preocupada com você e tenho algo importante para te falar.
— Tá... tô bem, você pode ligar depois?
Jasmim desligou sem se despedir e nem dar chances de respostas, pois teve de correr ao banheiro para tirar a bebida de dentro de si. E agora que estava tudo planejado, o que menos queria era falar com alguém que desse algum conselho moralista, tipo os de sinais que o universo envia para causar culpa.
Apesar do mal-estar, aquele seria o grande dia! Nada iria atrapalhar!
Jasmim se sentiu aliviada ao sair do banheiro, mas quando passou em frente ao espelho que ficava ao lado da cama, não se reconheceu, parecia uma desgraçada indigente.
Ela nem lembrava há quantos dias que havia se abandonado completamente. Suas roupas sujas, seus cabelos desalinhados, seu odor, seu olhar vidrado... tudo estava repugnante.
Geralmente comer era o que a fazia se sentir assim, mas agora, mesmo estando se alimentando de forma miserável, sentiu aversão pelo que viu.
Como aqueles jovens não haviam falado nada? Talvez não disseram por falta de intimidade.
Não era assim que ela iria ao encontro de Ísis, definitivamente, não era assim!
Entrou então embaixo do chuveiro, aquela água morna caía como um bálsamo em seu corpo sofredor. Jasmim lavou seus cabelos e ao lavar seu corpo, relembrava dos motivos que a levou a fazer cada uma daquelas marcas tão profunda.
Ao se vestir, não se sentiu com os trajes adequados para a ocasião tão importante, decidiu que iria comprar algo já que ainda dava tempo.
Quando passou recepção do hotel, ouviu comentários maldosos do tipo: "Pelo menos tomou banho!" Mas não tinha problemas, ela tinha que ser breve para comprar suas roupas antes que as lojas fechassem e não daria atenção para isso. Comprou uma calça jeans, uma camiseta, um casaco leve com capuz e um par de botas. Que cor? Tudo preto, iria se adequar ao grupo.
Na volta para o hotel, passou em frente um salão de beleza, decidiu entrar e teve seu cabelo cortado na altura dos ombros, dois palmos mais curto, mudanças eram necessárias! Também fez as unhas. De que cor? Nem precisa falar. Apenas maneirou na maquiagem, optou por uma mais suave, apenas com um batom escuro, que cor? Não o obvio, marrom.
Desde a morte de sua amada, foi a primeira vez que se interessou pela sua aparência, até porque agora ela tinha que ir num encontro.
Mesmo que contra a sua vontade, fez uma refeição e quando finalmente o horário se aproximou, Jasmim foi caminhando pelas ruas desertas da cidade.
— E se eles perdessem a coragem na última hora? ... ou poderiam ter contado para alguém... tantas coisas poderiam acontecer!
Eram onze e meia quando Jasmim chegou ao cemitério, nas ruas ao redor não havia nenhuma alma viva. Então, observando que realmente estava sozinha, escalou o portão, já que os muros eram altos demais.
Quando para a sua surpresa viu que haviam algumas velas acesas no local onde seria o ponto de encontro. Foi em direção ao local, aquilo dava um frio na barriga tremendo, mas ficou aliviada ao ver que Renan e mais quatro deles já estavam lá. Conseguiu até achar graça quando todos a aplaudiram ao ver seu look gótico.
O ambiente estava muito aconchegante e sombrio, a luz da lua cheia criava uma atmosfera especial, cheia de misticismo e paz.
De repente um barulho fez todos suarem frio, mas era só mais um do grupo que havia chegado e tentava os assustar. Havia conseguido!
Apenas dois deles faltaram, mas a tarefa era do Renan, os outros só estavam lá para apoiar e curtir, esse negócio de desafio é levado à sério pelos adolescentes.
— Qual tumulo devo abrir? — perguntou Renan querendo demonstrar coragem ao dar meia-noite.
— Aquele! — Jasmim respondeu apontando o túmulo de Ísis.
Todos se aproximaram e juntos com muito esforço levantaram a tampa de mármore que era muito pesada.
Jasmim estava com lágrimas nos olhos e disfarçava para que não fossem notadas. Aquele era um momento muito importante e havia o medo, a tensão, a emoção e a ansiedade pelo reencontro.
Renan havia pegado uma enxada do coveiro que ficava no quartinho de ferramentas. Ele era esperto, já havia notado que dava para pega-la pelo vão da janela.
Começou a cavar então, cavou por meia hora mas nunca chegava no fim, então pediu para seus amigos ajudarem um pouco. Renan era forte e grandão, apesar de seu jeito meigo e delicado.
Eles foram revezando, menos Jasmim que se sentia atordoada de emoção e segurava a lanterna para ajudar.
Quando finalmente apareceu um pedaço da madeira, Renan voltou a cavar, pois ele queria fazer a parte final. Assim que toda a terra foi removida, ele começou a quebrar a tampa do caixão.
Ele quebrou tudo, já dava para ver algo dentro, era sinistro! Mas para ele tudo era pura adrenalina, diversão e a prova de sua valentia.
Então conseguiu retirar a tampa e disse:
— O que você quer que eu pegue?
Jasmim não conseguia emitir palavra alguma e num impulso pulou com a lanterna dentro da cova.
Quando Jasmim clareou e viu os cabelos de Ísis, ela passou suas mãos neles com carinho e se deitou, colocando seu rosto neles.
Ela sentia finalmente algo de sua amada, era um êxtase e uma revolta. Ficava sussurrando:
— Por que você foi tirada de mim? Volta para mim!
Eu te amo tanto!
Às vezes também ria, relembrando os bons tempos, ria com dor e de forma que causava um certo pavor nos adolescentes.
Não havia sobrado muita coisa, apenas permaneceram inteiros os ossos, os cabelos, os dentes e...
— Nossa aliança! — gritou Jasmim, quando sentiu a aliança encaixada em um ossinho da mão que um dia foi de Ísis. Ela havia se desfeito da sua na ocasião em que foi para a gruta.
Jasmim pegou a aliança com o osso e trouxe junto do coração, depois a beijou, abraçou e sorriu assustadoramente, como quem está precisando de sanidade.
O grupo ficou de fora olhando sem entender muito bem, mas a achando muito ousada, uma ótima pessoa para ser um deles.
— É melhor irmos embora já faz tempo que estamos aqui. Precisamos fechar o túmulo antes que apareça alguém. — refletiu um deles.
— Podem fechar, vou ficar aqui! Respondeu Jasmim insanamente.
Todos riram sem perceber a seriedade do pedido!
Após mais algum tempo Renan disse, já ficando um pouco assustado:
— Já fiz minha parte do desafio, agora vamos!
Mas Jasmim nem respondia, mantinha seu rosto nos cabelos de Ísis e conversava com ela mentalmente, às vezes até ouvia alguma resposta.
Em sua mente, elas estavam em outro momento, em outro lugar, ela até via os detalhes daquele dia em que estavam comemorando o primeiro ano de união e resolveram ficar sozinhas num chalé isolado, apenas se sentindo e se curtindo. Foi naquele dia que elas haviam combinado de usar alianças e no dia seguinte foram escolher juntas.
— Jasmim, vamos! — Renan a trazia para a realidade, já ficando impaciente.
— Vamos embora, deixe ela aí, ela vai levar toda a culpa, não precisamos nos envolver. — disse um dos outros rapazes.
— Não, precisamos ajudá-la! — falou Violeta, percebendo que algo estava errado.
Resolveram então tirá-la de dentro da cova. Carregaram-a, ela nem reagiu, apenas apertava o ossinho com a aliança em seu coração.
Fecharam então a cova e colocaram a tampa, apenas a sujeira da terra entregava o ato praticado.
Mas não se preocuparam muito com isso, estavam mais preocupados com Jasmim que estava olhando para o nada, sem nem piscar.
— Preste atenção em mim! Olha para mim! Respira! Toma essa água! — falava Violeta tentando reanimar Jasmim.
Finalmente Jasmim percebeu a presença dela e tomou a água, tentando respirar e obedecer suas instruções.
Jasmim segurou a mão de sua nova amiga e começou a chorar ao recuperar a consciência. Tentando aos poucos contar à eles a sua história com Ísis, desde quando se conheceram no hospital psiquiátrico.
Assim, ela foi desabafando e se acalmando. Dando inclusive um suave sorriso quando reparou que estava com o osso do dedo e a aliança de Ísis em sua mão e que sua missão havia sido executada com sucesso.
Olhou também em seu pescoço o medalhão de sua mãe e sabia que ele havia dado sorte.
Já eram quase cinco da manhã, precisavam sair. Os membros do grupo combinaram de não irem mais ali por um tempo, até perceberem que não havia ficado nenhuma suspeita do envolvimento deles no caso, mas se sentiam felizes pelo que tinham feito e sabiam que tinham uma história inacreditável para contar.
"Parece que se ela não existisse,
Nada mais existiria
Mas se nada mais houvesse
Como ela poderia existir?"
Fim da primeira parte.
Agradeço à todos que chegaram até aqui!
Agora vou revisar estes primeiros capítulos e o Livro de Ísis
e após isso voltarei para publicar a sequência.
Fiquem atentos às notificações!
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