CAPÍTULO XLVI
"O que está fazendo?"
Após horas de quase absoluto silêncio, pode ouvir uma voz cansada e falha sair de seus fones de ouvido. Suspirou, agradecido. Pelo menos, acordar às cinco da manhã sob a expectativa de escutar algo útil não havia sido em vão.
É claro que ficaria tudo gravado. Mas, mesmo assim, levantou-se de sobressalto da cama onde estava estirado, encarando o teto, e tomou caderno e caneta em mãos.
Diante de nenhuma resposta da parte, teve de abraçar a hipótese de que Athenion havia mostrado o que estava fazendo ao invés de responder a Memnon. O que era péssimo. Seria de grande utilidade saber o que o tritão fazia desde o momento em que acordou.
Já havia escutado o leve barulho do chuveiro, o som do serviço de quarto chegando com o café da manhã e nada além disso. Desejava, mais do que nunca, ser o Homem-Formiga, apenas para descobrir o que ele tanto fazia naquelas horas de silêncio.
"Vamos embora amanhã" comunicou Athenion.
"Mal chegamos aqui, por que partir tão cedo?"
Um barulho confuso começou a tomar conta do ambiente onde os homens estavam. Joe deduziu que se tratava de uma televisão sendo ligada.
Ouviu um som quase inaudível, mas poderia apostar que se tratava de um bufado de raiva. O barulho foi seguido de um "Porque não há nada de útil aqui. Se ele está tão interessado nessa pérola ridícula, ele mesmo deveria ter vindo atrás dela. Tenho coisas mais interessantes a fazer."
"Não se sinta no direito de reclamar. É por culpa da incompetência dos seus homens em extrair informações que estamos aqui."
"Sabe, Memnon, não me lembro de ninguém pedindo para que você viesse..."
"Vim para garantir que tudo ocorra conforme o planejado dessa vez."
"E como pretende garantir alguma coisa? Sentado nessa cama, assistindo canais de esporte enquanto eu faço todo o trabalho?"
"Gosto de ver os humanos brigando por essa coisa preta no gelo. É estúpido. É divertido."
"Essa coisa preta se chama disco."
"Não me importo. Agora, volte ao serviço."
"Você não é meu chefe."
"E você não parece entender a importância do que estamos fazendo aqui. Era mais fácil trabalhar com seu pai."
"Era mais fácil porque não tinham trabalho a fazer. Todos sabiam exatamente onde ela estava e não havia o porquê usá-la."
"Não era tão simples assim, tínhamos outras prioridades" fez uma longa pausa. "Ainda não entendo porque aquela maldita entregou a pérola ao garoto. Como se fosse dela para dar a alguém. Pertence ao povo."
"Eu entendo. Ele é uma peste. Não há nenhum cenário no mundo onde ele contaria onde ela está ou facilitaria nosso caminho até ela. É algo a se respeitar."
Ouviu uma risada de escárnio.
"Em um cenário onde a vida da princesinha do sol estivesse em risco, ele contaria."
A risada que se seguiu soou ainda mais alta.
"Quer ameaçar Melina? Tudo bem, vá em frente! Vou organizar uma aposta sobre quem seria o primeiro a te matar. Aposto em Calisto. Ele seria o mais rápido."
Escutou um chiado frustrado e gritos direcionados aos jogadores que eram exibidos pela televisão. Não sabia se a frustração era por não poder fazer nada contra Melina ou por conta do jogo. Talvez pelos dois.
"Vale o risco" Memnon constatou, ao fim.
"Seria jogo baixo. Você não tem um pingo de honra?"
"Eu quero a maldita margaritis pelos motivos mais nobres possíveis. Não é o suficiente?"
"Se envolve tentar algo contra a princesa, então a resposta é não. Melina é mais útil viva, ilesa e colaborando."
"Isso é só a sua opinião esperançosa e questionável."
"É a melhor estratégia."
"Então pode começar a torcer para Herakles ter sucesso."
Athenion riu, debochado. "Ele não vai. Isso eu lhe garanto."
"Como pode ter tanta certeza?"
"Não existe a menor possibilidade de uma garota como Melina aceitar ser esposa de um garoto como Filippo."
"O que quer dizer com 'uma ga...' Ah... você simpatiza com ela?"
"Bem, ela não é burra como a mãe. Tem um excelente gosto literário e um paladar sofisticado."
"Se gosta tanto dela, então deveria tentar você."
"Eu tenho um único e verdadeiro amor. Não me casarei com outra."
"Seu único e verdadeiro amor não te ama. O amor não existe. Deveria superar e tentar ser útil a nós de algum modo. Se Melina não se casar com Filippo, irá acabar se casando com Kallias."
"Não seria uma tragédia."
"Mas seria um desperdício."
"Ela não irá se casar com Kallias, não seja tolo."
"E vai envelhecer solteira como Cibele?"
"Não, não vai. Mais cedo ou mais tarde vai acabar se casando com Joseph."
"O quê? Por que ela faria uma coisa dessas?"
"Você não acredita no amor. Jamais entenderia."
"O que há de errado contigo hoje?" ralhou.
"O que há de errado comigo é que estava tentando me concentrar quando um asno cinza e enrugado invadiu o meu quarto e acabou com minha paz!" esbravejou. "Pode sair daqui?" Não soou como um pedido.
"Não pode esperar pelo intervalo?"
"Não!"
A ausência de som indicou que a TV havia sido desligada e que Athenion estava só outra vez. Após alguns minutos de completo silêncio, deixou os fones de lado e tornou a olhar para o caderno rabiscado enquanto assimilava tudo o que havia escutado.
Seu celular vibrou e o contato de seu pai apareceu na tela, lembrando-o da reunião que tinha com o tal cliente em dois dias, pela manhã. Se iria insistir em fingir naturalidade, então seria uma viagem de seis horas até Bergen. Torcia para que Athenion fosse embora do continente o mais rápido possível no dia seguinte, não queria ter de dirigir de madrugada. Ainda teria que comprar um terno para estar apresentável.
Em seu estilo de vida, não cabia os négocios da família, mas aquilo deixava seu pai feliz. Fazia-o sentir que, embora não compartilhassem laço sanguíneo, ainda estavam unidos por coração e propósito. Era uma das poucas formas que tinha de participar da vida de seu pai, então, a abraçava, mesmo não estando a fim de negócios.
Tinha 98% de certeza de que a tal reunião ocuparia um dia inteiro, o que significava que teria apenas aquele dia e o seguinte para para organizar um dossiê. Alguns pontos da conversa haviam chamado sua atenção mas ainda precisava conectar tudo o que fora falado para montar uma teoria consistente. Não queria voltar à Anamar sem nada a apresentar à Cibele. Também não era seu desejo despejar tudo sobre ela e deixar que a rainha resolvesse tudo sozinha.
Claro, Calisto poderia ser de grande ajuda, assim como Melina.
Assim que pensou nela, pensou também que ela teria amado conhecer o fiorde. Teve de reservar um horário em sua agenda para visitar o ponto turístico e tirar algumas fotos para mostrar à ela. Também adicionou à sua lista de coisas para fazer antes dos trinta "Levar Linda à Noruega".
Obrigou-se a focar novamente no que estava fazendo.
Duas mentes, em geral, são melhores para resolver problemas do que uma só. Porém, como lidar com tudo sozinho estava dando certo, até então, entregou-se ao serviço que precisava ser feito.
☼
No final das contas, Kallias realmente era um excelente professor.
A agradável companhia fazia com que o tempo passasse despercebido. Havia algo na suavidade de sua voz que a ajudava a manter o foco e a impedia de surtar de vez. Era bom ter um colega, talvez amigo. Um com quem não tinha que se preocupar com um possível fim do mundo. Por isso, não pensou duas vezes antes de solicitar sua ajuda por outra noite. Também não hesitou em chamá-lo para almoçar com ela e sua mãe, nem para jantar, e nem para estudar mais uma vez.
Já era chegado o dia de sua partida, mas Melina não tinha muita certeza se, de fato, ele iria. Também não tinha muita certeza se queria que ele fosse embora. Postergou até a noite, convencendo-o de que ainda não havia entendido todas as mudanças que ocorreram na economia do país entre 1600 e 1700 d.C.
Estava com ele no que deveria ser sua sua de visitas — havia transformado em uma sala de cinema —, sentada sobre o sofá, enfeitando seu fichamento do conteúdo enquanto Kallias se sentava no chão, sobre o tapete acolchoado, apoiando um livro sobre a mesa de centro, que já não estava tão limpa devido aos farelos de biscoito caseiro e círculos de suco que os seus copos deixaram.
Não esperava que nada de surpreendente fosse acontecer naquela noite. Por isso, demorou um par de segundos para cair a ficha de que a figura loira parada à porta, vestido com terno e gravata, com um sorriso, de fato, estava ali.
— Lin... — Joseph olhou para o lado, notando a segunda presença ali. — Oi?
Mesmo notando que seu sorriso havia se desmanchado, Melina saltou do sofá, correu até ele e lhe deu o mais apertado abraço que pôde.
— Você está vivo! — gritou, ainda com seus braços envoltos na cintura dele.
Viu Kallias acenar de jeito simpático para o recém chegado, que retribuiu com outro aceno e um sorriso amarelo.
— Esperava que eu estivesse morto? — tornou a olhá-la, estreitando a visão.
— Uai, eu não sei — soltou-o e posicionou as mãos na cintura —, não sabia onde você tinha se enfiado, não deu notícias, não disse o que estava fazendo. Até onde eu sei, você poderia ser o Batman!
— Eu não sou o Batman.
Kallias pigarreou, fazendo com que os dois olhassem para ele. Levantou-se do chão, limpando as laterais das calças com as mãos.
— Vou deixar vocês a sós, para matar a saudade. — Seu tom de voz e sua expressão eram gentis, mas Melina apostaria que ele estava se segurando para não acrescentar um "ou brigarem". — Os vejo no sábado.
— Vai embora hoje ainda? — perguntou a princesa. — Já são dez horas da noite, fica até amanhã. Eu peço bolo de laranja pro café.
Ele deu uma risada leve. — É um excelente argumento. Tudo bem, eu fico até amanhã. Mas, de qualquer forma, tenham uma boa noite.
— Você também — disse Melina.
Joe limitou-se a um cumprimento de mãos e um sorriso. Observou o rapaz até que ele estivesse completamente fora de suas vistas e pousou os olhos novamente na garota.
— Bolo de laranja? — levantou uma das sobrancelhas para ela.
— Que foi? É o preferido dele.
— Claro que é — debochou, entrando no cômodo, arrancando os sapatos, sentando-se no sofá e afrouxando a gravata —, e é claro que tu sabe disso.
— Sabe, você tava um grande de um gostoso nessa roupa — viu os olhos dele se arregalarem para ela —, até fazer isso.
— Isso o quê?
Ela apontou para o chão, onde o par de sapatos e as meias estavam jogados de modo largado.
— Ué, por quê?
— Porque parece que somos casados há quinze anos e que você acabou de chegar do escritório e está prestes a ligar a TV pra assistir futebol e ignorar completamente a minha existência, já que tá transando escondido com a sua secretária.
— E tu finge não saber do meu caso porque tá transando com seu instrutor de ioga?
— Exato!
Ele gargalhou. — Isso parece horrível.
Levantou e recolheu os sapatos e as meias, deixando-os juntos ao lado do sofá. Tirou também o terno e o dobrou, pondo-o no braço do sofá, da maneira mais organizada que pôde. Olhou para Melina, em busca de aprovação.
— Assim tá melhor — ela disse, assentindo.
Ele bateu com a palma da mão no espaço ao seu lado, onde ela sentou. Cruzou as pernas e apoiou um dos cotovelos sobre a coxa, apoiando o queixo sobre a palma da mão. Seus grandes olhos o fitavam com expectativa e um sorriso sutil e inconsciente marcava presença em seus lábios.
— Então? — perguntou ela. — O que tava aprontando?
Os círculos um tanto escuros embaixo de seus olhos indicavam que ele não deveria ter dormido muito bem nos últimos dias. O cheiro doce cítrico de seu habitual perfume já havia se transformado em um aroma suave e quase imperceptível. Parecia ter vindo direto de algum lugar importante, mas Melina não sabia de onde.
— O que eu estava aprontando? Eu quem faço essa pergunta. Sumi por quatro dias e tu já arrumou um namorado.
— Eu não arrumei um namorado! A gente só tava estudando.
— Linda, eu já fui adolescente. Sei o que estudar significa.
— Sabe que eu não tava fazendo nada disso. Só tá falando isso porque tá com ciúmes.
— Bah, eu não tô com ciúmes!
— Então deveria experimentar tratar o menino igual gente. Eu hein, parece até que odeia o coitado.
— Jura? — arqueou uma sobrancelha com ar de deboche. — Consegue dizer isso olhando nos meus olhos.
Ele a mirou e respirou fundo.
— Ele parece ser legal — conseguiu dizer, mas não conseguiu resistir ao impulso de cantarolar: — ...com essa cara de babaca, deve ser um homem sério, usa sempre essa gravata. Fico feliz por você encontrar um cara, tanta gente por aí, precisava ser um mala?
— Quem tá usando gravata é você.
— Fui obrigado pelas circunstâncias.
— Ah, claro. E vai cantar a outra parte também? Aquela que diz: é claro que não é ciúmes, tô falando a verdade. Talvez seja um pouquinho, misturado com saudades. Esse cara com você, que não tem nada a ver. Você me trocou por isso, não consigo entender?
— Conhece essa música?
— Sim.
— Droga!
— Também lembro da parte de 'namorar o dia inteiro até fazer algum neném'. Quer que cantar ela também ou...?
— Tudo bem, eu já entendi! E, que fique claro: só estou brincando.
Cruzou as mãos sobre o peito e estreitou os olhos para ele.
— Tem certeza? Me parece um dos seus chiliques.
— Eu não dou chiliques.
Arqueou uma das sobrancelhas.
— Tudo bem, talvez um pouco. Muito raramente, de vez em quando.
— Essa frase nem faz sentido.
— Escuta — parou e respirou fundo —, o que eu quero dizer...
— Tem certeza de que quer? Parece estar com dificuldades pra falar.
— Não, não tenho. Mas vou falar mesmo assim — fechou o semblante, adotando a expressão séria que quase nunca utilizava, mas que estava se tornando comum naqueles últimos dias. — É brincadeira, com algum fundo de verdade, mas é brincadeira. Eu só tô tentando dizer que eu sou seu amigo, e, como seu amigo, eu tenho medo de que você acabe se casando com um imbecil que vai te colocar chifre e não te tratar como a deusa que você é. Também existe um sério risco de esse cara te matar durante o sono e tomar seu país — suspirou, como se doesse dizer o que diria a seguir. — Mas o Kallias parece ser uma boa pessoa, de verdade.
— Eu não tô planejando casar com ele — disse após algum tempo.
— Eu sei, mas só... caso... sabe?
Assentiu. — Ele é fofo. E inteligente. E engraçado.
— Por favor, eu não quero ouvir você elogiando o aspirante a BTS.
Melina riu. — Tudo bem, mas, de qualquer forma, ele é uma opção melhor do que o Filippo.
— Hã... sobre isso... É o que eu queria falar com você.
— Sobre o Filippo? — contorceu a face, em estranhamento.
Bufou, sua feição indicava cansaço, mas Melina sabia que não era só físico. O garoto agarrou a bacia com o que havia restado dos biscoitos e entregou à ela.
— É melhor você terminar de comer isso enquanto eu falo. Tenho informações e não sei se são muito boas.
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