CAPÍTULO XLVIII
— Certo! — exclamou Chloe. — Está preparada?
— Nasci preparada! — entoou Melina, fechando os olhos em seguida.
Mentalizou a pequenina piscina que estava à sua frente. Apenas cinco mil litros de água salgada. Nem de longe era larga ou funda o suficiente para comportar alguém com cauda. Servia apenas para decorar o pátio da oikós onde Chloe estava hospedada. No entanto, cinco toneladas podem se mostrar um desafio para quem planeja mover todo o volume.
— Você realmente tem que parar de aparecer assim, de fininho e de surpresa — abriu os olhos para encarar a figura masculina encostada na pilastra.
— Na verdade, eu estou na porta do meu próprio quarto — Calisto apontou com a cabeça para trás de si —, então, não sei se minha presença aqui pode ser considerada uma surpresa.
— É uma surpresa pra mim — explicou Melina. — Achei que estivesse trabalhando.
— Você é metade do meu trabalho — ele retrucou.
— Chamei seu tio aqui porque queria que ele o quanto você progrediu — elucidou a mulher sentada no chão ao seu lado —, só não estava nos meus planos que você o visse. Tínhamos combinado que alguém ficaria escondido.
— Ela estava com os olhos fechados, como eu iria adivinhar que iria me perceber aqui? — defendeu-se o príncipe.
— Está me subestimando — queixou-se a princesa e logo virou-se para Chloe. — Por que queria que ele ficasse escondido?
— Pra que não ficasse nervosa. As pessoas tendem a fazer tudo de forma atrapalhada quando estão sendo observadas.
— Ela tem um ponto. Finja que não estou aqui.
— Tarde demais — disse Melina.
Passou os dedos pelos cabelos, pondo-os para trás das orelhas, respirou fundo e pousou as mãos sobre as coxas. Sentada sobre seus calcanhares, fitou a água. Viu Calisto cruzar os braços e passar uma perna à frente da outra, de modo relaxado. Estava despido de sua usual postura severa, o que a ajudou a relaxar. Sentiu uma das mãos de Chloe afagarem suas costas, a tranquilizando e incentivando a prosseguir.
Repassou em sua mente tudo o que sua tutora lhe dizia. "Não é com violência ou força que você irá conseguir, é com calma e gentileza. A água não é uma inimiga que precisa ser dominada ou uma fera a ser controlada. É parte de você. Ela irá responder à sua vontade se souber comunicar da forma correta. Não é uma ordem de comando, é uma dança a dois."
Começou agitando a água lentamente, sem nenhuma pressa. Queria uma forma específica e precisava esculpi-la aos poucos. Ergueu o indicador direito na direção da piscina, ajudava a visualizar melhor o resultado que almejava. Como se seu dedo fosse um pincel, traçou uma linha curva e crescente do chão ao teto.
A água seguiu seu movimento, mas parecia querer um incentivo a mais. Refez o traço, puxando a forma para fora da contenção de concreto que limitava o líquido ao pequeno espaço no chão. A criatura de corpo ondulante que se formava ainda não tinha uma face. Deixou cair poucas quantidades de água até que se moldasse uma cabeça e, então, os olhos.
— Pode trazê-la para mais perto, se quiser — Chloe sussurrou.
A serpente erguida mirava o teto, sem vida, apenas se mexendo vagarosamente.
Melina puxou o próprio dedo para si, fazendo com que o animal abaixasse sua cabeça em sua direção. Puxou outra vez, e, desta, a criatura translúcida abaixou também seu corpo e começou a se movimentar para fora da piscina. Abaixou-se até a altura do chão, rastejando lentamente ao redor da garota, até que estivesse completamente separada do outro agrupamento. Sentiu o líquido tremular, olhou e não viu nenhuma deformação aparente, mas sabia que logo que desfaria em uma poça. Então, fez com que voltasse a se mover em direção ao lugar de onde havia se originado. Pouco a pouco, seu corpo se misturou ao restante da água, desfazendo-se, voltando ao estágio inicial.
— Isso foi magnífico. — A voz do príncipe quebrou o silêncio.
— Obrigada — agradeceu, lisonjeada.
— Só precisa ter o cuidado de manter estável — advertiu em seguida.
— Você percebeu?
— Está me subestimando — usou suas próprias palavras contra ela.
— Calisto! — repreendeu Chloe, delicadamente, virando-se para Melina em seguida. — Você foi ótima, Mel. Podemos aperfeiçoar isso com calma depois. Você fez muito avanço em dois dias, daqui a vinte já estará proficiente.
— Isso é verdade — concordou o tritão —, se continuar avançando assim, nem irá precisar de uma arma. Será a própria arma.
— Assim espero, mas o Joe já me fez escolher uma hoje.
— Escolheu o que? — perguntou Chloe.
— Um arco.
— Eu teria escolhido um tridente para você — falou Calisto, despretensiosamente.
— Já imaginava — balbuciou Melina, esforçando-se para não parecer respondona.
— Meu irmão usava um arco — contou Chloe, não sabendo que Melina já sabia. — Incomum, mas não é uma má escolha. Bom, pelo menos, ele adorava.
— Sim, ele adorava — concordou o homem. — Mas isso é porque Lucca não se importava com a opinião das pessoas.
Pela forma como frisou o nome de seu skopós, ela podia jurar que seu tio estava reprimindo um "Melina se importa". Não poderia negar. Tinha plena ciência do lugar que sua própria imagem ocupava em sua lista de prioridades.
Chloe não pareceu reparar. Olhou para cima e continuou: — Ele era um espírito livre.
— Livre demais — resmungou o príncipe.
— Não fale como se fosse uma coisa ruim — baixou os olhos.
— Eu não disse que é uma coisa ruim.
— Não disse, mas eu te conheço, Calisto.
— Aprecio a liberdade — afirmou —, só não tenho em mim o desejo latente de ser uma linda borboleta a voar pelos céus.
— Você não seria uma linda borboleta — argumentou Chloe. — Seria uma mariposa gigante. Do tipo que assusta crianças.
Melina, que assistia tudo em silêncio, não sabia o que esperar de Calisto após ser ofendido. Prendeu a respiração, imaginando que a discussão iria piorar de modo irreversível. Contudo, foi surpreendida quando ele gargalhou.
— É, eu realmente seria esse tipo de inseto.
— Achei que estavam discutindo — comentou Melina.
Chloe riu alto. — Não, não mesmo. Seu tio nunca discute. Ao invés disso, ele faz um monólogo de quarenta minutos sobre o quão e porque você está errado.
Calisto deu de ombros, nem um pouco preocupado em negar.
— Amanhã vamos nadar em mar aberto — ele comunicou —, quer vir conosco? — perguntou para Chloe.
Ela sorriu. — Claro! — virou-se para Melina. — Bom, acho que está liberada por hoje.
Ela assentiu e se levantou do chão, estendendo uma mão para ajudar Chloe a se levantar também. Quando — após conversas triviais — a mulher pediu licença e se dirigiu a cozinha para preparar algo para ela e Calisto tomarem café da tarde, a princesa se aproximou do príncipe e avisou:
— Não estou a fim de segurar vela.
— Não vai.
— E corre o risco de eu esbarrar com um daqueles peixes feios, cheios de dentes, que têm uma lanterninha? — gesticulou com o dedo acima da cabeça.
— Acho que é melhor você voltar a treinar — rindo, deu dois tapas em seu ombro —, sua mãe já deve estar esperando por você.
— Certo — se pôs a caminho da saída, mas ouviu ele a chamar.
Virou-se para trás e ele falou:
— Você ainda não me deu uma resposta.
— Sobre?
— Os bebês.
— Os bebês! — lembrou com surpresa.
— Os bebês... — acenou lentamente com a cabeça.
— Eu... esqueci. Completamente — admitiu. — Mas prometo que vou pensar a respeito. De verdade, dessa vez.
— Tudo bem — disse de modo que deixou Melina em dúvida se realmente estava tudo bem.
Porém, concordando e temendo peixes monstruosos, foi em direção ao próximo compromisso do dia.
☼
Sentadas em uma mesa, em um dos jardins suspensos do palácio, Melina e Cibele comiam o que havia restado dos pães de queijo que a filha havia levado para a mãe. O chão, ainda úmido, e as plantas molhadas eram um indicativo de sucesso, mas a garota estava mais preocupada com outra coisa.
— O que tem entre o tio Calisto e a Chloe? — perguntou, despretensiosamente.
— Como assim?
— Ele ri muito fácil quando tá com ela.
— Ele gosta dela — afirmou. — Gosta muito dela. O que significa bastante coisa, já que ele não gosta de quase ninguém.
— Tenho pena da Chloe — disse, melancolicamente. — Ele não dá uma única chance pra coitada.
Sua mãe a olhou com o cenho franzido e a cabeça pendida para o lado.
— Eu sei que ele não é apaixonado por ela — justificou-se. — Isso é óbvio. Mas bons relacionamentos são pautados em uma amizade ainda maior. Paixão passa. Companheirismo é o que dura.
A rainha abriu um sorriso divertido.
— O que foi? Não tô falando de mim e do... — sacudiu a cabeça, energicamente. — Não!
Cibele gargalhou. — Eu não disse nada e nem iria dizer. Mas talvez devesse refletir sobre o porquê de ter pensado nisso.
— Não quero refletir sobre nada. Podemos voltar a fofocar sobre a vida do tio Calisto?
— Bom, Calisto provavelmente concordaria com você — voltou ao assunto —, na verdade, consigo imaginar essas mesmas palavras saindo de sua boca — olhou vagamente para o pôr do sol. — Acredito que ele até tentaria retribuir o sentimento, se não tivesse namorado o irmão dela por quatro anos.
Melina sentiu seu queixo cair, involuntariamente.
— Como eu nunca fiquei sabendo disso?
— Seu tio gosta de manter sua vida pessoal privada. Bem privada. Ele só me contou do relacionamento um ano depois que já estavam juntos.
— Puts... — ergueu as sobrancelhas. — Não sei se conseguiria esconder um relacionamento por tanto tempo assim.
— Espero que não esconda — falou baixo e bebericou seu suco de morango para disfarçar.
— Mãe...
— Que foi? Não disse nada.
Melina riu. — Não vou namorar escondido. Relaxa.
— Bom, já que entramos nesse assunto — batia os dedos nervosamente em seu copo —, você me pareceu muito próxima do Kallias nesses últimos dias.
— Gosto dele — declarou sem hesitar —, a gente se dá bem.
— E isso é uma coisa boa?
— Uai! — ficou confusa. — É. — Seus olhos investigavam a mãe em busca de alguma resposta. — Não é?
— Não sei, me diz você.
Encarou sua xícara vazia, pensativa.
— Seria bom — começou a perguntar, cautelosamente — para o país? — ergueu os olhos para a rainha — Que eu me casasse com ele?
— Seria. Seria muito bom. — Seu tom de voz seguia gentil, mas ela não parecia estar muito animada com a possibilidade.
— Mas...?
— Mas é isso que o seu coração quer, Mel? — suspirou pesadamente. — Meus únicos desejos são que você esteja segura e que seja feliz. Não vou exigir de você nada que vá contra alguma dessas duas coisas.
— Não sei o que meu coração quer. Nem sei se quer alguma coisa. Só está aqui, batendo. Não é como se eu fosse decidir alguma coisa baseada em algum sentimento.
— Não estou te pedindo para decidir nada com o coração. Só estou te pedindo para ser honesta consigo mesma. Ele quer algo. O coração sempre quer. Você só não sabe o que é porque nunca parou para refletir sobre.
Um temor que não sabia de onde vinha começou a tomar conta dela.
— E o que acontece? Se eu parar para refletir?
— Aí, então, você terá que lidar com isso. Decidir o que vai fazer com o sentimento. Mesmo que sua decisão seja ignorar e ir pelo que é mais conveniente.
Melina respirou fundo.
— Vou buscar mais café — comunicou, levantando-se da mesa e Cibele entendeu que ela não queria se prolongar no assunto.
Retornou com a garrafa e concentrou-se em conversar sobre o fato de sua mãe não gostar de cafeína. Para ela, era um crime inafiançável saborear pão de queijo com qualquer outro acompanhamento que não fosse café preto, puro e forte. Mas a rainha era do time que preferia bebidas doces e nada amargas.
Jantou e teve sua última aula da noite se esforçando para não pensar no conselho de sua mãe. Parar para pensar sobre seria admitir que Cibele estava certa e, consequentemente, teria de lidar com o que viria após isso.
Felizmente, sua mente foi ocupada quando retornou aos seus aposentos e o encontrou decorado com flores nas cores rosa bebê e laranja. Delicados arranjos de camélias, azaleias e lírios enfeitavam o hall de entrada e as pilastras dos corredores e Melina tinha 100% de certeza de que aquilo não estava ali antes.
Flagrou Joe saindo da cozinha com os braços lotados de garrafas de bebida.
— Planeja beber isso tudo? — ela perguntou.
— É claro que não, tá achando que eu sou o quê? São pra deixar o bar bonito.
Arqueou uma sobrancelha para ele. — Bar?
— Leva as frutas que estão na bancada — apontou com a cabeça para a porta, ignorando a pergunta —, fazendo um favor.
— Levar pra onde?
— Lá pra cima — respondeu e debandou-se para as escadas.
Percebendo que seria melhor não questionar, buscou as frutas.
Subiu os degraus para o terraço e o encontrou completamente iluminado com luzes amarelas que deixavam o ambiente aconchegante e com um clima ameno. Os móveis haviam sido trocados de lugar, abrindo espaço para uma duas enormes caixas de som. Uma mesa com recipientes tapados, que deveriam ser comida, outra menor, enfeitada com as mesmas flores do primeiro andar e um mini bar.
Aproximou-se de Joe, que terminava de arrumar as bebidas nas prateleiras assimétricas da estante preta de aço. Sentou-se em um dos três brancos e colocou as sacolas com as frutas em cima da bancada. Virando-se para trás, ele pegou-as e abaixou para guardá-las.
— Eu vou querer saber como você arrumou tudo isso em uma tarde?
— Ignorando todas as minhas responsabilidades — respondeu, ainda agachado.
— Não acha que exagerou um pouco, não?
— O que esperava?
— Ah, sei lá. Um bolo. Bolas — deu de ombros. — Aliás, cadê o bolo?
Ele ergueu-se, olhando seriamente para ela, e apoiou as palmas das mãos na bancada.
— Primeiro: não existe nada mais brega do que bexiga de aniversário. Sua suposição é um desrespeito à minha pessoa. Segundo: o bolo tá na geladeira, vou pegar quando terminar aqui. Mas, por que tá reclamando?
— Não estou reclamando. Só achei que seria uma coisa mais intimista, que não teria tanto, já que só vamos estar nós três.
— Ah, Linda... — passou os dedos gentilmente pela sua bochecha e os desceu até seu queixo, o levantando levemente. — Eu sou a própria festa. Não precisa de mais ninguém.
Melina gargalhou. — Se você tá dizendo...
— Tu vai ver — voltou a pegar coisas da parte interna do balcão e a organizá-las sobre o bancada. — Além do que, é minha chance de estrear meu novo Kit Coqueteleira — levantou o conjunto de inox, exibindo-o. — Quer um drink pra esquentar?
Melina assentiu e assistiu ele misturar qualquer coisa colorida e, em seguida, colocar fogo na bebida. Agarrou o copo com o líquido roxo e brindou. Virou-o garganta abaixo, aproveitando a coragem que ele lhe dava para dizer:
— Vou visitar a Rhea. — Ele não disse uma palavra, mas Melina podia dizer pela expressão em seu rosto o que ele pensava sobre. — Não, eu não estou louca.
— Ela vai estar aqui depois de amanhã. Por que se dar ao trabalho de ir até lá?
— Festas são sagradas e você sabe. Não é momento pra resolver problemas. É momento pra encher a cara e fingir que não existem problemas.
— Estamos em uma festa e tu tá trazendo um problema pra conversa.
— Primeiro: a festa ainda não começou. Segundo: não é um problema, eu só quero a opinião dela sobre uma coisa.
Explicou a ele toda situação com os bebês, com Calisto e o que Rhea havia conversado com ela quando estavam em sua casa. Todavia, ele ainda não parecia convencido.
— Ela te acha gostoso. Burra ela não é — argumentou.
— Linda... — sacudiu a cabeça, negativamente.
— Olha — interrompeu —, o que eu tô querendo dizer é que, apesar da personalidade, ela tem uma boa percepção sobre as coisas, tem opiniões bem fortes e eu quero ouvir o ponto de vista de alguém que não vai ter medo de me dizer a verdade.
Suspirou, cansado. — Quando quer ir?
— Amanhã de noite.
Ele concordou, em silêncio.
Terminaram de arrumar o local dentro de poucos minutos e desceram para também se arrumarem. Melina voltou ao terraço e encontrou Joe posicionando o bolo na mesa, entre as flores. Aproximou-se para encarar o doce cor de pêssego, com uma espatulagem quase profissional. Ficou intrigada, porém, com a quantidade de velinhas espalhadas no topo do bolo — mais do que ela estava disposta a contar.
— Nossa, por que tantas velas?
— Pra espantar os maus espíritos — falou como se fosse óbvio. — Não sabe nada da própria cultura?
— Ah! — exclamou, prolongando o som. — Eu sei, mas esqueço, uai.
— Tu pode até esquecer ou não se importar, mas a guria é preocupantemente religiosa, então ela vai amar — terminou e colocou as mãos na cintura, pendendo a cabeça para o lado para observar a sua obra.
Melina virou o rosto para ele e sorriu, timidamente.
— Você é a coisa mais fofa do mundo.
— Por que? — indagou, franzindo o cenho.
— Porque você se importa com as pessoas. É atencioso — apertou a bochecha dele.
Ele corou. — Não fiz nada demais.
— Fez, sim — olhou em volta. — Tá tudo lindo — abraçou-o de lado. — Adoro você.
Ele passou o braço ao redor dela e ficou em silêncio por alguns segundos, até falar:
— Eu não ia dizer aquilo.
— Não ia dizer o quê? — olhou para ele.
— Eu não ia dizer que foi um erro — completou, olhando-a nos olhos.
Melina sentiu seu coração parar de bater por pelo menos três segundos.
— Posso saber o porquê? — Sua voz saiu quase como um sussurro.
— Foi muita filhadaputagem da minha parte. Perdão.
— Só por isso?
— Hã… Sim? — estava honestamente confuso.
— Ah — foi tudo o que disse. Talvez esperasse uma justificativa diferente.
Desvencilhou-se do abraço e sorriu sem graça.
— Vou chamar a aniversariante — disse isso e desceu as escadas, tentando convencer a si mesma que não estava desapontada.
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